domingo, 23 de agosto de 2009

A FOLHA SAGRADA DOS INCAS


A coca – do quéchua KUKA – é uma planta nativa da Bolívia e do Peru: um arbusto de 1 a 3 metros de altura; casca esbranquiçada, folhas de cor verde oliva, flores pequenas e amarelas e o fruto vermelho, oblongo e carnoso. Em estado selvagem abunda nos Andes até dois mil metros de altura. Os incas exaltavam este arbusto e os sacerdotes do Sol mastigavam e queimavam suas folhas em honra a divindades.

Achados arqueológicos mostram vestígios de uso das folhas de coca há 4 mil anos atrás. Nos Andes, tudo se faz com a folha de coca, desde a hora em que acordam até a hora em que dormem. Milhares de andinos elevam ao alto suas folhas de coca, seus pensamentos e sua devoção todos os dias, buscando a reciprocidade com aquela que nos dá o dom da vida, a Mãe Terra Pachamama.

Os peruanos e bolivianos até hoje têm o costume de PICCHAR, isto é, mascar as folhas para resistirem à fadiga e ao sono, bem como aos jejuns prolongados. Os peões não saem para o trabalho enquanto não fizerem seu ACULLICO – por na boca uma certa quantidade de folhas de coca, misturada com LLICTA (massa feita de batatas fervidas e kañiwa - planta do altiplano boliviano e peruano, que usada junto com as folhas da coca extrai melhor suas propriedades nutrientes e curativas).

A coca ainda tem um grande papel em todas as práticas religiosas dos povos andinos. Por exemplo, quando estão para empreender uma viagem ou um negócio, molham com saliva uma folha inteira e a colam na ponta do nariz; logo a seguir dão um sopro forte e olham para o lado que caiu, se para a direita, é sorte, se para esquerda é sinal de desgraça. Raras vezes empreendem algo, se a coca lhe anunciou má sorte. Antes de empreender qualquer coisa importante, oferecem coca a Pachamama, a Mãe dos cerros (Nevados). Quando vão à caça, fazem um buraco no chão, na boca do mato, e todos depositam uma oferenda de coca, invocando a Pachamama para que lhes seja propícia a caça. Em viagens pelas montanhas, nas vertentes e no encontro de dois montes, encontramos certos montinhos de pedra chamados APACHETAS, onde encontramos folhas de coca ofertadas pelos viajantes; é raro o viajante que passa e não tire da boca a folha que estás mascando para depositá-la ali para propiciar-se uma feliz viagem. Esse costume sé comum também entre o povo guarani do Paraguai.

Para os Aymaras e Quechuas, a folha da coca é sagrada! Como a hóstia dos cristãos. É utilizada em cerimônias sociais e rituais. Diz a lenda que quando Manco Capac, Filho do Sol, foi enviado do céu para ensinar aos homens a cultivar as terras, ele trouxe consigo a planta divina, cujas as folhas mascadas o faziam recuperar as forças perdidas pela altitude e trabalho duro do dia-a-dia. Foi ele quem a ofertou à humanidade, e os ensinou a plantar e usar.

Varias lendas foram adaptadas na época da conquista, mas sempre com essa característica de ser um presente divino para o ser humano, como a folha sagrada que concede dons divinos. Entre todas, a lenda de Khana Chuyma é a mais ilustrativa para referenciar o período da conquista do povo inca: conta a historia Khana Chuyma vivia em uma ilha no lago Titicaca e era o guardião do tesouro do Deus Sol. Ao ver que os espanhóis iam dominá-lo, ele jogou o tesouro no lago para evitar que fosse roubado. Capturado, Khana Chuyma resistiu às cruéis torturas sem dizer uma única palavra sobre a localização do tesouro, e foi finalmente libertado para então morrer. Naquela mesma noite, em grande agonia, foi visitado pelo Deus Sol que lhe disse: "Meu filho, você merece ser recompensado pelo seu enorme sacrifício. Faça qualquer pedido e eu irei realizá-lo." Ele respondeu: "Oh meu querido Deus, o que poderia pedir em tempos de dor e derrota como esse, se não a vitória de meu povo e a expulsão dos invasores?". O Deus Sol respondeu: "O que você me pede é impossível. Não tenho poderes contra o inimigo. Porém, antes de deixá-lo, gostaria de conceder-lhe algo sobre o qual tenho poderes". Khana Chuyma pediu algo que os ajudasse a suportar a escravidão e a vida dura que os esperava; algo que não era ouro. O Deus Sol lhe mostrou a planta de coca e disse: "Diga a seu povo para cultivar essa planta com carinho e colher suas folhas. Após secas, as folhas devem ser mascadas para que seu suco alivie seu sofrimento. Quando se sentirem exaustos de seu destino essa planta lhes dará nova vitalidade. Em suas jornadas através de terras altas, elas irá aliviar sua fome e frio, tornando a viagem mais tolerável. Nas minas onde serão forçados a trabalhar, o terror e a escuridão dos túneis será insuportável sem a ajuda desta planta. Quando quiserem olhar para o futuro, uma mão cheia de folhas jogadas ao vento revelarão os mistérios do destino, mas enquanto essa planta significará força, saúde e vida para seu povo, ela será maldição para os estrangeiros. Quando eles tentarem explorar suas virtudes, a planta irá destruí-los. O que para seu povo servirá de alimento, para os invasores criará conflitos". E essa é a MALDIÇÃO INCA: enquanto o homem branco fizer mal uso da planta sagrada, ela o destruiria... e eis que aí temos a cocaína, alterada quimicamente, destruindo muitas vidas.

A folha de coca, estigmatizada por ser a matéria-prima da cocaína, se transformou em um ingrediente saudável na produção de pães, sorvetes, bombons e balas, além de sabonetes e pasta de dentes. Vários estabelecimentos da cidade peruana de Cuzco passaram a usá-la com o objetivo de demonstrar que a planta sagrada dos povos andinos, além de combater o mal-estar causado por grandes altitudes (“mal de puna” ou “soroche”), também melhora o metabolismo, a oxigenação do sangue, a freqüência respiratória, tira a fome e ajudar em problemas estomacais, dores de cabeça e anemias.




Também é utilizada nos antigos rituais pré-colombianos. Os Paqos, sacerdotes andinos, usam uma CHUSPA, uma bolsinha de tecido ou de pele de lhama para carregar as folhas de coca. Fazem adivinhação através das folhas e também oferendas importantes para retribuir a Pachamama o dom da vida e seu sustento que vem da terra. A principal oferenda ritual chama-se K’INTU, que compreende três folhas de coca, sendo a maior folha é dedicada aos APUS, espíritos protetores da natureza que vivem nas montanhas e picos nevados. Os Apus são invocados em todos os rituais andinos. A segunda folha, mediana, é dedicada a Pachamama, mãe terra, nutridora, provedora da vida. E a terceira folha, de menor tamanho, representa a humanidade. Essas folhas são consagradas com um pequeno sopro ou com o hálito, que significa o sopro de vida que todos temos dentro de nós.

Há uma energia muito forte de identidade entre os povos andinos através das folhas de coca e é impossível dissociar um do outro. Entender o que representa a coca e seus usos, é compreender o legado ancestral, é compreender a essência desses povos que habitaram e habitam o altiplano boliviano e peruano, bem como as grandes altitudes. A conexão do povo andino com seus protetores e com a Mãe Terra é a essência de sua cosmovisão.

Baseado nos textos de Atila Barros e Tatiana Menkaiká

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