domingo, 21 de outubro de 2012

JAPO PORÃ - o "fazer bonito" guarani



Discutir o senso de beleza em sociedades indígenas exige-nos um primeiro exercício de relativização de nossa percepção estética. Para começar, é necessário que nos disponhamos a enxergar a beleza não necessariamente nas manifestações que costumeiramente entendemos como artísticas, mesmo porque nem sempre será possível identificar um domínio específico definido enquanto tal nestas sociedades.

Na sociedade Guarani Mbyá, tanto nos momentos da produção do que poderíamos chamar o bem-estar cotidiano entre pessoas que partilham a convivência, e o do contexto ritual da reza, em que o canto-dança ocupa lugar central, estaria implicada a beleza enquanto aspecto fundamental da humanidade inspirada por qualidades divinas. Noutras palavras, viver como humanos envolve um sentido do belo, qualidade originalmente pertencente ao mundo dos deuses, mas que deve ser constantemente apropriada e atualizada nas condutas humanas, sem o que a existência das pessoas mbya torna-se, no limite, insustentável.

A palavra PORÃ pode ser traduzida como “bonito” ou “agradável” (MONTOYA), adjetivo que qualifica, por exemplo, um cesto bem feito, ajaka porã, ou um lugar de “boa mata”, ka’aguy porã. Pode, também, corresponder ao advérbio “bem”, como em “orovy’a porã” (“ficamos bem alegres”), ou na expressão rotineira de quem pergunta ou afirma um “estar bem”: -iko porã.

Em sua acepção mais sublime, porã corresponde às próprias divindades mbya: Mba’e Porã kuéry, os “seres bons”, os Deuses (CADOGAN). Qualifica os alimentos, objetos e capacidades que se originam destes: tembi’u porã, a “boa comida” que as divindades teriam deixado aos Guarani, tape porã, o caminho posto pelas mesmas, ou as “belas palavras”, ayvu porã, que dariam origem mesmo à existência dos humanos e a faria continuar na Terra.

Quando referida ao domínio divino, a noção de beleza é investida de imagens elaboradas sobre as formas com que os Deuses se enfeitam e enfeitam o mundo. A poesia dos textos colhidos por Cadogan no Ayvu Rapyta (1959) é farta em exemplos: as formas distintas de luminosidade, a neblina vivificante, os vales e florestas que desenham o relevo da Terra, o orvalho que brota nas mãos daquele que se dedica “fervorosamente” na reza (...).

Por sua vez, na expressão cotidiana iko porã, o termo assume grande abrangência, ao referir-se ao que se pode obter de bom e bonito na vida. “Estar bem” remete ao estado de ânimo das pessoas, que, conforme sabem os Mbya, pode alterar-se de um dia para o outro ou de uma a outra seção de um mesmo dia. É estar com saúde e “alegre” (vy’a), com disposição para algum afazer e para o convívio com aqueles que estão por perto.

Convivendo entre mulheres, é comum que se questionem mutuamente sobre o estado de nossas crianças. Alguns indicativos importantes de que “estavam bem” diziam respeito ao “mamar bem” (kambu porã), “dormir bem” (ke porã) e o “não chorar (demasiadamente)” (ndojae’oi), sinal de que as mesmas estariam se alegrando na condição atual de convívio com os parentes que lhe acolheram na Terra. Tanto para estas, a partir de certa idade, quanto para os Mbya em geral, alguns aspectos são centrais na definição do estar bem: a aceitação de alimentos - o querer comer ou o “comer bem” (karu porã) - e a capacidade de erguer-se (puã) e andar (guata).

As expressões acima, que remetem diretamente a certas condições físico-emocionais das pessoas, ganham sentido efetivamente na relação estreita que carregam com o parentesco e o tema da alegria ou satisfação pessoal. Homens e mulheres adultos que acolhem uma criança devem fazer o possível para alegrá-la, satisfazer as demandas que manifeste; a criança, por sua vez, pode, ainda assim, “não gostar”, “não se alegrar” (ndovy’ai) e, portanto, não querer ficar entre eles, isto é, escolhendo morrer. Como ocorre com muitos povos indígenas sul-americanos, o aparentamento aqui demanda um trabalho que deve ser continuamente realizado, sob o risco da perda de indivíduos que tornam-se parentes de Outros, ou, melhor dizendo, de outras espécies de gente.

Estas observações chamam a atenção para o seguinte: quando está em foco o bem-estar das pessoas mbya, necessariamente estão também em foco maneiras de agir, disposições que se atualizam naquele(a) de quem se diz estar ou não bem e de outras pessoas que, pondo-se em relação com ele(a), produziram-lhe algum efeito “bom/bonito” ou “mau/feio”.

“Fazer bem” ou “fazer bonito” (japo porã) contrasta com “fazer mal” ou “fazer feio” (japo vai), expressão que se usa no comentário de uma injúria dirigida por alguém contra outrem, ou, ainda, da feitiçaria, o extremo oposto do comportamento bonito/bom entre os Mbya. Aqui o sentido do bom/bonito leva-nos à abordagem de valores da socialidade. O bem-estar, matéria de cada pessoa, que deve ficar atenta para os indícios de maus estados físicos-emocionais que possam estar se instalando, é fruto de um agir bem, que os Mbya definem como inspirado por capacidades transmitidas pelos Deuses. Estas compreendem desde os modos cotidianos de fala até os saberes especializados usados na cura de doenças que devem ser disponibilizados para os que deles necessitem.

Inspiração pessoal, isto é, o que cada pessoa adquire de sua comunicação com o mundo divino, seja na reza, no sonho ou outras formas de “concentração” – como diz uma tradução mbya –, combina-se aqui com uma ética mbya da boa convivência, fundada na moderação e no reconhecimento da autonomia de cada um para as escolhas que lhe caibam.

Uma perspectiva analítica que tem sido desenvolvida por diversos estudiosos de sociedades amazônicas, a partir principalmente dos trabalhos de Joanna Overing, traz para o centro das atenções a questão da “convivialidade” – os valores e processos que estariam implicados na produção do cotidiano.

Tomando por base a noção de Vico do “sentido da comunidade”, Overing e Passes propõem que, entre os povos amazônicos, o senso de comunidade compreende uma “estética da ação”, ou seja , o sentido moral e político do bem comum vinculando-se a um agir estético, onde o comportamento apropriado é definido como bonito e agradável. Assim, pode-se reconhecer, com propriedade, artes como as de cozinhar, educar crianças, trabalhar, comer etc.

Tais estudos têm apontado a importância da observação dos espaços domésticos na análise da socialidade, desviando o enfoque das estruturas para as práticas cotidianas e as relações interpessoais, reconhecendo um lugar importante à produção diária das emoções a partir das ações pessoais, etc.

Sob a inspiração primeira da etnografia de Irving Goldman, que Overing toma para pensar o “senso de comunidade” deste povo e o dos Piaroa, e também a partir de um conjunto de trabalhos desenvolvidos recentemente pela escola americanista britânica, alguns pontos importantes sobre a “convivialidade ameríndia” vem sendo elaborados. Entre eles, dois particularmente merecem destaque: o tema do conforto emocional e o dos modos pessoais de agir, isto é, do “lugar da pessoa pelo que ela faz” ou por “como age”.

O tema da satisfação pessoal – que articula-se, na experiência dos Mbya, aos deslocamentos constantes entre aldeias e alteração de contextos de convivência –, demonstrou ocupar um lugar central nas práticas e discursos cotidianos. Uma atividade que se escolhe ou se deixa de fazer, uma saída que se resolve sem demora ou mesmo um vínculo matrimonial que se desfaz sem aviso, são sempre eventos tematizados pelos Mbya nos termos das disposições pessoais, entendidas como meio de solução para situações em que não estariam (mais) “ficando tranqüilas” ou “alegres” as pessoas envolvidas. Encontrar alternativas noutros lugares e contextos relacionais é algo que está sempre no horizonte de homens e mulheres mbya, e que se visualiza como possibilidade de animar a existência ou, conforme outra maneira de dizer o mesmo, evitar a doença.

O belo e agradável na condição de quem está ou fica bem (iko porã) se liga aos estados emocionais definidos pelos Mbya como alegria e tranqüilidade. O conforto emocional entre os Cubeo de que nos fala Goldman remete a um tema clássico na etnologia sul-americana que encontra grande elaboração entre os Mbya: o da evitação da raiva. Cientes da possibilidade de atualização da raiva, ou da antipatia, os Mbya desenvolvem métodos preventivos-curativos dos efeitos de “dor” ou “doença” que elas podem causar.

Conforto emocional é sempre algo que põe em questão a relação que se mantém ou se desfaz com outras pessoas. Assim, de crianças pequenas que choram, não se alimentam diz-se freqüentemente que estariam descontentes com o pai ou mãe que, no contexto de uma relação de casamento desfeita, partiu. Parentes que cuidam, então, da criança, deverão buscar alegrá-la, animá-la, para que retome a boa disposição, a saúde.

Por sua vez, há grande consenso em torno da prática de não se permanecer numa relação conjugal em que não se está alegre, de modo que muitos casamentos se desfazem. Ora, de modo anunciado, explícito, ora com a “fuga” (java) do homem ou mulher envolvidos. Uma questão importante a partir destes eventos é a do tipo de sentimento/disposição que os mesmos fazem desdobrar. Parceiros deixados por antigos cônjuges, quando questionados diretamente sobre o ponto, sempre afirmaram “não ficar com raiva” do ex-cônjuge. Por outro lado, é bastante comum entre adultos, homens e mulheres, a presença de alguma forma de doença ou mal-estar que teria sido causada pelo “mal feito” ou o “fazer feio” (japo vai) de um ex-parceiro ou parceira que teria se enraivecido (gueropoxy) com quem rompeu a relação.

Tal qual na doença enviada por “espíritos-donos” (ja) aos Mbya que passam pelos lugares no mato e cachoeiras em que aqueles habitam, a antipatia pode atualizar-se na relação entre pessoas, e, no seu maior grau de intensidade, tornar-se raiva (poxy) que leva ao desejo de matar o outro. É o caso da feitiçaria, sempre dita ser feita para fazer durar pouco a vítima, e, também, o do homicídio.

Ação e intenção, portanto, estão intimamente ligadas e os estados físico-emocionais são, ao mesmo tempo, o meio e o resultado da sua atualização. Uma das formas de expressão do “estar tranqüilo” é “não ligar” (iko rive). Não se afligir com uma maneira indelicada ou atitude não-cooperativa de outrem, de modo a evitar que o desconforto se instale, e, com ele, um processo materializado de doença. Os processos pessoais se desenvolvem, assim, no fluxo de intenções com potência de ação e ações intencionadas que se cruzam nos espaços de convivência.

O agir bonito ou feio se liga diretamente à produção de estados de saúde ou doença, tranqüilidade ou inquietude, condições boas para se viver ou falta de disposições fundamentais para manter a vida. Isto é, para si mesmo e também para os que estão presentes nos contextos variados que se sucedem na trajetória dos Mbya. Habilidades pessoais são um aspecto importante, reconhecido, por exemplo, na disposição para preparar remédios do mato que uma mulher detém, na capacidade de aconselhar que um velho ou velha demonstram, mas é sempre na disponibilização das próprias capacidades a outras pessoas, conforme a ética do parentesco mbya, que efetivamente se “age bem”. Entre os Mbya, a beleza é relacional.

Não há arte maior entre os Mbya que a vocal. A afirmativa tem validade geral e nos remete a um aspecto destacado por estudiosos de diversos grupos tupi-guarani: o do lugar central da oralidade para os mesmos (VIVEIROS DE CASTRO, FAUSTO, entre outros). Aqui nos valerá para a análise de dois momentos da produção da bela-agradável-boa maneira de viver entre os Mbya: o do trato cotidiano entre as pessoas e o do contexto ritual da reza, em que as capacidades divinas tornam-se “palavras belas” (ayvu porã) - cantadas ou pronunciadas de forma emocionada.

A arte da boa conversa, conforme pode ser observada no cotidiano de uma aldeia mbya, se insere numa arte maior, do comedimento, da moderação, da procura não-aflita que define uma ética-estética válida não apenas para as relações interpessoais, mas também para a procura de alimentos, a busca de meios materiais de subsistência, ou, ainda, para o processo de aquisição de saberes curativos, etc. O que se pode obter como recursos de toda espécie para a existência demanda, enfim, da pessoa mbya uma atitude comedida e paciente, pois que se aprende aos poucos, as verdades não são reveladas todas de uma só vez pelos Deuses, os alimentos aparecem em nosso caminho aos poucos. A vida se desenrola a cada dia, cada um destes trazendo consigo desafios e possibilidades à “sabedoria” (mba’ekuaa) de cada um e ao agir vinculado à mesma.

As etiquetas de mesa, os modos de andar e de se visitar e conversar que são mais apreciados entre os Mbya sempre chamam a atenção dos ocidentais. Quando se convive com pessoas mbya, é inevitável o confronto entre suas maneiras de não se afligir com coisas que são;tão comuns entre nós, tais como o cuidado de crianças, a previsão quanto ao ter o que comer amanhã, a disciplina quando se trata de conhecer algo, etc. João, um mbyá casado em Parati Mirim, questionou-se, certa vez, sobre como seria possível ao branco (jurua) “aprender preocupado”. Referia- se, neste caso, a um rapaz branco conhecido, que ele teria encontrado na cidade e que, aos seus olhos, estava transtornado (suava e demonstrava alto grau de nervosismo) por conta de uma prova que faria naquele dia. “Aprender [estando] preocupado” – forma típica de nossa experiência escolar, diga-se de passagem – é algo absolutamente incompreensível para uma perspectiva que define, no extremo oposto, a tranqüilidade como condição para a boa convivência, que é, simultaneamente, meio e produto do conhecimento.

A noção de conhecimento merece atenção. O verbo “saber” (kuaa) compreende não apenas uma dimensão da memória da experiência vivida ou do que foi “contado” (mombe’u) por outras pessoas, mas também impressões que ganham forma emocional e física que podem vir em sonhos ou outras formas de comunicações originadas pelos Deuses. Algo que “vem no sonho” pode não se transformar necessariamente em conteúdo interpretado com clareza, mas impressão físico-emocional de um acontecimento por vir. Um mal-estar que deixa a pessoa sem ânimo para conversar, brincar com as crianças que vivem próximas a ela, pode ser reconhecido como algo que se está sabendo (intuindo) sobre a atual condição ou eventos prováveis, conhecimento que, por sua vez, pode e deve levar a pessoa a encaminhamentos diversos de sua vida. No caso de fazê-la tomar decisões que resultem em estados renovados de ânimo, que a alegrem, são entendidos como um “bom conhecimento” ou diz-se que “sabe[-se] bem” (kuaa porã).

Não há meio mais apropriado à atualização de “bons saberes” que o oral. A respeito disto, a própria alma-nome (nhe’ë) de cada pessoa mbya é “palavra”, potência de comunicação com seus “pais” ou “donos”, os nhanderu (“nossos pais”) que as enviam para nascer na Terra. São palavras ou falas (ayvu) que estas divindades enviam também, ao longo da vida de cada pessoa (mbya), para capacitá-la para a vida terrena, que só é possível preservar com os saberes e poderes oriundos daqueles: os nomes, os remédios, o saber xamânico associado ao uso do tabaco.

Igualmente entre os que partilham a existência terrena, a transmissão de conhecimentos tem lugar privilegiado na fala. Os velhos e velhas orientam os mais novos em sessões de “aconselhamento” (mongeta: “aconselhar”) nas opy (casas rituais) ou em falas demoradas feitas na própria casa, quando jovens e adultos se encontram sentados, por exemplo, pela manhã, em torno do fogo que prepara o ka’a (mate).

Mas não apenas nestes momentos podemos reconhecer uma arte da fala. Para além destes discursos aconselhadores, em que as posições de quem fala e quem escuta ou deve ouvir atentamente (japyxaka) se distinguem claramente, a conversa cotidiana é ela mesma um lugar importante da prática desta arte.

A conversa entre aqueles que devem se tratar como parentes (etarã) é justamente uma conversa aconselhadora, pautada na delicadeza de quem fala e no reconhecimento da autonomia de quem escuta. A tematização sobre a possibilidade de se “acreditar” (jerovia) ou não no que disse um parente mais velho, como pai ou mãe, ou mesmo um opita’i va’e (xamã), presente tanto nos mitos quanto em narrativas sobre eventos atuais, aponta que há sempre uma abertura na consideração da “verdade” que pode-se obter via conselho de outros (normalmente mais velhos) ou via a própria capacidade de percepção.

A conversa entre vizinhos, pessoas que se encontram por caminhos nas aldeias mbya ou se visitam é normalmente objeto de cuidado especial. Nunca deve ser excessiva. É a fala branda e agradável, bonita, que não produz más disposições (antipatias) nos que a ouvem. Esta é a boa conversa que se diz inspirada pelos Deuses, a fala que aconselha branda e continuadamente. Não impositiva, mas atenta aos processos que podem estar envolvendo os relacionados.

Se alguém, ao se levantar pela manhã, visita uma casa vizinha e conta seu sonho, espera normalmente daquele(a) que ouve algum comentário que possa auxiliá-lo na compreensão do que “conta o sonho”. E mais, dos cuidados que a situação possa demandar. O sonhador pode, após ouvir tal comentário, sentir-se mais ou menos convencido da “verdade” nele contida, dispondo-se em algum grau a seguir suas indicações. Mesmo em se tratando das impressões de um especialista, a forma que a conversa assume é idealmente branda. A propósito, a primeira medida freqüentemente tomada por especialistas quando recebem alguém que procura sua ajuda por sentir algum incômodo é justamente a de pedir que a pessoa “conte” (mombe’u) de seu estado. Isto é, a consulta ao pajé começa sempre como conversa.

As escolhas de palavras agradáveis em encontros fortuitos nos pátios são também facilmente observáveis. O tom de brincadeira não excessiva é bastante comum nos momentos em que se cruzam dois homens ou mulheres na estrada ou em ruas das cidades vizinhas às aldeias. Por outro lado, são ditas “más falas” ou “falas feias” principalmente as falas acusativas ou o uso de palavras em atos feiticeiros, que, invertendo a ética do cuidado ao parente, representariam agressão produtora de doença e morte.

A “estética do cotidiano” mbya, que se produz de modo privilegiado na fala, parece poder ser descrita como modo contínuo e moderado de comunicar impressões voltadas para o bem-estar daqueles com quem se vive junto. Não criar antipatias nem antipatizar-se são temas importantes dos versos no Ayvu Rapyta.

A moderação, por sua vez, não deve resvalar no estar alheio ao que outro mbya diz. É certo que a expectativa entre os que se tratam como parentes é outra. Mas também há um valor positivo do “não ligar”, noutros contextos discursivos. Assim, dizem os Mbya que, para viver bem entre eles, “tei ke reiko rive” (“tem que não ligar”), isto é, não importar-se com diversas coisas, não se afligir com algo que alguém diga, enfim, ficar tranqüilo ainda que lhe sejam dirigidos maus olhares e palavras. A moderação é, portanto, arte do tato na fala e na escuta, arte de fazer brotar, das palavras pronunciadas e escutadas, bons-belos efeitos, para si mesmo e para quem mais participe destes contextos. Num outro nível, esta arte se estende aos que não poderiam ouvir efetivamente os sons das palavras pronunciadas. É o que se diz da reza.

A reza é uma experiência íntima, e, ao mesmo tempo, que reúne pessoas mbya. Pode-se rezar de onde quer se esteja, pode-se “ouvir a palavra de Nhanderu” de onde a pessoa “[tenha] concentração”. Mas não há lugar mais apropriado para fazê-lo que a opy. Concentrando as habilidades de quem vem até ela para cantar, dançar, pronunciar “belas palavras” ou curar doenças, pode-se dizer que a opy, a “casa de reza”, condensa o fluxo de capacidades enviadas pelos Deuses à Terra para propiciar o “bem viver” (iko porã), no sentido mais pleno da expressão, à humanidade mbya.

Cantos, palavras ditas de forma emocionada, poderes curativos, como o de “ver a doença” e extraí-la, são todos intensivamente utilizados no contexto do ritual da reza nas opy. E não há nada que se realize aí que não esteja em conexão com as expressões vocais. Desde o assobio característico que marca o ato de sucção da doença pelos xamãs às invocações em frases que o(a) dirigente faz ao som do mbaraka (violão de marcação rítmica) e os mboraei, cantos “levantados” na opy e acompanhados por coro de voz e dança, é sempre pelos ouvidos que o clima da reza nos envolve. É certo que os sons são precedidos pelo enfumaçamento da casa, assim como as curas, sempre feitas em meio ao uso abundante do tabaco pelo xamã e seus auxiliares.

Veículo da comunicação entre Deuses e humanos, o tabaco favorece o que se realiza fundamentalmente como forma vocal: saberes que se “ouve” das divindades, invocações dirigidas a elas, palavras que se “erguem”, assim como a própria “alma” ou nhe’ë, que se manifesta como “dizer”.

Os Mbya dizem que o mboraei, a música que se faz na opy, é algo que as divindades “fazem descer” (mboguejy) ali mesmo. É canto e dança que, descidos dos Deuses, devem ser levantados na reza para animar os que os entoam. A reza, portanto, fortalece física e espiritualmente seus participantes e dizem os Mbya que eles só continuam como etnia até hoje por que a fazem, isto é, “não esqueceram [a relação com] Nhanderu”.

O “fazer bem” aqui alcançaria uma amplitude tal que os resultados benévolos - em saúde e bem-estar - da reza se espalhariam por outras aldeias, dizem. Como se o tempo-espaço da reza produzisse uma espécie de reunião dos humanos, filhos e filhas de Nhanderu espalhados por diversos lugares na Terra.

Mas se a reza se estende desta maneira, reunindo a humanidade mbya, outro aspecto da “reunião” na reza merece ser considerado. Refiro-me à dimensão afetiva e a intensidade emocional que marcam a experiência de cantar e dançar na opy, de ouvir a reza e animar-se nela, de fazer junto a reza. Dizem os Mbya que o simples “entrar na opy” é suficiente para que alguém receba os bons efeitos da reza. Sentando-se ali, mantendo a “concentração” (ou seja, estando com o pensamento voltado para o que pode vir, como ensinamento/capacidade, dos Deuses), já estaria a pessoa se beneficiando, se “fortalecendo”, se sentindo bem. Melhor ainda, observam eles, se a pessoa se anima e levanta de seu assento para cantar e dançar, junto com outros participantes, os mboraei feitos no meio da casa.

Não há regras rígidas de participação. “Só entra na opy quem quer”, dizem os Mbya. E há de fato quem nunca entra e quem costuma fazê-lo diariamente, podendo estas disposições variar bastante ao longo da trajetória de vida das pessoas. Pode-se presenciar, durante determinado período em uma aldeia certo padrão na realização da reza, considerando a presença de participantes regulares no ritual, seus estilos de fazer a reza, etc. Contudo, o clima produzido a cada sessão de reza guarda efetivamente algo de imprevisível.

A música feita nas opy, levantada por um dirigente homem ou mulher ou puxada por rapazes que tocam o mbaraka, trazendo-o junto ao peito, cantada em um timbre específico pelo coro de voz e dança, acompanhada pela marcação dos takuapu (taquaras rítmicas executadas pelas mulheres) e dos mbaraka mirï (chocalhos executados pelos homens), e frequentemente também pelos rave’i (espécie de rabeca tocada por rapazes), é sempre um fazer bonito, podemos dizer. Originada no mundo divino, é algo que traz em si beleza e cuja execução exige capacidades pessoais que são admiradas pelos Mbya: o timbre da voz de uma dirigente, a energia de um puxador de mboraei, a persistência na dança de determinadas mulheres, a agilidade de um rapaz na dança chamada xondáro, etc.

Se esta arte vocal mbya é reconhecida como expressão profunda do “bom/bonito” que os Deuses fazem manifestar na Terra, propicia, também, o que parece ser a experiência mais intensa que se pode sentir na reunião com outras pessoas mbya. Como observei anteriormente, há certo grau de imprevisibilidade no fazer a reza. Os mesmos participantes não experimentam provavelmente da mesma maneira a reza a cada dia que dela tomam parte. O clima criado nas opy pode variar, envolvendo mais ou menos pessoas, fazendo durar mais ou menos uma noite de reza, etc. Mas não há quem freqüente uma destas casas de reza mbya que não reconheça o envolvimento emocional que aí se produz. Não há quem não sinta a emoção que a música cantada e dançada aí nos causa.

O ponto de destaque aqui é o da produção de um estado emocional que os Mbya traduzem como “alegria”. “Levantar” cantos-reza na opy, com a voz, os instrumentos e o próprio corpo, na dança (jeroky) deixa as pessoas “alegres” (vy’a), cria um estado de animação tal que se faz estender ao ponto de certos participantes desfalecerem na fileira de dança. Enquanto o dirigente dá continuidade à música, repetindo uma seqüência de frases cantadas ao som do mbaraka, o coro não pára de acompanhá-lo. Algum participante começa a demonstrar sinais de esgotamento, os companheiros da fileira de dança o sustentam, fazendo-o persistir na dança. E, se depois de um tempo, a mulher ou homem desfalece, caindo na opy, alguém vem tratá-la(o) com o petÿgua (cachimbo), reavivando a pessoa com a fumaça do tabaco. Sobre esse “cair quente [devido ao ‘calor’ da opy]” (akuo’a) os Mbya comentam que é Nhanderu mesmo que o faz, e que neste momento sairia, pelo suor, toda doença ou indício de doença que estivesse habitando a pessoa.

Cura e intensa alegria afetam, então, os que se põem a cantar e dançar juntos na opy. Emoção que se materializa no corpo das pessoas e cria um clima intenso entre elas, pelo que experimentam ali mesmo. O que a reza produz, portanto, resulta da experiência mesma de fazê-la. O estado “alegre” que espera-se dela não está absolutamente garantido, mas se liga ao envolvimento emocional dos presentes, que vincula-se, por sua vez, a qualidades estéticas reconhecidas na execução das vozes e no envolvimento dos corpos.

Aqui estão em foco a beleza das palavras pronunciadas em elaboradas metáforas que compõem o que os Mbya chamam a “língua da opy” (que só alguns velhos e velhas dominariam, dizem), a habilidade no canto, o vigor na dança. Não apenas o que se reza/canta importa, mas como se faz isto. Propiciar o sentimento de “alegria” aos que participam de uma sessão parece ser constantemente uma expectativa dos dirigentes. É comum, quando se está visitando a opy de outra aldeia, ouvir, a certa altura, a pergunta “revy’a pa?” (“você está contente?”), sentimento que pode-se conceituar como resultado direto da participação no ritual e na “inspiração por Nhanderu”, mas que se reconhece efetivamente como algo experimentado por alguém.

É importante perceber o lugar central que ocupam a dimensão afetiva e a experiência corporal na abordagem da reza e de seus significados. O que a reza produz de bom-bonito é sentido-reconhecido sensorialmente, se manifesta no ato mesmo do fazer o canto-dança, ou, usando uma expressão mbya, é algo que se experimenta “com o corpo”.

Resumindo: conceitualmente, o que é “bonito” e “bom” tem origem divina, é inspirado pelos Deuses. Bons caminhos, bem-estar e saúde, belas palavras e cantos, tudo se origina em Nhanderu. Por outro lado, o “bonito-bom” é, antes de tudo, sentido. Qualidades boas, bonitas são efetivamente experimentadas, na convivência, na reunião na reza, desdobrando-se em capacidades existenciais. “Fazer bem”, “fazer bonito”, “sentir bem”, gozar do que é belo na vida são experiências vividas, sempre em um mundo compreendido como feito de relações (em movimento): relações entre pessoas que, por sua vez, se relacionam a todo momento com potências ou qualidades “bonitas” ou “feias” que o habitam.

Baseado em texto de Elizabeth Pissolato

2 comentários:

  1. Descobri hoje por acaso o seu blogo. Muito bom. Parabéns por difundir estas idéias. Abçs

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    1. Obrigado, meu amigo. Que eu possa ser verdadeiramente um chacaruna.

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