Se não tivermos conhecimento correto
sobre a história indígena, não poderemos explicar o Brasil contemporâneo. As sociedades
indígenas constituem um indicador extremamente sensível das características da
sociedade que com elas interage. A sociedade brasileira se desnuda e se revela
no relacionamento com os povos indígenas. Nesse sentido, buscar compreender as
sociedades indígenas não é apenas procurar conhecer “o outro”, “o diferente”,
mas implica conduzir as indagações e reflexões sobre a própria sociedade em que
vivemos.
1°
EQUÍVOCO – O ÍNDIO GENÉRICO
A primeira idéia que a maioria dos
brasileiros tem sobre os índios é a de que eles constituem um bloco único, com
a mesma cultura, compartilhando as mesmas crenças, a mesma língua. Ora, este
equívoco reduz culturas tão diferenciadas a uma entidade supraétnica. O Tukano,
o Desana, o Munduruku, o Waimiri-Atroari deixam de ser Tukano, Desana, Munduruku
e Waimiri-Atroari para se transformar no “ÍNDIO”, isto é, no ÍNDIO GENÉRICO.
Hoje vivem no Brasil mais de 200 etnias,
falando 188 línguas diferentes. Cada povo desses tem língua, religião, arte,
ciência e dinâmica histórica próprias, diferenciando-se uns dos outros. Só para
se ter noção dessa enorme diversidade, quando Frei Gaspar Carvajal desceu o rio
Amazonas, em 1540, encontrou ali povos que falavam dezenas de línguas diferentes,
tão diferentes entre elas como o português e o alemão. Trabalho feito pelo lingüista
tcheco Cestmir Loukotka, em 1968, sobre classificação de línguas, mostrou que
na Amazônia brasileira, em 1500, eram faladas mais de 700 línguas diferentes.
O grau de intercomunicação entre eles é
variável. A diferença que pode haver entre a língua makuxi e a ingaricó, ambas
do tronco lingüístico karib, é comparável à existente entre o português e o
espanhol, ou seja, é possível estabelecer um nível mínimo de comunicação. No entanto,
não é o que ocorre, por exemplo, entre a língua makuxi (karib) e a wapixana
(aruák); entre línguas de troncos diferentes, as diferenças podem ser
comparáveis à existente entre o alemão e o português, sem condição de
entendimento.
2°
EQUÍVOCO – CULTURAS ATRASADAS
A segunda idéia equivocada é considerar
as culturas indígenas como sendo ATRASADAS e PRIMITIVAS. Os povos indígenas
produziram saberes, ciências (em moldes diversos da nossa ciência), arte
refinada, literatura, poesia, música, religião. Suas culturas não são atrasadas
como durante muito tempo pensaram os colonizadores e como ainda pensam os
mal-informados.
As línguas indígenas, por exemplo, foram
consideradas pelo colonizador, equivocadamente, como línguas “inferiores”, “pobres”,
“atrasadas”. Ora, os lingüistas sustentam que qualquer língua é capaz de
expressar qualquer idéia, pensamento, sentimento e que, portanto, não existe
uma língua melhor que a outra, nem língua inferior ou mais pobre que outra. As pessoas,
no entanto, confundem muitas vezes as línguas com os falantes. O que existe são
falantes que, na estrutura social, ocupam posições privilegiadas ou não.
As religiões indígenas também foram
consideradas pelo catolicismo guerreiro, no passado, como conjunto de
superstições. Entretanto, basta entrar em contato com as formas de expressão
religiosa de qualquer grupo indígena, para verificar quanto esta visão é
etnocêntrica e preconceituosa. Os Guarani, por exemplo, são considerados por
estudiosos como “os teólogos da floresta”, devido à sua profunda religiosidade,
que se manifesta a todo momento, no cotidiano, penetrando nas diversas esferas
da vida. As próprias atividades econômicas aparecem muitas vezes como simples
pretexto para a realização de cerimônias. A colheita de produtos de roça pode
ser motivo para rezas e danças rituais. O ciclo econômico anual é, antes de
mais nada, um ciclo de vida religiosa, que acompanha as diversas atividades de
subsistência. A religião é, assim, um dos mais importantes fatores de
identidade para os Mbyá.
As ciências indígenas também foram
tratadas de forma preconceituosa pela sociedade brasileira. Os conhecimentos
indígenas foram desprezados e ridicularizados, como se fossem a negação da
ciência e da objetividade. O antropólogo Darell Posey explicou que existem
índios especialistas em solos, plantas, animais, colheitas, remédios e rituais.
Mas tal especialização não impede, no entanto, que qualquer homem ou mulher
Kayapó tenha absoluta convicção de que detém os conhecimentos e as habilidades
necessárias para sobreviver sozinho na floresta, indefinidamente, o que lhe dá
grande segurança. Segundo Posey, “se o
conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos
programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que
são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso
por milhares de anos na Amazônia. Essa posição cria uma ‘ponte ideológica’
entre culturas que poderia permitir a participação dos povos indígenas, com o
respeito e a estima que merecem, na construção de um Brasil moderno”.
O preconceito contra as línguas, as
religiões e as ciências produzidas pelos índios alcançou também as artes,
sobretudo a literatura. Os diferentes povos indígenas produziram uma literatura
sofisticada, que foi menosprezada porque as línguas indígenas eram ágrafas (não
possuíam escrita) e essa literatura foi passada de geração em geração através
da tradição oral. As várias formas de narrativa e de poesia indígenas, por
isso, não são consideradas como parte da história da literatura nacional, nem
ensinadas nas escolas, tampouco reconhecidas e valorizadas pela mídia.
No século passado e no início deste
século, vários estudiosos recolheram, no Pará e no Amazonas, literatura oral de
primeiríssima qualidade. Um deles foi o general Couto de Magalhães, que não era
militar mas advogado e político mineiro, que recebeu a patente de general
porque, quando era presidente da província do Mato Grosso, comandou as tropas
brasileiras na guerra do Paraguai. Como se sabe, o Império do Brasil se
compunha de províncias e não de estados, e quem as governava tinha o cargo de
presidente e não de governador. Pois bem, Couto Magalhães foi presidente de
Mato Grosso, São Paulo e Pará. Ele não tinha, em princípio, qualquer motivo
para simpatizar com os índios e compartilhava de todos os preconceitos de que
falamos. No entanto, quando viajou ao Pará, no barco ouviu um índio contanto
histórias, durante horas, para uma platéia atenta de tripulantes, que ria e
participava ativamente. Curioso, Couto de Magalhães se aproximou e ouviu que
falavam uma língua que não entendia: o nheengatu. Decidiu então aprender
essa língua, só para conhecer as histórias. Ficou apaixonado com a beleza da
literatura indígena, equiparando-a à grega. Recolheu e registrou muitas
histórias, como aquelas que têm por personagem o Jabuti. Essas narrativas tinham
na verdade a função educativa de transmitir valores e formas de comportamento.
Couto de Magalhães comentou, em inteligente observação, que um povo cuja
literatura tem um personagem como o Jabuti, lento e feio, que consegue vencer
animais belos e fortes como a onça e o jacaré, só usando a astúcia, é um povo
que tem civilização “para dar e vender”. “Um
vomo que ensina que a inteligência vence a força, é um povo altamente
civilizado, é um povo altamente sofisticado”, afirma.
Muitos recolheram narrativas que, talvez
agora, com a recente legislação (Lei n° 11.645, de 10/03/2008, incluindo no
currículo oficial de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena”) possam chegar aos estudantes e à população
brasileira, permitindo que não ignorem mais esse patrimônio cultural da
humanidade – a literatura indígena.
3°
EQUÍVOCO – CULTURAS CONGELADAS
O terceiro equívoco é a idéia do “CONGELAMENTO”
das culturas indígenas. Criou-se para a maioria dos brasileiros a imagem de
como deveria ser o índio: nu ou de tanga, no meio da floresta, de arco e flecha,
como descrito por Pero Vaz de Caminha. Essa imagem foi “congelada”, persistindo
até hoje. Qualquer mudança nela provoca estranhamento. Quando o índio não se
enquadra nessa imagem, vem logo a reação: “Ah! Não é mais índio”. Para essas
pessoas, o “índio autêntico” é o da carta de Caminha e não aquele índio de
carne e osso que conosco convive, que está hoje no meio de nós.
Para impedir a demarcação de terras
indígenas e reforçar preconceitos, diz-se: “esses ai não são mais índios, já
estão de calça e camisa, de óculos e relógio, e falando português, não são mais
índios”. Cria-se uma nova categoria, desconhecida pela etnologia: o ex-índio! Alias,
isso acontece com todos nós. O uso de jeans, tão corrente no Brasil, não foi
inventado por nenhum brasileiro. A forma de construir em concreto armado também
não é técnica brasileira. A tecnologia do telefone celular e do computador não
é brasileira, enfim, toda essa parafernália que usamos – os milhares de itens
culturais presentes no nosso cotidiano – não tem necessariamente suas raízes em
solo brasileiro.
Então, o brasileiro pode usar coisas
produzidas por outros povos – computador, telefone, televisão, relógio, rádio,
aparelho de som, luz elétrica, água encanada – e nem por isso deixa de ser
brasileiro. Mas o índio, se fizer o mesmo, deixa de ser índio. Quer dizer, nós
não concedemos às culturas indígenas aquilo que queremos para a nossa: o direito
de entrar em contato com outras culturas e de, como conseqüência, mudar.
4º
EQUÍVOCO – OS ÍNDIOS FAZEM PARTE DO PASSADO
O quarto equívoco consiste em pensar que
os índios fazem parte apenas do passado do Brasil. Num texto de 1997, sobre
biodiversidade, sob a ótica de um índio, Jorge Terena escreveu que uma das
consequências mais graves do colonialismo foi justamente taxar de “primitivas”
as culturas indígenas, considerando-as como obstáculo à modernidade e ao
progresso: “(Eles) vêem a tradição viva
como primitiva, porque não segue o paradigma ocidental. Assim, os costumes e as
tradições, mesmo sendo adequados para a sobrevivência, deixam de ser
considerados como estratégia de futuro, porque são ou estão no passado. Tudo aquilo
que não é do âmbito do Ocidente é considerado do passado, desenvolvendo uma
noção equivocada em relação aos povos tradicionais, sobre o seu espaço na
história”.
Os índios, na verdade, estão encravados
no nosso passado, mas integram o Brasil moderno, e não é possível imaginar o
Brasil do futuro sem a riqueza das culturas indígenas. Se isto por acaso
ocorresse, o país ficaria pobre, muito pobre, e feio, muito feio.
5º
EQUÍVOCO – O BRASILEIRO NÃO É ÍNDIO
Por último, o quinto equívoco é o
brasileiro não considerar existência do índio na formação de sua identidade. Há
500 anos não existia no planeta Terra o povo brasileiro. Esse povo é novo, foi
formado nos últimos cinco séculos com a contribuição, entre outras, de três
grandes matrizes: as européias, assim no plural, representadas basicamente
pelos português, mas também pelos espanhóis, franceses, italianos, alemães,
poloneses, etc.; as africanas, também no plural, da qual participaram diferentes
povos como os sudaneses, yorubás, nagôs, gegês, ewes, haussás, bantos e outros
tantos. E também as matrizes indígenas, formadas por povos de várias famílias lingüísticas
como o tupi, o karib, o aruák, o jê, o tukano e muitos outros.
Depois as migrações de outros povos como
os japoneses, os sírio-libaneses, os turcos, vieram enriquecer ainda mais a
nossa cultura. No entanto, como os europeus dominaram política e militarmente
os demais povos, a tendência do brasileiro, ainda hoje, é se identificar apenas
como “vencedor” – o de matriz européia – ignorando as culturas indígenas e
africanas. Isso reduz e empobrece o Brasil, porque acaba apresentando aquilo
que é apenas uma parte, como se fosse o todo.
O índio, no entanto, permanece vivo
dentro de cada um de nós, mesmo que não saibamos disso. Não é uma questão
genética, é uma questão cultural. Ao fazermos nossas opções de culinária,
música, dança, poesia, de onde saem os critérios de seleção? É ai que afloram
as heranças culturais, incluindo as indígenas e as negras.
No entanto, se não vemos o índio e os
negros como antepassados, é porque acabamos por assumir a identidade veiculada
pela ideologia dominante, que reivindica apenas a matriz européia, que nos deu
a base da língua que falamos e marcou inapelavelmente nossa cultura, e da qual
temos motivos para nos orgulhar. No entanto, precisamos também conhecer e ter
orgulho da contribuição das culturas indígenas e das diferentes culturas
africanas que marcaram a nossa forma de ser.
Esses não são os únicos equívocos que
cometemos em relação aos nossos índios e a nós mesmos, mas talvez sejam aqueles
que mereçam urgentemente ser discutidos e reconsiderados.
Texto
de JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Coordenador
do Programa de Estudo dos Povos Indígenas / UERJ