segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A RELIGIÃO GUARANI


Pois é isto, meus irmãos, minhas irmãs, para obtermos as normas de obstinação,
normas da completude,
as normas da completude para que nós chegássemos à completude
nós nos erguemos no esforço.
Como deveremos nos conduzir à verdade?
O que disse, na verdade, Nhande Ru Papari?
Como ele viveu, na verdade?
Como Nhande Ru Papari, para o seu próprio futuro tão bem soube, na verdade?
Conformemente a isso, de novo vamos nos conduzir meus irmãos, minhas irmãs.
Graças a isso já nos erguemos no esforço
com o bastão – insígnia que Nhande Ru Caraí Ete concebeu
Nós o brandimos, nós nos abaixamos, nós nos reerguermos, nós – os eleitos.



A Hélène Clastres alguns aparentes silêncios dos índios Tupi chamam a atenção. E que segundo os primeiros relatos de missionários e outros colonizadores, eles pareciam ser "gente sem lei": povo e cultura sem a idéia de um deus, sem o seu temor, sem mais nada do que vagos nomes dados a algum fenômeno da natureza. A própria noção do sagrado parecia ser desconhecida aos tupi-guarani. Ali estava uma gente que ao contrário de outros índios encontrados na rota dos descobrimentos, parecia não possuir ritual algum de qualquer tipo de culto religioso. Não possuindo em aparência o conhecimento de um deus, não pareciam ter crença alguma em outros seres: maléficos ou demoníacos. E se aos primeiros jesuítas espantava uma "gente sem fé”, consolava a desconfiança de que, pelo menos entre eles, não seria necessário combater "falsas crenças", pois, a um primeiro olhar piedoso, parecia não haver nenhuma.

Depois do padre Manoel da Nóbrega e dos primeiros missionários, todos os viajantes que visitaram os índios corroboraram esta afirmação: não somente eles não tinham conhecimento algum do deus verdadeiro – o que, tratando-se de selvagens, a ninguém surpreendia – mas tampouco tinham falsas crenças. Esse traço notável das nações pós-guarani espanta – ainda que anime, pelo menos, os missionários: sua tarefa de evangelização vê-se simplificada, por não terem de combater crenças já estabelecidas. Rebeldes à idéia corrente sobre o que deveriam ser os pagãos – adoradores de divindades múltiplas e praticantes de cultos idolatras – esses índios em nada acreditavam, não adoravam astros, nem animais, nem plantas, nem contando com padres ou lugares sacros.

"Gente sem fé", teriam dito dos tupi-guarani os primeiros missionários. "Teólogos da América do Sul", escreve-se hoje, com alguma freqüência, a respeito dos Guarani. Que religião afinal era a deles? Em que crêem hoje e o que buscam? Em que as suas crenças se perderam do ritual antigo e da memória? No que se transformaram?

As palavras ñandé rekó, como sinônimas de algo como "modo de ser", "o nosso modo de ser", que o Guarani emprega para dizer em que, como e porquê se reconhece diferente dos demais, designa-se também a religião. Isto é o mesmo que dizer que entre os seus sub-grupos, um modo peculiar de ser, assumido e proclamado como uma identidade realizada como um sistema ancestral de crenças destinado a conduzir tanto a história de um povo quanto a conduta cotidiana de cada uma de suas pessoas, é definido como uma religião. Esta seria uma das razões pelas quais um mesmo sistema religioso, em princípio unívoco entre vários subgrupos e tribos, é bastante resistente a ponto de ser ainda quase integralmente a religião Guarani,após um tempo entre 450 e 300 anos de evangelização cristã. A oposição entre esta resistência nativa e uma criativa incorporação de temas e sujeitos do cristianismo é o que nos obrigará a um segundo momento de descrição etnográfica, adiante.

Guardadas as diferenças entre as culturas do sub-grupos Guarani, o que Egon Schaden resume a respeito da religião estudada por ele entre os Kayaowá do Mato Grosso do Sul, poderia ser estendido aos outros grupos.

Um lugar intermediário, morada de inúmeros deuses e espíritos que habitam os seus vários sub-espaços superpostos e a que os Guarani dão o nome de Yváraquy, existe entre a superfície da Terra onde vivem os humanos – Yvy-Yvíkatú – e algo equivalente ao firmamento, não exatamente pensado como um homem cristão do povo imagina o céu de sua fé – Yvá, Yvága, Yvánga. Entre os dois lugares extremos, no Yváraguy estão os deuses e os espíritos que amiude se comunicam com os vivos e que podem ser benéficos ou perigosos.

De acordo com certos sub-grupos Kayowá, Mbyá e Ñandeva, existe um deus supremo, um criador indiscutível do mundo terreno, sua ordem e a totalidade dos seus habitantes: Ñame Ramõi Papá. Os Kayowá do Amambabí, estudados por Egon Schaden, reconhecem em Ñamé Rumó Papá a pessoa de uma divindade suprema, mas não propriamente um criador. Um orvalho primitivo – Ysapy – deu origem ao embrião da Terra – Yví Reñoi – e também aos deuses que, tal como os humanos, surgiram de uma mesma "origem impessoal das coisas", criadora e não criada por deus algum: Djasaká.

Um casal de deuses supremos – criadores, ordenadores ou não do mundo terreno – estabelecem com os homens uma distanciada relação afetivamente parental: Ñané Ramói Papá é traduzido como "nosso avô", "nosso ancestral" e Ñandé Djary, sua esposa – mas não sua equivalente em poder e posição celestial – é traduzida como "nossa avó". Distribuídos por outras regiões celestiais, deuses menores prestam serviços a Ñamé Ramõi Papá na qualidade de Yvyrâidjá, os "senhores dos pequenos bastões".

Ñamé Ramõi possui deuses-filhos e entre eles merece destaque a pessoa de Pai Kwara, o deus lunar. É ele quem se relaciona com os homens e, desde a região superior do centro do céu, dirige suas vidas terrenas. E a ele – ou a seu equivalente em outros sub-grupos – que Guarani se sente estabelecendo uma relação cuja tradução católica seria a do devoto; "e a maior ventura que o devoto pode almejar é ver o sem plante de Pay Kwara. O empenho com que se pratica o culto, dizem os índios, visa, em última instância, a obter essa graça".

Afora esta divindade mais humanizada e mais diretamente próxima dos homens do que da natureza, os outros deuses intermediários vêm do Yváraguy à Terra. Suas visitas são percebidas por mudanças no ambiente natural, pois eis que são eles os responsáveis pelas tempestades, pelos trovões, pelo granizo e assim por diante. Mais longe do que o lugar dos deuses intermediários, existe uma espécie de região do Alto habitada pelo povo dos "Kayowá celestes", espíritos (dos mortos? de quem?) estreitamente ligados com os seres vivos da Terra. Estes Tavyterã eram sem morada definida e desconhecem o seu próprio destino.

Um pouco adiante chegaremos, com os Guarani, à Terra Sem Mal, cuja busca incessante bem poderia ser o símbolo do sentido de vida deste povo. O seu equivalente interior, subjetivo e pessoal poderia ser a idéia de aqwjdjé: tornar-se próximo, purificar-se como o divino; no limite, chegar ao lugar do Paraíso sem passar antes pela morte. Diversa de ser uma religião utilitária, centrada na relação cotidianamente mensurada pela distância entre as necessidades dos humanos, o seu poder de obter dos deuses ou intermediários a proteção, e a resposta a cada caso favorável por parte deles, aos Guarani o sagrado sugere a busca de um estado de proximidade da perfeição, que mais a aproxima das religiões de purificação do que de outras religiões tribais. Os deuses e, mais do que todos, Pay Kawrá são, como os humanos, pessoas corpóreas, vivas e atuantes, ainda que seus corpos sejam incorruptíveis e seus atos perfeitos, ou pelo menos próximos da perfeição. Esta similitude não apenas de aspectos, mas de destinos e relações sugere aos humanos serem como os deuses, não em poder – porque justamente esta distância estabelece a realidade das duas naturezas – mas em perfeição interior. Este sistema de crenças, tomado a partir de um exemplo de uma das tribos Guarani representa alguma mescla com o imaginário cristão. Mas que nada nos impeça de adiantar aqui uma conclusão de Egon Schaden e que, com diferenças de um para o outro, os estudiosos da cultura Guarani irão corroborar:

Certo é que a religião de todos os grupos da tribo que hoje vivem no Brasil, no Paraguai e na Argentina não cristã, mas a Guarani. De tudo o que de possível cristã se possa descobrir no conjunto de suas crenças, ritos e cerimônias conservaram-se apenas aspectos tangíveis e formais. O conteúdo é pagão.

Texto de Carlos Rodrigues Brandão

2 comentários:

  1. Gostei do pensamento de sermos como Deuses pela perfeição do ser. É a perfeita definição de um se(r)guidor.

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  2. Passando pra ler muitas coisas deliciosas... vi que voltou a escrever e atualizar isso com frequência... fiquei contente :)
    Beijo da amiga que te ama!

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