segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A RELIGIÃO GUARANI


Pois é isto, meus irmãos, minhas irmãs, para obtermos as normas de obstinação,
normas da completude,
as normas da completude para que nós chegássemos à completude
nós nos erguemos no esforço.
Como deveremos nos conduzir à verdade?
O que disse, na verdade, Nhande Ru Papari?
Como ele viveu, na verdade?
Como Nhande Ru Papari, para o seu próprio futuro tão bem soube, na verdade?
Conformemente a isso, de novo vamos nos conduzir meus irmãos, minhas irmãs.
Graças a isso já nos erguemos no esforço
com o bastão – insígnia que Nhande Ru Caraí Ete concebeu
Nós o brandimos, nós nos abaixamos, nós nos reerguermos, nós – os eleitos.



A Hélène Clastres alguns aparentes silêncios dos índios Tupi chamam a atenção. E que segundo os primeiros relatos de missionários e outros colonizadores, eles pareciam ser "gente sem lei": povo e cultura sem a idéia de um deus, sem o seu temor, sem mais nada do que vagos nomes dados a algum fenômeno da natureza. A própria noção do sagrado parecia ser desconhecida aos tupi-guarani. Ali estava uma gente que ao contrário de outros índios encontrados na rota dos descobrimentos, parecia não possuir ritual algum de qualquer tipo de culto religioso. Não possuindo em aparência o conhecimento de um deus, não pareciam ter crença alguma em outros seres: maléficos ou demoníacos. E se aos primeiros jesuítas espantava uma "gente sem fé”, consolava a desconfiança de que, pelo menos entre eles, não seria necessário combater "falsas crenças", pois, a um primeiro olhar piedoso, parecia não haver nenhuma.

Depois do padre Manoel da Nóbrega e dos primeiros missionários, todos os viajantes que visitaram os índios corroboraram esta afirmação: não somente eles não tinham conhecimento algum do deus verdadeiro – o que, tratando-se de selvagens, a ninguém surpreendia – mas tampouco tinham falsas crenças. Esse traço notável das nações pós-guarani espanta – ainda que anime, pelo menos, os missionários: sua tarefa de evangelização vê-se simplificada, por não terem de combater crenças já estabelecidas. Rebeldes à idéia corrente sobre o que deveriam ser os pagãos – adoradores de divindades múltiplas e praticantes de cultos idolatras – esses índios em nada acreditavam, não adoravam astros, nem animais, nem plantas, nem contando com padres ou lugares sacros.

"Gente sem fé", teriam dito dos tupi-guarani os primeiros missionários. "Teólogos da América do Sul", escreve-se hoje, com alguma freqüência, a respeito dos Guarani. Que religião afinal era a deles? Em que crêem hoje e o que buscam? Em que as suas crenças se perderam do ritual antigo e da memória? No que se transformaram?

As palavras ñandé rekó, como sinônimas de algo como "modo de ser", "o nosso modo de ser", que o Guarani emprega para dizer em que, como e porquê se reconhece diferente dos demais, designa-se também a religião. Isto é o mesmo que dizer que entre os seus sub-grupos, um modo peculiar de ser, assumido e proclamado como uma identidade realizada como um sistema ancestral de crenças destinado a conduzir tanto a história de um povo quanto a conduta cotidiana de cada uma de suas pessoas, é definido como uma religião. Esta seria uma das razões pelas quais um mesmo sistema religioso, em princípio unívoco entre vários subgrupos e tribos, é bastante resistente a ponto de ser ainda quase integralmente a religião Guarani,após um tempo entre 450 e 300 anos de evangelização cristã. A oposição entre esta resistência nativa e uma criativa incorporação de temas e sujeitos do cristianismo é o que nos obrigará a um segundo momento de descrição etnográfica, adiante.

Guardadas as diferenças entre as culturas do sub-grupos Guarani, o que Egon Schaden resume a respeito da religião estudada por ele entre os Kayaowá do Mato Grosso do Sul, poderia ser estendido aos outros grupos.

Um lugar intermediário, morada de inúmeros deuses e espíritos que habitam os seus vários sub-espaços superpostos e a que os Guarani dão o nome de Yváraquy, existe entre a superfície da Terra onde vivem os humanos – Yvy-Yvíkatú – e algo equivalente ao firmamento, não exatamente pensado como um homem cristão do povo imagina o céu de sua fé – Yvá, Yvága, Yvánga. Entre os dois lugares extremos, no Yváraguy estão os deuses e os espíritos que amiude se comunicam com os vivos e que podem ser benéficos ou perigosos.

De acordo com certos sub-grupos Kayowá, Mbyá e Ñandeva, existe um deus supremo, um criador indiscutível do mundo terreno, sua ordem e a totalidade dos seus habitantes: Ñame Ramõi Papá. Os Kayowá do Amambabí, estudados por Egon Schaden, reconhecem em Ñamé Rumó Papá a pessoa de uma divindade suprema, mas não propriamente um criador. Um orvalho primitivo – Ysapy – deu origem ao embrião da Terra – Yví Reñoi – e também aos deuses que, tal como os humanos, surgiram de uma mesma "origem impessoal das coisas", criadora e não criada por deus algum: Djasaká.

Um casal de deuses supremos – criadores, ordenadores ou não do mundo terreno – estabelecem com os homens uma distanciada relação afetivamente parental: Ñané Ramói Papá é traduzido como "nosso avô", "nosso ancestral" e Ñandé Djary, sua esposa – mas não sua equivalente em poder e posição celestial – é traduzida como "nossa avó". Distribuídos por outras regiões celestiais, deuses menores prestam serviços a Ñamé Ramõi Papá na qualidade de Yvyrâidjá, os "senhores dos pequenos bastões".

Ñamé Ramõi possui deuses-filhos e entre eles merece destaque a pessoa de Pai Kwara, o deus lunar. É ele quem se relaciona com os homens e, desde a região superior do centro do céu, dirige suas vidas terrenas. E a ele – ou a seu equivalente em outros sub-grupos – que Guarani se sente estabelecendo uma relação cuja tradução católica seria a do devoto; "e a maior ventura que o devoto pode almejar é ver o sem plante de Pay Kwara. O empenho com que se pratica o culto, dizem os índios, visa, em última instância, a obter essa graça".

Afora esta divindade mais humanizada e mais diretamente próxima dos homens do que da natureza, os outros deuses intermediários vêm do Yváraguy à Terra. Suas visitas são percebidas por mudanças no ambiente natural, pois eis que são eles os responsáveis pelas tempestades, pelos trovões, pelo granizo e assim por diante. Mais longe do que o lugar dos deuses intermediários, existe uma espécie de região do Alto habitada pelo povo dos "Kayowá celestes", espíritos (dos mortos? de quem?) estreitamente ligados com os seres vivos da Terra. Estes Tavyterã eram sem morada definida e desconhecem o seu próprio destino.

Um pouco adiante chegaremos, com os Guarani, à Terra Sem Mal, cuja busca incessante bem poderia ser o símbolo do sentido de vida deste povo. O seu equivalente interior, subjetivo e pessoal poderia ser a idéia de aqwjdjé: tornar-se próximo, purificar-se como o divino; no limite, chegar ao lugar do Paraíso sem passar antes pela morte. Diversa de ser uma religião utilitária, centrada na relação cotidianamente mensurada pela distância entre as necessidades dos humanos, o seu poder de obter dos deuses ou intermediários a proteção, e a resposta a cada caso favorável por parte deles, aos Guarani o sagrado sugere a busca de um estado de proximidade da perfeição, que mais a aproxima das religiões de purificação do que de outras religiões tribais. Os deuses e, mais do que todos, Pay Kawrá são, como os humanos, pessoas corpóreas, vivas e atuantes, ainda que seus corpos sejam incorruptíveis e seus atos perfeitos, ou pelo menos próximos da perfeição. Esta similitude não apenas de aspectos, mas de destinos e relações sugere aos humanos serem como os deuses, não em poder – porque justamente esta distância estabelece a realidade das duas naturezas – mas em perfeição interior. Este sistema de crenças, tomado a partir de um exemplo de uma das tribos Guarani representa alguma mescla com o imaginário cristão. Mas que nada nos impeça de adiantar aqui uma conclusão de Egon Schaden e que, com diferenças de um para o outro, os estudiosos da cultura Guarani irão corroborar:

Certo é que a religião de todos os grupos da tribo que hoje vivem no Brasil, no Paraguai e na Argentina não cristã, mas a Guarani. De tudo o que de possível cristã se possa descobrir no conjunto de suas crenças, ritos e cerimônias conservaram-se apenas aspectos tangíveis e formais. O conteúdo é pagão.

Texto de Carlos Rodrigues Brandão

domingo, 25 de setembro de 2011

MARAWATA - CALENDARIO ANDINO


O tempo é uma constante da natureza em que existimos e todas as civilizações do mundo desenvolveram sua maneira própria para compreender e ser relacionar com ele. A civilização Qolla, por exemplo, conta com dois calendários: o primeiro é o CALENDÁRIO AMAWTA, contendo as metáforas sobre a origem do tempo e suas respectivas idades; o segundo é o CALENDÁRIO QOLLA. Ambos, no entanto, têm referência astronômica e são calendários luni-solares.

Em sua versão ancestral, o calendário qolla sistematiza o ciclo solar, lunar e agrícola usando uma unidade de tempo chamada KUMI - um período de 20 anos, muito conhecida nos Andes e ainda hoje usada, sobretudo pelos mais velhos, que contam o tempo de 20 em 20 anos. O kumi é formado por cinco TAWA, e cada tawa tem quatro anos. Um tawa une-se ao seguinte por intermédio de um dia chamado JACH’A URU ou JUTUN P’UCHAY, que significa “O Grande Dia”.

O termo andino para significar o ano é MARAWATA.Mara significa “ano” na língua Aymara; em quéchua, mara é uma pedra especial, aquecida pelos raios solares e wata significa “reforço” ou “remendo”,com o sentido de sustentar algo. Portanto, MARAWATA significa “sustento do ano”. O marawata se expressa através da INTIWATANA (as amarras do Sol), um gnomo: uma coluna de pedra usada para acompanhar a passagem do ano através da sombra projetada pelo sol nas diferentes épocas. O campo dessa sombra é dividido em dois tirsu, que equivale a meio ano, e quatro taru, que é a quarta parte do ano. As estações do ano de acordo com o material lítico e as informações orais que nos chegaram, se traduzem em quatro PACHAS – indicada pelos quatro taru –, que são:
  • Juyphipacha (tempo do frio), começa em 04 de Maio e termina em 02 de Agosto. Em 04 de Maio acontece a FESTA DA CHAKANA, talvez a mais popular em todo Andes, sinalizada pelo Cruzeiro do Sul (Chakana) que atinge seu ponto mais alto no céu. No dia 21de Junho – solstício de inverno – acontece o INTIRAYMI ou a FESTA DO SOL. Essa festa começa a ser preparada a partir da lua nova antes de 21 de junho, e dura três dias antes e três dias depois solstício, ou seja, de 18 a 24 de junho.
  • Wayrapacha (tempo do vento), começa no dia 3 de agosto e acaba em 1º de Novembro. No dia 21 de Setembro – equinócio da primavera – acontece a QHUAYARAYMI ou FESTA DOS JOVENS
  • Jallupacha (tempo das chuvas), começa em 1º de Novembro e termina em 02 de Fevereiro. No dia 21 de Dezembro – solstício de verão – celebra-se o QHAPAXRAYMI ou A GRANDE FESTA DO SOL, festa da família.
  • Llamp´upacha (tempo do calor), vai de 2 de fevereiro a 2 de maio. No dia 21 de março – equinócio de outono – acontece o PAWKAR RAYMI ou FESTA DOS SÁBIOS, das pessoas mais velhas.


O ano qolla é composto por 13 meses lunares de 28 dias aproximadamente chamados PHAXIS, que começam sempre na Lua Nova.Em aymara, “phaxis” tanto significa “mês” quanto “lua”. Dessa forma, o ano tem normalmente 364 dias. Para equivaler ao ciclo solar, recebe um dia extra chamado MARAT’AQA ou WATAP’ITI, que significa “ruptura do ano”.

O Marat’aqa é considerado um dia fora do ano, um tinku – a ponte entre o ano velho e o ano novo. O tinku era tradicionalmente celebrado pelo confronto entre dois grupos – de jovens, sobretudo – que se enfrentavam fisicamente através de uma dança violenta, na praça principal da cidade ou em seu espaço comunitário central, deixando-a respingada de sangue. Representa o embate entre o novo e o velho. Hoje, esse confronto tornou-se uma competição de dança, mas os movimentos mantêm a agressividade original; vendo-os, compreende-se o que significaria quando dois grupos dançando dessa maneira se enfrentavam.

O Marat’aqa, por estar relacionado ao Sol, também é chamado de WILLKI – “o que derrama sua luz”. Por isso, em tempos mais recente, foi associado ao Intiraymi, “festa do Sol”, e sua comemoração passou do dia 03 de Maio para 21 de Junho.

O JACH’A URU ou JUTUN P’UCHAY, o “Grande Dia” que une um tawa a outro, é um dia de acréscimo que acontece a cada quatro anos. Também é chamado de WILLKASI, o “Encontro do Sol” e celebrado com grandiosidade.

Os meses aymarás têm uma orientação agrícola marcante:
1 – SAMAÑA - Mês em que a natureza diminui sua atividade e entra em processo de hibernação ou “SAMI”. Nesse tempo, nos Ayllus (comunidades) as pessoas terminam suas atividades agrícolas e se preparam para o ano seguinte.
2 – LOQAYA - Mês em que cai a neve, abaixando a temperatura. Logo o degelo irá alimentar as vertentes e arroios. No Ayllu se realiza a LOQTA ou OFERENDA A PACHAMAMA.
3 – QUPAÑA - Mês em que caem as primeiras chuvas. As pessoas começam a preparar a terra para a semeadura, revolvendo sua superfície, facilitando a penetração da água da chuva para que fiquem mais úmidas.
4 – WAKICHAÑA - Mês em que começa a semeadura dos vales. As pessoas do Ayllu começam suas hortas, alimentadas pela irrigação. Também preparam as sementes para o plantio, tão logo acabem as chuvas.
5 – SATAÑA - Mês da semeadura de milho nas partes altas e o plantio de batatas e forragem para os animais nas partes baixas.
6 - ALIRAYAÑA- Mês em as plantas começam a brotar. Os rebanhos são levados para os campos de pasto para que não entrem nas plantações e comam os brotos.
7 – IRNAQAÑA - Continua a rega da plantação e se reforça os canais de irrigação; cuida-se para que a água das chuvas se espalhe de maneira uniforme por toda a roça, para que as plantas cresçam sadias.
8 – QAWAÑA - Durante esse mês as chuvas aumentam em intensidade. As roças começam a se encher de ervas e os canais precisam de cuidados constantes, reforçando suas paredes, tirando a terra do fundo.
9 – URUCHAYAÑA - Neste mês as roças estão em seu máximo crescimento e plenitude. As pessoas do Ayllu dedicam canções às suas plantações e festejam com muita alegria a ANATAÑA.
10 – POQORAYAÑA - Nesse mês, as pessoas se dedicam à rega das roças que ainda necessitam de água, provocando o amadurecimento da folhagem. Extraem-se os primeiros produtos.
11 – ALLIRAÑA - Nesse mês começam as colheitas de batatas e algumas variedades de grãos. Quando o trabalho se intensifica, as pessoas se organizam em AYNI (trabalho comunitário).
12 – QAYRUÑA - Simultaneamente à colheita, começam a armazenar os produtos para que não percam sua umidade. Usam os QAYRUS, ou depósitos subterrâneos, que mantém os alimentos quase intactos e frescos por vários meses.
13 – PIRWAÑA - Parte dos produtos são armazenados nas casas, para consumo imediato ou usados nas feiras para troca de mercadorias. Os produtos secos são guardados nas PIWAS; entre eles, o “chuno”(batata desidratada) que pode se conservar por anos.

A semana de 7 dias imposta pelos conquistadores acabou sendo incorporada à cosmovisão andina. Sua popularização só foi possível por representar a quatripartição do mês lunar típico dos Andes e, portanto, ver as QUATRO PARTES que são tão caras aos povos andinos: as quatro semanas do mês representam as quatro partes de um território que se identificava exatamente pela quatripartição: TAWANTISUYO – “Os Quatro Cantos do Mundo”.

Os dias da semana, inicialmente, receberam nomes que dão uma idéia de mobilidade:
Nayruru =outro dia
Waluru = antes de ontem.
Wasuru =ontem
Jichhuru = hoje
Qharuru = amanhã.
Jurpuru = depois de amanhã.
Qhepuru = depois de depois de amanhã.

Só bem depois, os dias foram recebendo nomes mais fixos e associados às cores do arco-íris – outro símbolo potente nos Andes:
Sábado - Chupuru - VERMELHO
Domingo - Wanturu - LARANJA
Segunda - Q’illuru - AMARELO
Terça - Ch’uxñuru - VERDE
Quarta - Laqpuru - CELESTE
Quinta - Larmuru - AZUL
Sexta - Qulluru – VIOLETA

Os dias e noites de terça e sexta são momentos para se reverenciar e honrar os protetores naturais, particularmente se coincidem com a Lua Cheia.

Baseado em texto de Qollasuyu Hemisfferio Sur

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

SENHORES DA TERRA OU IRMÃOS DO UNIVERSO?


Quando, em 1492, os conquistadores europeus chegaram às costas da América, quase 2/3 do mundo lhes eram desconhecidos. Quando toda a África e a Oceania foram "descobertas", desbravadas e também conquistadas, uma nova visão do mundo dominou o imaginário dos europeus: a terra e as suas riquezas eram ilimitadas e estavam à disposição dos homens dispostos a colonizá-las. Essa maneira moderna de pensar o destino da terra subordinado à vontade do homem ocidental durou até agora. Na verdade, ela ainda é muito difundida. 

Mas, agora, sabemos que não. Os recursos da terra e da Terra são imensos, mas são limitados. A energia do Universo é inesgotável, mas a da pequena única casa de que dispomos até agora não é. Há um múltiplo relógio à nossa frente apontando quando cada uma das reservas de minérios, de petróleo, de outras fontes de matéria e energia não-renováveis estará esgotada. Outras contas, mesmo a dos otimistas, são gritos de alarme. No ritmo atual de destruição, quando não haverá mais no mundo florestas tropicais? No ritmo atual de degradação, quando as terras serão desertos, quando os rios estarão mortos e os oceanos agonizantes?

Talvez os povos indígenas tenham protestado e estejam protestando muito pouco. Afinal, a concorrência pelas riquezas da terra e uma luta cega em nome de uma sobremelhora da qualidade de vida da parte rica e desenvolvida do planeta, em detrimento da outra parte, não ameaçam com o destruir apenas alguns modos de vida à margem dessa corrida em nome do standart de vida dos que a inventaram e se meteram nela. Ameaça com destruir a própria vida em todas as suas dimensões.

Alguns historiadores e outros especialistas que, nos últimos anos, estão procurando reconstruir sistemas de idéias e de ações das nossas próprias sociedades diante do mundo natural  não conseguem deixar de escrever várias observações em que os índios se reconheceram. A consciência do homem produtivo-ocidental parte, ainda, de um duplo princípio único: ele é separado de todas as outras dimensões do mundo em que vive e é o seu único senhor terreno. Tudo o mais decorre disso e faz pelo menos 500 anos que é sobre isso e as suas consequências que os indígenas estão falando.

Sabemos que as possíveis medidas políticas ou tecnológicas não serão bastantes para "salvar o planeta". Agora mesmo vemos que são exatamente os governos dos países mais ricos e mais industrializados os que negam antecipadamente apoio às propostas mais avançadas de salvaguarda da terra e de seus recursos. Uma resposta do presidente dos EUA foi publicada nos jornais de todo o mundo. Sem rodeios, ele declarou que não irá faze-lo por "não ser um bom negócio".

As conclusões de alguns estudos sobre o Ocidente e a Natureza são pelo menos em alguma coisa alentadoras. Não só por causa dos perigos da terra, mas por longo aprendizado, pelo desenvolvimento de novas sensibilidades e pela revisão fecunda de idéias e valores religiosos, muitos deles enraizados demais para serem revistos em pouco tempo, há por toda parte a aurora de uma nova consciência do mundo, da vida e do destino deles e nosso. Por toda parte, difunde-se pouco a pouco uma nova mentalidade: não somos senhores do mundo e o que existe à nossa volta é parte de nós mesmos. Somos partilha do fluxo da vida e, queiramos ou não, ela nos impõe as suas regras, os seus preceitos. A terra nos fala e chegou o momento de escutá-la.

Faz alguns séculos, uma revolução nos conhecimentos da astronomia deslocou a Terra de uma posição central para uma outra, pequena e periférica. Faz alguns anos, uma outra teoria de nossa própria ciência descobriu que isso não tem sentido, pois no campo da absoluta relatividade de todas as coisas, de todos os mundos, tudo é parte de um mesmo imenso Universo e o fluxo da vida pode estar em toda parte. As pessoas de depois de Copérnico não foram mais infelizes do que as de antes, embora algumas tenham sido queimadas pelo que aconteceu. Nós, pessoas de agora, no novo milênio, somos responsáveis por vivermos o tempo em que segredos da ciência nos revelam, ao mesmo tempo, uma Terra frágil e um Universo incomensurável. Não há mais dogmas sobre coisa alguma e tudo pode ser pensado.

Algumas vozes das florestas, dos desertos, faz muitos anos têm nos dito coisas muito simples. Estivemos ocupados demais em conquistar para aprender a compreender. O tempo é chegado. Saibamos ouvi-los, povos da terra, filhos das florestas. Eles nos fazem o melhor convite: sermos segundo os nossos termos e apenas mudando o essencial em nossos modos de vida e sistemas de pensamento, não mais senhores do mundo mas irmãos do universo.

Texto de Carlos Rodrigues Brandão

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

TENTENVILÚ e CAICAIVILÚ

De uma terra desaparecida pode às vezes nascer uma nova terra, ainda mais bonita, ainda mais vasta. Pois foi o que aconteceu, no tempo em que o mundo hesitava em escolher sua fisionomia, numa pequena ilha do que hoje chamamos de Chile.

Lá, a vida se passava calmamente porque os moradores desse lugar jogado como uma pedra no oceano sabiam estar protegidos por um ser cheio de bondade, a que chamavam de TENTENVILÚ ("tenten" = terra; "vilú" = cobra). Tratava-se de uma cobra que vivia bem no alto de uma colina coberta de arbustos e pradarias. Se alguma tragédia acontecia, logo iam ver Tentenvilú, que, quando não conseguia curar ou aliviar, podia ao menos consolar os corações agarrados nas malhas do sofrimento.

Assim como os humanos podiam tudo esperar de sua bondosa Tentenvilú, assim também tinham tudo a temer de CAICAIVILÚ ("caicai" = mar), uma serpente terrível que morava no oceano, no fundo de abismos insondáveis. Se há várias gerações ninguém o via com os próprios olhos, suas histórias continuavam muito vivas e assombravam, fosse ou não lua cheia, os pesadelos das crianças e adultos. Fazia tempo que ninguém a avistava, mas isso em nada atenuava o pavor que ela provocava. Muito pelo contrário: quanto mais antigas eram suas lembranças, maior era o medo que inspirava. Os moradores da ilha sabiam que não escapariam a seu ataque; sabiam que Caicaivilú tinha jurado a morte deles e que fatalmente cada dia que passava os aproximava da sombria data.

Na verdade, Caicaivilú considerava-se traída pelos humanos pois, no início deste mundo, eles viviam sob sua proteção, debaixo das ondas. Depois ficaram de olhos nas terras emersas. E, de comum acordo, preferiram abandoná-lo e se instalar naqueles lugares que consideravam muito mais acolhedores que o mar.

Como Caicaivulú escolheu o dia? Que acontecimento provocou-lhe uma raiva maior que as outras? Ninguém jamais soube. Numa noite de tempestade, quando o céu e o oceano pareciam um só corpo, tão líquido quanto furioso, as ondas atingiram uma altura até então desconhecida. Como se não bastasse, a terra se sacudiu como um animal que procurasse se livrar de um intruso agarrado em suas costas. As pessoas que ainda estavam vivos se precipitaram para a colina de Tentenvilú. De fato, não só a cobra morava no único lugar elevado da ilha, mas sobretudo aquele povo aflito esperava que ela pudesse fazer alguma coisa para salvá-lo.

Tentenvilú ficou arrasado com o espetáculo que acabava de descobrir. Logo usou seu poderes para se opor a Caicaivilú. Ordenou à terra que se enrugaasse em vários lugares, a fim de que se erguesse uma sucessão de montanhas onde os sobreviventes poderiam ficar fora do alcance das ondas.

Mas Caicaivilú era poderoso. Como quem levanta um exército furioso, ele produziu ondas de uma altura ainda mais inacreditáveis. Assim, algumas pessoas que tinham conseguido se abrigar sob os rochedos foram jogados fora dali. Sem desanimar, Tentenvilú pediu à terra que amarrotasse ainda mais a sua casca e levantasse montanhas bem mais altas.

A isso, Caicaivilú respondeu com um furacão de espuma que matou muitos dos sobreviventes. Será que acreditou que tinha eliminado todos os homens? Será que considerou sua vingança como terminada? Talvez... O fato é que deu ordens ao oceano para se acalmar e desapareceu no fundo da imensidão líquida. Aqui e ali boiavam os corpos sem vida daqueles que tinham sido pegos na cilada do dilúvio infernal.

O coração de Tentenvilú era incapaz de suportar a visão de um espetáculo desses. Ficava apertado diante daquelas imagens de um paraíso destruído. Explorando os imensos recursos de sua magia, transformou todos os mortos em focas muito vivas. Em seguida, tranquilizou-se com a sorte deles, virou seus olhos para a terra, que se tornara irreconhecível. Entre as montanhas que ele levantara para salvar a humanidade, tinha aparecido enseadas, baías e canais. Cada montanha se tornara uma ilha separada de suas irmãs por um braço de mar. Um arquipélago acabara de nascer do confronto entre as ondas e a terra.

Passou-se muito tempo antes que os raros sobreviventes ousassem sair de seus esconderijos para passear em pleno sol. Mas, depois de muita hesitação, acabaram saindo. Primeiro, com prudência, só se afastando alguns metros; depois, como a fome queimava cruelmente suas barrigas, atreveram-se a sair até as praias. Quando estavam colhendo conchas, viram chegar curiosos peixes nadando no rastro das focas, cujo comportamento era muito estranho. Em vez de fugir da companhia dos humanos, esses animais pareciam querer se aproximar deles e soltavam gemidos dilacerantes quando os habitantes do arquipélago se afastavam.

Foi preciso que a ampulheta do tempo virasse muitas vezes sobre si mesma antes que o povo da ilha compreendesse que aquelas criaturas do mar eram, ninguém menos, que seus antigos irmãos, filhos, pais e amigos. Da mesma forma, compreenderam que continuavam a sê-lo apesar da nova aparência. Então todos encontraram aquele ou aquela que antes amavam, e logo nasceram filhos desses estranhos amores entre a terra e o mar.

Se de inicio esses filhos forma metade humano, metade peixe, os que nasceram mais tarde pareciam cada vez mais com os habitantes da terra.

E só no olhar que hoje dirigem ao mar que podemos ler o ínfimo traço dessa filiação marinha.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Mitologia chilena mapuche narrada por Anne Jonas.

Em 1960, um grande terremoto seguido por intenso maremoto destruiu toda a costa do Chile. Em várias montanhas e escarpa ao longo do litoral, grupos de chilenos se reuniram para fazer rituais que acalmassem Caicaivilú. Fizeram-no virando-se para as altas montanhas dos Andes, chamando pela ajuda de Tentenvilú. Alguns desses rituais foram colhidos e estudados pelo antropólogo norte-americano Patrick Tierney.