segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A ESCRAVIDÃO INDÍGENA



Tão logo fizeram os primeiros contatos na costa brasileira, os portugueses começaram a carregar suas embarcações com mercadorias extraídas da nova terra para serem levadas à Europa. Entre elas, o pau-brasil, animais exóticos e... índios. Em pouco tempo tornou-se comum encontrar escravos indígenas nas ruas de Lisboa e arredores, principalmente nos serviços domésticos. Eles também eram vendidos na Espanha e em seus domínios.

Quando os portugueses deram início às atividades produtivas no Brasil, a partir da criação das capitanias hereditárias, decidiram utilizar os índios para o trabalho escravo. Sem recursos para importar africanos e sem as condições necessárias para o emprego de mão de obra assalariada, os indígenas acabaram sendo a base da formação da economia colonial.

Transformá-los em escravos era uma tarefa difícil e arriscada. A presença portuguesa no Brasil e a ocupação das novas terras dependiam do apoio da população nativa. Para defender tão vasto território, a Coroa precisava dos índios como aliados militares contra os concorrentes europeus (no século XVI, especialmente os franceses). Eles também eram úteis para combater grupos indígenas rivais que atacavam os incipientes núcleos coloniais, além de fornecerem informações e alimentos indispensáveis à sobrevivência em uma terra ainda mal conhecida.

Se a princípio chegou a existir um frágil equilíbrio entre índios e portugueses, ele logo se rompeu. Os nativos acharam bom negócio vender aos recém-chegados seus prisioneiros de guerra, antes utilizados em atividades rituais e sociais (como a antropofagia). Quando, porém, o apresamento de escravos tornou-se um negócio concorrido, a ânsia de obter mais cativos desfez as alianças iniciais.

No início da década de 1540, por exemplo, um certo Henrique Luís, traficante de escravos indígenas na costa, botou a perder o contato amistoso construído até então com os índios da atual divisa do Rio de Janeiro com o Espírito Santo. Tomado pela ambição de um lucro rápido e fácil, ele sequestrou uma liderança nativa aliada e exigiu como resgate um determinado número de escravos. O resgate foi pago, mas o comerciante, ao invés de cumprir o acordo, entregou o chefe ao grupo rival, obtendo assim escravos de ambos os lados. Os índios reagiram à altura da ofensa: tornaram a vida dos portugueses impossível naquela região. Não foi à toa que, ao escrever a sua História do Brasil no início do século XVII, frei Vicente do Salvador comentou que não era possível obter um testemunho direto sobre a ferocidade daqueles índios, pois os que por lá se aventuravam não retornavam com vida para contar.

Muitos colonos apelaram a Deus e escreveram ao rei, implorando por alguma atitude em relação à conduta inescrupulosa dos traficantes. Não agiam movidos por fins humanitários, mas sim a partir de cálculos estratégicos: se as coisas continuassem como estavam, temiam que os portugueses fossem expulsos do Brasil. Para piorar, os franceses se aproximavam cada vez mais dos índios e entravam na disputa pelo território. A Coroa se viu então diante de um dilema: como escravizá-los e, ao mesmo tempo, manter a sua “amizade”? A solução encontrada foi separar os índios aliados dos índios inimigos.

Esta diferenciação já existia nas primeiras instruções dos monarcas, que aconselhavam os navegadores a tratarem com distinção os líderes “amigos” e evitarem conflitos. Mas a nova postura em relação aos índios só começou a ser sistematizada em 1549, com a instalação do governo-geral em Salvador. Coube ao primeiro governador, Tomé de Souza, regulamentar a relação com os índios. Para isso, contava com dois importantes recursos: um regimento elaborado pelo rei oferecendo garantias aos aliados e a presença dos jesuítas, que chegaram na mesma época e passaram a ter voz ativa nas questões indígenas.

O estatuto dos índios na sociedade colonial reafirmava a liberdade dos aliados. É bem verdade que eles eram obrigados a trabalhar para a Coroa e para os colonos, mas deveriam ser remunerados e tinham uma série de outras garantias, como a propriedade coletiva das terras dos seus aldeamentos. A escravização dos índios, porém, continuava permitida em duas situações: o resgate e a guerra justa. O primeiro fazia referência aos prisioneiros feitos pelos próprios índios, destinados à antropofagia. Neste caso, algum colono poderia resgatar o prisioneiro que, em retribuição, trabalharia algum tempo como escravo. Já a guerra justa era um recurso empregado quando os índios atacavam os portugueses, que então tinham o direito de defender-se e de escravizar os prisioneiros. Não foram poucos, no entanto, as guerras justas e os resgates que não passaram de um pretexto para a obtenção de escravos.

À medida que a economia colonial se desenvolvia a partir de um produto destinado ao mercado internacional (o açúcar no Nordeste), os colonos começaram a importar escravos de origem africana. Assim, evitavam problemas com a lei e se beneficiavam da maior regularidade da oferta desta mão de obra. Trabalhadores indígenas, escravos ou livres, continuaram a existir, mas não formavam mais a base da produção.

No entanto, em regiões menos prósperas, os índios ainda eram parte importante da mão de obra, por vezes a principal. Sem outra alternativa de enriquecimento, os colonos lutavam pela manutenção dos "seus índios", como então se dizia. Os paulistas alegavam que os índios eram “um remédio para a sua pobreza”. Uma forma de mantê-los cativos era a administração particular. Teoricamente, tratava-se de uma relação de troca: os índios eram livres, mas prestavam serviços ao seu "administrador" que, como pagamento, os instruía na fé católica. Na prática, muitas vezes adquiria ares de escravidão, como quando os índios eram deixados em testamento junto com as demais propriedades.

Em certas ocasiões, como ocorreu em 1640, as tentativas de proibir definitivamente a escravidão indígena geraram verdadeiras revoltas, obrigando a Coroa a negociar. Na época, os jesuítas estavam empenhados em obter a proibição das expedições dos paulistas às missões do Paraguai em busca de cativos, conhecidas como "bandeiras" e completamente ilegais. Não foi difícil obter do papa e do rei a proibição específica de tal atividade, o problema foi colocá-la em prática. Por conta disso, os jesuítas foram sumariamente expulsos de São Paulo. No Rio de Janeiro, por pouco não aconteceu o mesmo: quando os moradores ficaram sabendo da notícia, dirigiram-se enfurecidos à residência dos padres. Alguns, mais exaltados, gritavam: "Mata, mata!". Diante da ameaça, os jesuítas recuaram e deixaram as coisas como estavam. Dessa vez, como em muitas outras, os colonos ganharam.

O cenário só se modificou no final da década de 1750, quando o secretário de Estado do Reino de Portugal, futuro Marquês de Pombal, declarou a absoluta e definitiva liberdade indígena. O Diretório dos Índios propunha a inserção dos índios na sociedade colonial em condições de igualdade com os súditos de origem portuguesa. A Coroa pretendia assim criar uma massa populacional capaz de ocupar o território brasileiro, especialmente as áreas de fronteira em disputa com a Espanha. Por um lado, os índios tiveram dificuldades em lidar com a nova realidade, que previa uma série de mudanças culturais, como a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa. Por outro, receberam bem certas medidas, como o acesso a cargos geralmente restritos aos luso-brasileiros, como oficiais camarários e militares.

De maneira geral, os índios fizeram um uso bastante ativo do Diretório em diferentes partes do Brasil. Muitos já possuíam uma longa experiência com a sociedade colonial e sabiam utilizar os recursos disponíveis a seu favor. Índios que estavam em situação de cativeiro irregular, por exemplo, conseguiram obter a liberdade recorrendo à Justiça. Sua lenta e progressiva conquista de direitos começava, de fato, ali.

Texto de Elisa Frühauf Garcia

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