terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ARQUEOASTRONOMIA BRASILEIRA

É quase unanimidade que toda cultura dita primitiva de alguma forma observou o céu ou fez uso dos movimentos aparentes do Sol, da Lua e das estrelas para elaborarem um calendário local.

Por volta de 1918 Vieira da Rosa fez referências a algumas formações rochosas peculiares no litoral catarinense. Mas só 70 anos depois que o então pescador Adnir Ramos percebeu que algumas das formações rochosas e grandes pedras localizadas no Morro da Galheta coincidiam com o nascer do Sol e da Lua em épocas específicas do ano. Um dos fenômenos foi a observação do nascer do Sol no solstício de inverno na Pedra do Frade. A partir daí, começou a mapear outras pedras possivelmente associadas a efemérides celestiais.

Os três sítios principais com potencial arqueoastronômico, são:
1 - Pedra do Frade, no costão da Barra da Lagoa
2 - Ponta do Gravatá
3 - Morro da Galheta

PEDRA DO FRADE
Este sítio está localizado no costão da Barra da Lagoa. Após atravessar a ponte pênsil e a prainha da Barra da Lagoa, seguindo pela Trilha das Piscinas Naturais. Cerca de 10 minutos de caminhada pelo costão nota-se duas colunas de pedras que se destacam em relação ao ambiente. Percebe-se que as duas pedras permitem a observação de um intervalo do horizonte. O observador não tem opção de se movimentar ao norte pois há o mar, tampouco ao sul pois tem o início do Morro do Farol da Barra. Estando de frente à Pedra do Frade e notando o intervalo do horizonte visível entre as duas rochas, o observador testemunha o nascer do Sol na época do solstício de verão do hemisfério sul (21-22 de dezembro). O ponto de observação está situado a 50 metros da Pedra do Frade e foi encontrada nesta posição uma pedra com linhas onduladas, catalogada por Keler Lucas. Este mesmo sítio está relacionado com o solstício de inverno, bastando o observador se posicionar a sudoeste da Pedra do Frade e notar o nascer do Sol entre as duas rochas.
Continuando o caminho pelo costão encontram-se outros quatro petroglifos em forma de rede, linhas cruzadas e onduladas. Isto é significativo pois indica que houve presença humana no local.

Pedra do Frade.
Foto de A. Amorim

Sol nascendo no Solstício de Verão, 22 de dezembro de 2007.
Foto de A. Amorim

PONTA DO GRAVATÁ
Este sítio possui várias formações rochosas pitorescas porém uma chama a atenção pelo fato de uma pedra similar a um cubo estar repousada sobre uma plataforma. O ponto de observação é singular pois situa-se no limite de um pequeno abismo de 5 metros. Exatamente nesta posição limite o observador nota a linha do horizonte tocando o ponto entre a pedra e a plataforma. E neste cruzamento de linhas é a posição do nascer do Sol no solstício de verão. Até o momento não encontrou-se petroglifos ou outro vestígio de presença humana antiga a não ser na pequena praia do Gravatá onde existem diversos amoladores.

Sol nascendo no Solstício de Verão, 20 de dezembro de 2008.

Foto de A. Amorim


MORRO DA GALHETA
A peculiaridade deste sítio reside no fato de estar relacionado principalmente com os equinócios embora haja alguns alinhamentos solsticiais. Em relação aos equinócios encontramos três pedras com tamanho em torno de 3 metros - A, B e C. A pedra A repousa sobre a pedra B. Já a pedra C encontra-se cerca de 3 metros à leste das primeiras. O observador deve se situar a oeste destas pedras, próximo a uma parede rochosa, de modo que a conjunção das três pedras formem uma minúscula janela onde a linha do horizonte atravessa o seu interior. Se o observador deslocar-se a sua direita, a janela fecha-se, e se o observador deslocar-se a sua esquerda, a janela se desfaz. Exatamente na direção da janela o Sol nasce por ocasião dos equinócios (20-21 de março ou 21-22 de setembro). É sabido que o movimento aparente do Sol na linha do horizonte durante a época dos equinócios é maior do que durante os solstícios em virtude da inclinação relativa da eclíptica com o equador celeste. O autor ainda não observou o comportamento do feixe de luz solar sobre a parede rochosa. O único vestígio arqueológico nas proximidades é uma inscrição rupestre descoberta por Adnir Ramos localizada numa das trilhas de acesso (também conhecida por Caminho dos Reis). Durante a pesquisa por parte do autor notou-se a ação de vandalismo no sítio, principalmente derrubada de algumas pedras e restos de fogueira.

Alinhamento de pedras existentes no Morro da Galheta.
Foto de A Amorim.


Sol nascendo no Equinócio de Outono, 21 de março de 2008.
Foto de A. Amorim.

Diversas culturas e tradições encontraram seus meios de determinar tais épocas, formando assim seus calendários. Estas variações sazonais refletem no ambiente e isso não passa despercebido por nenhuma cultura. Desde a migração de aves, até a aparição de grandes cardumes, passando pelo amadurecimento de diversos frutos, há vários ciclos ecológicos relacionados com as estações do ano. Portanto, assim como em outros locais do mundo houve grupos que percebiam tais mudanças ambientais e sua relação com os fenômenos celestes, da mesma forma as antigas tradições na Ilha de Santa Catarina fizessem o mesmo.

Os Sambaqueiros: Dominavam a técnica da pedra polida a julgar pelos pertences encontrados em seus sambaquis. O provável conhecimento astronômico que poderiam ter estaria relacionado em saber a época de colher apropriadamente os frutos maduros ou simplesmente se preparar para pescar certos peixes na época certa. Com a diminuição da duração do dia e proximidade dos dias mais frios o primitivo pescador saberia que se aproxima da época de pescar a tainha, por exemplo. Hoje, com a nossa cultura fortemente influenciada pelo calendário gregoriano, o pescador responderia prontamente que tal época situa-se entre os meses de maio e julho. Mas o pescador primitivo tinha outro tipo de contagem de tempo, um calendário cíclico que alternava entre dias frios e dias quentes.

Os Itararés: embora também fossem pescadores-caçadores-coletores como os sambaquieiros, os itarerés dominavam a cerâmica para uso utilitário. Os itararés tinham excelente qualidade de vida, a julgar pelas ossadas disponíveis.

Por que tais tradições não usariam ferramentas para o ciclo anual? A resposta a esta pergunta necessita de pesquisa.

O trânsito do disco solar durante o solstício de verão, conforme observado na Pedra do Frade, dura aproximadamente 16 dias centrados na data do solstício. Já o trânsito do disco solar na janela formada pelo alinhamento de pedras no Morro da Galheta não ultrapassa 4 dias em virtude do rápido movimento aparente horizontal do Sol na época dos equinócios.

Baseado em texto de Alexandre Amorim.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

SAMBAQUI

Existem muitas elevações em boa parte da costa brasileira, quase sempre ao lado de praias e lagoas. Parecem dunas, mas por baixo da rala camada de areia e vegetação, existem milhões de conchas de ostras, mexilhões e, principalmente, berbigões (vôngoles), atingindo dezenas de metros de altura e até 2 km de diâmetro. São os SAMBAQUIS – um tesouro arqueológico de uma época muito anterior ao desembarque dos portugueses.

Em todos os continentes existem construções pré-históricas semelhantes, mas em nenhum outro lugar elas são tão grandes, tão numerosas e associadas a uma cultura tão duradoura quanto aqui no Brasil. O maior sambaqui, na Praia de Garopaba, Santa Catarina, tem 35 metros de altura e 500 metros de comprimento. E o mais antigo, em Paranaguá, no Paraná, foi erguido há 7.000 anos, milênios antes que os egípcios construíssem a primeira pirâmide (em 2.500 a.C.). Já os mais recentes têm apenas 1.000 anos, menos que muitas igrejas européias. Os Sambaquis fluviais parecem ser mais antigos que os litorâneos, mas há mais de 10.000 anos o nível do mar era bem mais baixo que atualmente, tendo subido gradativamente pelo derretimento do gelo polar em decorrência do final da idade do gelo, atingindo 3 m acima do nível de hoje há 6.000 anos e depois descendo novamente. Assim, se houve algum Sambaqui anterior a essas datas, foi coberto pelo mar e desapareceu para sempre.

Esses estranhos monumentos estão sendo estudados pelos arqueólogos, que tentam desvendar os costumes dos seus moradores. Eles tinham uma cultura mais complexa que a da maioria dos outros povos pescadores e caçadores-coletores conhecidos.

Os habitantes do sambaquis do litoral do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul possuem a mesma cultura e constituição genética, parecendo constituir um mesmo povo – chamado de SAMBAQUEIROS.

Os sambaqueiros do litoral eram baixinhos, porém robustos. Os homens mediam 1.60m, em média, e as mulheres, 1,50m. pela análise de seus esqueletos, sabe-se que as más condições de higiene os tornavam muito vulneráveis a doenças. A mortalidade infantil era alta e os sobreviventes raramente ultrapassavam os 35 anos de idade. Os grupos reuniam até 100 pessoas, instalados em um ou mais sambaquis ao mesmo tempo. Enfrentavam os enxames de mosquitos e o cheiro onipresente de marisco podre.

A pesca era o principal meio de sobrevivência dessas comunidades. Os sambaquieiros pescavam com redes, que lançavam a partir de canoas, tanto no mar quanto nos rios. Os moluscos eram apenas um complemento da alimentação. As frutas e raízes também faziam parte do cardápio, mas eles não sabiam cultivar alimentos. Os pesquisadores chegaram a essa conclusão porque nos sambaquis não foram encontradas peças de cerâmica cozida, necessárias para o preparo de gêneros como o milho e a mandioca. Em alguns sambaquis havia vestígios de caça; em outros, não. Tinham artefatos como anzóis feitos de ossos, furadores de ferrões de arraias e pesos de redes esculpidos em pedra, além de dentes de tubarão furados para fazer colares. Ossos encontrados desses indivíduos apresentam lesões por esforços repetitivos, indicando que eram remadores e viveram grande parte de suas vidas na atividade de pesca.

No mesmo chão em que construíam suas casas, faziam fogueiras e dormiam. Aí também sepultavam os seus mortos. Encaravam isso, aparentemente, com a maior naturalidade. Os rituais fúnebres tinham um papel cultural importante: os corpos eram enterrados com comida e artefatos como machados, colares de dentes de tubarão e estatuetas de pedra, aparentemente para preparar o defunto para uma viagem espiritual.

No mesmo sambaqui, às vezes, é possível distinguir padrões diferentes de sepultamento: alguns mortos recebiam um tratamento mais elaborado. Para os arqueólogos, isso parece indicar algum tipo de hierarquia ou diferenciação social. Não se sabe ao certo o que levava essa gente a amontoar conchas. Talvez o fizessem para instalar suas cabanas em uma base seca que os protegesse do solo úmido do litoral. Os sambaquis também podiam servir como marcos territoriais, simbolizando a posse de uma área e, enquanto tal, teriam a mesma intencionalidade das pirâmides egípcias e dos templos micênicos.

Os sambaqueiros fluviais são um pouco diferentes dos litorâneos. Há sambaquis de 10.000 anos no Vale do Ribeira – cercania da atual cidade de São Paulo. Diferentemente dos Sambaquis litorâneos, ao invés de conchas de bivalves usavam como cobertura das sepulturas o “megalobulimus”, um caracol terrestre da região, muito comum naquela época. Os homens também eram diferentes. Estudos arqueoantropológicos indicam que eles vieram do planalto, embora adotando a cultura do litoral. Hoje já sabemos muitas coisas sobre eles através dos estudos dos vestígios encontrados em escavações arqueológicas. Restos de ossos calcinados de animais nos indicam que eram caçador-coletores e tinham o produto da caça como principal alimentação. Consumiam preás, cotias, pacas, capivaras, catetos, queixadas, antas, cervos, animais ainda hoje existentes na Mata Atlântica. Batedores, raspadeiras, percutores, machados, furadores, anzóis e outros artefatos feitos de pedra e ossos de animais também foram encontrados. Não produziam cerâmicas.

O “Homem de Capelinha”, do sítio arqueológico de Jacupiranga, foi datado de 9.000 anos atrás e é um dos mais antigos de toda América. Análises bio-antropológicas apontam semelhanças étnicas com “Luzia”, um esqueleto datado de 11.000 anos atrás, de um sítio em Minas Gerais. Ambos possuem características negróides.

Os sambaquieiros desapareceram por volta do ano 1.000. Foram eliminados pelos tupis, indígenas mais guerreiros e que já dominavam a agricultura. Deve ter ocorrido mistura de raças entre os dois povos, pois provavelmente foram os sambaquieiros que ensinaram os tupis como se pesca no mar. Em um país como o Brasil, com uma costa tão extensa, é uma herança das mais úteis.

Em muitos sambaquis também foram encontradas estatuetas de animais – chamadas de zoólitos, ou seja, animais esculpidos em pedra. Com suas formas estilizadas, não causariam estranheza em uma exposição de arte moderna, mas esses zoólitos provavelmente tinham funções rituais. Os arqueólogos acreditam que as concavidades que aparecem em alguns deles serviam para preparar tinturas

Só na década de 1960 os Sambaquis passaram a ser protegidos por lei, depois de séculos de depredação. Hoje, ainda restam 958, a maioria no litoral, mas isso representa menos de 20% dos Sambaquis que existiam no começo do século XX. Infelizmente grande parte dos Sambaquis litorâneos foram destruídos por indústrias mineradoras; as conchas ricas em calcáreo eram moídas juntamente com os ossos das sepulturas, sendo o produto obtido utilizado na fabricação de cimento, cal e fertilizantes.


Texto com acréscimo de contribuições do Prof Melander, historiador e pesquisador em arqueologia pré-histórica brasileira.

sábado, 23 de janeiro de 2010

POVOAMENTO DAS AMÉRICAS

Não se encontra nenhum vestígio na América de um homem de época primitiva comparável ao Pitecantropo, ao Sinantropo ou ao Neandertal. Os esqueletos humanos mais antigos quase não se distinguem dos de índios modernos. Mas podemos dizer que um número considerável de descobertas vêm comprovando a contemporaneidade na América do homem e de uma fauna extinta há várias centenas de milhares de anos. Apenas para lembrar, podemos mencionar um mastodonte do Equador, no meio de um fogão que encerra fragmentos de olaria, e os ossos de mastodonte novo ao lado de um crânio de cavalo fossilizado e de um esqueleto humano na caverna Confins, no Brasil. Em Folson, no Novo México, encontraram-se restos de um bisão fóssil associados a pontas de pedra; em Russel Springes, no Kansas, uma ponta de sílex na omoplata de um bisão. Há alguns anos, foi dado a conhecer um crânio humano em Tepexpan, no Vale do México, na mesma camada que os restos de um elefante. Esta escavação foi recentemente confirmada pela descoberta no mesmo terreno de um esqueleto de mamute, no qual estavam fincadas várias pontas de sílex e de obsidiana. Na Lagoa Santa, no Brasil, onde 800 cavernas foram exploradas, encontraram-se ossos de uma fauna fóssíl associados a restos humanos. Pareceria, portanto, que a antiguidade do homem americano não é inferior em nada à do homem das outras partes do mundo.

Mas também é bastante provável que algumas das espécies pré-históricas mencionadas tenham existido na América até mais recentemente que no resto do mundo. O bom estado em que foi encontrada a pele da grande preguiça da caverna Eberhart, no extremo-sul da Patagônia, a conservação de seus excrementos, parecem confirmar tal tese.

Há um acordo geral em admitir que o povoamento da América aconteceu por imigração. Mas não há consenso sobre a origem dos imigrantes. Uns lhes atribuem uma origem comum, outros imaginam de preferência movimentos de populações convergentes mas oriundos de ontos diferentes, que se teriam produzido senão contemporaneamente, pelo menos em vagas sucessivas.

A configuração muito especial do Novo Mundo torna seu acesso difícil. A única passagem relativamente franca é o estreito de Bering e o rosário das Ilhas Aleutas, por onde a América se aproxima bastante do continente asiático e parece que a grande maioria dos imigrantes seguiram esta rota. Quando a pré-história da Sibéria for mais bem conhecida, é provável que nela encontremos os vestígios de sua passagem.

Estamos autorizados a supor a existência de diversas vagas de migrações provenientes da Ásia. Uma teria trazido humanos para o sul, da Patagônia até o Brasil. Outra teria trazido outros humanos, de pequeno porte e com maçãs do rosto salentes. Uma terceira vaga trouxe humanos de alto porte, que encontramos hoje entre as populações da América do Norte. Os esquimós, finalmente, são os tipos mais mongolóides da América. Certamente, grande número de povos da América possuem caracteres mongolóides bem marcados, maçãs salientes, cor escura dos cabelos, dos olhos, tez moreno-amarelada ou moreno-cobre. Mas outros elementos mongóis - como os olhos puxados e o nariz arrebitado - quase não se encontra na América. Por outro lado, observa-se ai traços não asiáticos devido provavelmente a contribuições diferentes.

Paralelamente aos antropólogos, os linguistas participaram das pesquisas sobre o povoamento das Américas. Em nenhuma parte do mundo existem tantas línguas diferentes como em nosso continente. Elas se dividem em determinado número de famílias linguísticas sem que fosse possível chegar a um resuultado plenamente satisfatório. Inumeras língaus não se localizam em parte alguma! Distinguem-se, atualmente, entre 120 e 150 dessas famílias, das quais algumas têm uma irradiação imensa. Mas, os desvios no interior de cada uma delas são por vezes tais que pessoas que falam duas línguas diferentes de uma mesma família não se compreendem.

Concordâncias estruturais foram constatadas entre certas línguas norte-asiáticas e americanas, mas elas não se estendem ao vocabulário. Em compensação, existem semelhanças léxicas entre a família Hoka e o malaio-polinésio e entre as línguas Con e o Australiano. Essas semelhanças levaram o Dr. Rivet a concluir que há uma interpenetração dessas línguas americanas de um lado e do malaio-polinésio e do australiano do outro. O que implicaria, numa época mais ou menos longuíqua, em intercâmbio entre a América e a Oceania e, talvez, um deslocamento de população da Oceania em direção à América.

Entre as mais antigas manifestações do homem na América do Sul conhecemos a indústria lítica pré-cerâmica no norte da Colômbia, em São Nicolau de Bari, no curso inferior do rio Sinu, assiam como na Venezuela, no sítio El Jobo. Essa última parece remontar a 16.000 anos antes da nossa era.

Na Patagônia, uma escavação nas cavernas Palli Aike e Fell, perto do Estreito de Magalhães, encontrou cinco camadas superpostas de habitat; a mais profunda contém restos de guanacos, de preguiças gigantes e de cavalo selvagem, associados a uma indústria lítica de pontas de azagaias e de raspadores de feitura bastante rude, utensílios de osso e de objetos cilindróides em lava. Restos humanos estavam incinerados, mas foi possível reconstituir um crânio que lembra um pouco o tipo de Lagoa Santa, no Brasil.


Escavações em Kjökkenmöddings, no Canal de Beagle, revelaram a presença antiga de uma população de pescadores que fabricavam facas de conchas, pontas e arpão dentadas e colares de ossos de pássaros. Outros pescadores instalaram-se nas costas do Chile perto de Arica e Taltal, onde se pode observar dois períodos diferentes de ocupação.

Os primeiros povos cujos vestígios foram descobertos na costa do Peru praticavam uma agricultura rudimentar; por esse motivo pensa-se que talvez fossem contemporâneos dos povos ceramistas de outras regiões. Até o presente, localizaram-se cinco povos sem cerâmica na costa peruana: em Puemape, perto de Pacasmayo, em Milagro e em HHuaca Prieta, no vale de Chicama, em Cerro Pietro, no vale do Viru e em Aspero, no vale do Supe.

Huaca Pietra é o local mais bem conhecido. A população devia ser bastante densa. As habitações, encostadas em grandes blocos de pedra, eram semi-subterrâneas. A alimentação compunha-se principalmente de peixe e de moluscos; a coleta de certas plantas selvagens complementava-a, assim como algumas culturas: achira (espécie de tubérculo), cabaceiros, feijões, pimenta, lucuma (fruto). O cozimento dos alimentos fazia-se com a ajuda de pedras aquecidas: colocava-se a peça a ser cozida diretamente sobre a pedra ou, então, introduziam pedras quentes numa cuia cheia de água. Esse sistema de cozimento conservou-se mesmo depois da introdução da cerâmica. Sabe-se, ainda, que cultivavam algodão, com o que teciam suas redes de pesca. Fiavam sem fusos. A verdadeira tecelagem era ainda muito rara, mas eles confeccionavam vestimentas com casa de árvore bastida, empregavam raspadores e facas de sílex obtidos por percussão, pesos de redes perfurados e agulhas de ossos. Os mortos eram enterrados em simples fossas; mais tarde construíram túmulos curvos utilizando blocos de pedra rolados.

Entre esses primeiros habitantes e aqueles que construíram as grandes civilizações pré-colombianas, sucederam-se inumeráveis gerações. Milhares de anos de estabelecimento no lugar foram necessários para criar um terreno propício ao desenvolvimento dos diferentes estilos, cujos vestígios ainda hoje admiramos.

Baseado em texto de Henri Lehmann

CIDADES PERDIDAS DA AMAZÔNIA

Quando o Brasil criou o PARQUE INDÍGENA DO XINGU, em 1961, a reserva estava longe da civilização moderna, aninhada bem no limite ao sul da enorme floresta amazônica. As fronteiras do parque ainda ficavam dentro da mata densa, pouco mais que linhas sobre um mapa. Hoje o parque está cercado de retalhos de terras cultivadas, com as fronteiras frequentemente delimitadas por um muro de árvores. Para muitos forasteiros, essa barreira de torres verdes é um portal como os enormes portões do Parque Jurássico, separando o presente – o dinâmico mundo moderno de áreas cultivadas com soja, sistemas de irrigação e enormes caminhões de carga –; do passado – um mundo atemporal da Natureza e de sociedade primitivas.

A Amazônia sempre teve um lugar especial no imaginário ocidental: a mera menção de seu nome já evoca imagens de selva repleta de vegetação respingando água, de vida silvestre misteriosa, colorida e com frequência perigosa, de um entremeado de rios com infinitos meandros e de tribos da Idade da Pedra. Para os ocidentais, os povos da Amazônia são sociedades extremamente simples, pequenas tribos que mal sobrevivem com o que a Natureza lhes oferece. Têm conhecimento complexo sobre o mundo natural, mas lhes faltam os atributos da civilização: o governo centralizado, os agrupamentos urbanos e a produção econômica além da subsistência. Em 1690, John Locke proclamou as famosas palavras: “No início, todo o mundo era a América”. Mais de três séculos depois, a Amazônia ainda arrebata o imaginário popular como a Natureza em sua forma mais pura, e como lar de povos aborígines que, nas palavras de Sean Woods, editor da revista Rolling Stone, preservam “um estilo de vida inalterado desde o primórdio dos tempos”.

A aparência pode ser enganosa. Escondidos sob as copas das árvores da floresta estão os resquícios de uma complexa sociedade pré-colombiana: uma rede de cidades, aldeias e estradas ancestrais que já sustentou uma população talvez 20 vezes maior em tamanho que a atual. Áreas enormes de floresta cobriam os povoados antigos, seus jardins, campos cultivados e pomares que caíram em desuso quando as epidemias trazidas pelos exploradores e colonizadores europeus dizimaram as populações nativas. A rica biodiversidade da região reflete a intervenção humana do passado. Ao desenvolverem uma variedade de técnicas de uso da terra, de enriquecimento do solo e de longos ciclos de rotatividade de culturas, os povos ancestrais proliferaram na Amazônia, apesar de seu solo natural infértil. Suas conquistas poderiam atestar esforços para reconciliar as metas ambientais e de desenvolvimento dessa região e de outras partes da Amazônia.

Em 1894, o livro de Karl von den Steinen, “Unter den Naturvölkern Zentral Brasiliens” (Entre os aborígines do Brasil Central), descreveu os povos amazônicos como pequenos grupos isolados vivendo em delicado equilíbrio com a floresta tropical: “O povo da Natureza”. Mais tarde, frequentemente os antropólogos viram o ambiente florestal, em geral, como não propício à agricultura; a pouca fertilidade do solo parecia excluir os grandes assentamentos ou as densas populações regionais. Por esse motivo, a Amazônia do passado parece ter sido muito semelhante à Amazônia dos tempos atuais.

Essa visão começou a cair na década de 70, na medida em que os acadêmicos revisaram os relatos dos primeiros europeus sobre a região, que falavam não de tribos pequenas, mas de densas populações. Conforme o best seller de Charles Mann 1491 descreve com eloquência, as Américas eram densamente habitadas na véspera do desembarque dos europeus, e a Amazônia não era exceção. Gaspar de Carvajal, o missionário que escreveu as crônicas da primeira expedição espanhola rio abaixo, observou cidades fortificadas, estradas largas com boa manutenção e muitas pessoas. Carvajal escreveu em seu relato de 25 de junho de 1542: “Passamos entre algumas ilhas que pensávamos ser desabitadas, porém ao chegarmos por lá, tão numerosos eram os povoados que vieram à nossa vista... que nos afligiu... e, quando nos viram, saíram para nos encontrar no rio em mais de duas centenas de pirogas [canoas], carregando 20 a 30 índios em cada uma, e algumas até com 40... estavam enfeitados com cores e vários emblemas, e portavam várias cornetas e tambores... e em terra, uma coisa maravilhosa de ver foram as formações de grupos que ficavam nas aldeias, todos tocando instrumentos e dançando em toda parte, manifestando grande alegria ao nos ver passando pelas suas aldeias.”

A pesquisa arqueológica em várias áreas ao longo do rio Amazonas, como a ilha do Marajó na foz do rio e sítios próximos às modernas cidades de Santarém e Manaus, confirma esses relatos. Essas tribos interagiam em sistemas de comércio que se espalhavam até localidades remotas. Sabe-se menos das localidades mais próximas dos limites ao sul da Amazônia, mas um trabalho recente em Llanos de Mojos nas várzeas da Bolívia e no estado do Acre sugere que eles também apresentaram sociedades complexas. Em 1720, o guarda de fronteira Antonio Pires de Campos descreveu uma paisagem densamente habitada na cabeceira do rio Tapajós, pouco a oeste de Xingu: “Esses povos existem em um número tão enorme que não é possível contar seus povoados ou aldeias, [e] muitas vezes em um dia de marcha passa-se por 10 a 12 aldeias, e em cada uma há de 10 a 30 habitações, e dentre essas casas há algumas que medem 30 ou 40 passos de largura... até mesmo suas ruas, que eles fazem bem retas e largas são mantidas tão limpas que não se encontra nenhuma folha caída...”

Além do enorme centro monolítico se erguendo sobre as florestas tropicais, resquícios de algo mais elaborado que as aldeias ainda hoje existentes estavam em toda a parte, sugerindo que o estilo de vida organizado e a economia produtiva agrícola e pesqueira poderiam suprir comunidades muito mais substanciais, mil a 2 mil vezes maiores – várias vezes a população contemporânea de algumas centenas. Há evidências de que, na realidade, a área já teve um sítio pré-histórico (designado X11 em nossa pesquisa arqueológica) cercado de imensos fossos. Os irmãos Villas Boas – indianistas brasileiros indicados para o Prêmio Nobel da Paz pela sua participação na criação do Parque do Xingu – já tinham relatado esses trabalhos no solo perto de muitas aldeias.

O sítio X6, próximo ao rio Angahuku, é conhecido pelos Cuicuro como Nokugu – nome do espírito de onça que se pensa lá habitar. O fosso que envolve a antiga cidade, corre por mais de 2 km, com 2 a 3 metros de profundidade e mais de 10 metros de largura. Seguindo os contornos do fosso chega-se a uma ponte de terra, por onde passava uma antiga estrada de terra, totalmente reta, com largura de 10 a 20 metros de largura, que levava para outro sítio antigo, Heulugihïtï (X13), a cerca de 5 km de distância. Na direção da cidade, a estrada, margeada por meios-fios baixos de terra, abriu-se até 40 metros – largura das autoestradas modernas de quatro pistas. Percorridas algumas centenas de metros, chega-se ao fosso interno ladeada por uma base em forma de funil, para uma paliçada de tronco de árvore. Após alguns metros mais de trechos de floresta, arbustos e áreas desmatadas que agora cobrem o sítio, marcas de atividades variadas no passado, chega-se a uma clareira gramada margeada por enormes palmeiras que assinalam uma antiga praça, com a borda perfeitamente circular marcada por uma elevação de um metro de altura. Nas redondezas dessa praça, encontramos altos sambaquis (depósitos de restos), repletos de recipientes quebrados, utilizados para processar e cozinhar a mandioca. Em uma visita posterior, quando escavávamos uma casa pré-colombiana, o chefe curvou-se dentro da área central da cozinha e retirou um enorme fragmento de cerâmica.


As aldeias antigas são distribuídas pela região e interconectadas por uma rede de estradas alinhadas com precisão. No início de 2002, quando se começou a usar o GPS, descobriu-se um grau impressionante de integração regional: o planejamento parece determinado, com um lugar específico para tudo. No entanto, fundamentava-se nos mesmos princípios básicos das aldeias atuais: as estradas principais correm do leste para o oeste, as secundárias se irradiam para fora do norte e do sul e as menores proliferam em outras direções.

Os agrupamentos de povoados e aldeias também sequem uma estrutura padrão: um centro principal cerimonial e várias aldeias satélites grandes em posições precisas em relação ao centro. Essas cidades provavelmente tinham mil ou mais habitantes. As aldeias menores estavam localizadas mais longe do centro.

Nos dias de hoje, a maior parte da paisagem antiga está coberta por vegetação, mas a floresta nas áreas centrais tem uma concentração distinta de certas plantas, animais, solos e objetos arqueológicos, como muita cerâmica. O uso do solo foi mais intenso no passado, mas os vestígios sugerem que muitas práticas antigas eram semelhantes às dos Cuicuro: pequenas áreas de plantio de mandioca, pomares com árvores de pequi e campos de sapé – o material preferido para coberturas de choupanas. O campo era uma paisagem de retalhos, intercalada por áreas de floresta secundária que invadiram as áreas agrícolas não cultivadas. Zonas úmidas, agora infestadas de buritis, a mais importante cultura industrial, preservam diversas evidências de piscicultura, como lagos artificiais, calçadas elevadas e fundações de açudes. Fora das áreas centrais, existia um cinturão verde menos povoado e até uma densa faixa florestal entre as diversas aldeias. A floresta também tinha seu valor como fonte de animais, plantas medicinais e de certas árvores, além de ser considerada a morada de vários espíritos da floresta.

As áreas dentro e ao redor de sítios residenciais estão marcadas por terra escura (egepe segundo os Cuicuro), um solo extremamente fértil, enriquecido por lixo domiciliar e atividades especializadas de manejo de solo, como queimadas controladas da cobertura vegetal. Na Amazônia, essas mudanças do solo foi alterado (tornando mais escuro, mais argiloso e rico em certos minerais) foram especialmente importantes para a agricultura de muitas áreas, já que o solo natural é bem pobre. No Xingu, a terra escura é menos abundante em certas áreas, já que a população nativa depende principalmente do cultivo da mandioca e dos pomares, que não necessitam de solo muito fértil.

A identificação de grandes núcleos populacionais murados, espalhados numa área comparável à de Sergipe, sugere que havia, no mínimo, 15 agrupamentos espalhados pelo Alto Xingu. Entretanto, como a maior parte da região não foi estudada, a quantidade correta pode ter sido muito superior. A datação por radiocarbono dos sítios já escavados sugere que os ancestrais dos xinguanos chegaram à região, vindos do oeste, e começaram a modificar as florestas e a zona úmida a seu critério cerca de 1.500 anos atrás ou até antes disso. Nos séculos que antecederam a ocupação da América pelos europeus, os sítios foram reformados, passando a compor uma estrutura hierárquica. Os registros existentes chegam apenas até 1884, portanto os padrões de povoação acabam sendo a única forma de estimar a população pré-colombiana; a escala dos povoamentos sugere uma população muito superior à atual, chegando de 30 a 50 mil indivíduos.

Há um século, o livro Garden cities of tomorrow (Cidades-jardins do futuro), de Ebenezer Howard, propôs um modelo para um crescimento urbano sustentável de baixa densidade populacional. Um precursor do movimento ecológico atual, Howard idealizou cidades interligadas como uma alternativa para um mundo industrial, repleto de cidades com arranha-céus. Sugeria dez cidades com dezenas de milhares de habitantes, que teriam a mesma capacidade funcional e administrativa que uma só megacidade. Os antigos xinguanos parecem ter construído esse sistema: um tipo de urbanismo de estilo verde ou protourbanismo – uma incipiente cidade-jardim.



Baseado em texto de Michael J. Heckenberger

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

PAJÉ

Para os tupi-guarani, PAJÉ são os que melhor conhecem os ciclos das estações, os fluxos dos rios e dos ventos, as vibrações sutis das montanhas e das pedras. PAJÉ é o detendor da sabedoria, aquele que mais sabe sobre a flora e fauna da sua terra, exímio conhecedor dos segredos das raízes, das plantas e das ervas, e o seu poder de cura.

Líder espiritual, benzedor e, ao mesmo tempo, médico da tribo
e curandeiro, integralmente relacionado com as comunidades, o PAJÉ e quem cuida do seu povo, quem traz consolo. E, sobretudo, é o amigo.

PAJÉ é o eterno itinerante que se move com desenvoltura no imenso mar de matas que outrora cobria o continente do sul abaixo do altiplano, desde acima da rede fluvial do Amazonas até o delta formado pela confluência dos três grandes rios que desembocam na bacia do Prata.

Sempre bem-vindo em todos os povoados, o PAJÉ é quem melhor conhece a rica mitologia das matas. Contador incomparável de histórias, cativa a imaginação de todos os povoados.

PAJÉ é o sonhador. Escutar sonhos - orehuera rohendu - e decifrá-los, é tarefa primordial sua. É a narração poética dos seus sonhos que o convertem em PAJÉ verdadeiro, pois no universo guarani, o sonho gera conhecimento e detona a ação.

PAJÉ é aquele que atende ao chamado que chega inesperado e, incompreensivelmente, permanece. Sua sabedoria serena abre um portal para o outro reino, longínquo e tão próximo que roça os sonhos dos habitantes desse âmbito ancestral que inspira todos os seus caminhos
.

PAJÉ é o "Senhor das Palavras", de eloqüência notória, cuja voz ressoa sonora, acima da dos outros cantores, ao dirigir os rituais. Dotado de inspiração - arandu - o PAJÉ é o poeta. Poeta das ñe'engatu, das "belas palavras" do linguajar tupi-guarani mais requintado, da fala do sagrado.

Baseado no texto de Yara Miowa.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

DUAS LÍNGUAS

Vivi muitos anos com a língua entortada,
porque fui obrigado a falar palavras estranhas de uma outra língua.
Queriam que eu falasse uma língua que eu não falava,
que eu dissesse o que não dizia, que eu calasse o que sabia.

Por isso, durante muito tempo fiquei emudecido.
A língua presa, travada, reprimida.
A palavra entalada na garganta, o não-dito.

Tentaram tirar de mim aquilo que havia guardado como um tesouro:
a palavra, que é o arco da memória.
Diziam que me faltava inteligência,
porque antes de gaguejar as palavras certas
eu tinha de pensar, duas vezes, numa língua estranha.

O tempo passou. Agora, tenho duas línguas.

Uma língua nasceu comigo, no colo da minha mãe.
É a língua que expressa a alma guarani.
É a língua do tekoha, da opy,
onde as palavras se abrem em flor e se convertem em sabedoria,
as belas palavras, nhe´en porãngue´i,
palavras indestrutíveis, sem mal, ayvu marã´ey.
O nome que tenho, foi ela quem me deu na cerimônia do Nhemongarai.
É nela que ouço as divinas palavras do maino´i.
Com ela nomeio as plantas, as flores, os pássaros, os peixes,
os rios e as pedras, o sol e a chuva, a roça e a caça.
Com ela, faço soar o mbaraka, aspiro o pityngua,
danço xondaro, canto pra Nhanderu e rezo nhembo´e.
Bebo kaguy, como avaxi e jety, aprendo jopói e potirõ,
tudo isso com ela eu faço: rio e choro, rezo e canto.
Com ela, eu sou o que falo: guarani.

A outra língua que tenho é a que sobrou
de uma guerra de muitas batalhas.
Ela trouxe a espada e a cruz, o livro e as imagens,
o sermão, o catecismo, a doutrina, as leis.
Ela me ensinou a aprisionar o som,
como quem pega a fumaça com a mão e a guarda no adjaká.
Com ela, aprendi riscar as letras,
e a desenhar as palavras no papel.
Quando saio da aldeia, é ela quem me ajuda.
Com ela, procuro escola e biblioteca, mercado e igreja,
posto de saúde e hospital, cartório e tribunal.
É com ela que me comunico com índios de outras línguas.
Com ela navego na internet,
descubro o pensamento do juruá,
caminho pelas ruas, leio as cidades, entro nos ônibus,
embarco e desembarco na rodoviária,
vendo o artesanato e converso com as pessoas.

Agora já não posso mais viver sem as duas.
Estou sempre trocando de língua com um pouco de medo,
como se fosse um caso de bigamia.

Uma língua sabe coisas que a outra desconhece,
acham graça uma da outra, fazem gozação e às vezes se zangam.
afora isso, elas se dão tão bem, que sonho nas duas ao mesmo tempo.

Às vezes, a palavra de uma soa engraçado na outra.
Às vezes, quero falar uma e me sai a outra.
Às vezes, quando me perguntam numa, respondo na outra.
Às vezes fico com uma delas tão engasgada que se permaneço calado
tenho a impressão de que vou explodir.

Algumas vezes elas se enredam e se entrelaçam uma na outra
e depois disputam uma corrida para ver quem chega primeiro,
e muitas vezes permanecem misturadas uma na outra
que me dá até vontade de rir.

Há dias em que as palavras não ditas me pesam tanto,
que eu libero todas elas, deixando-as voar como música,
com medo que fiquem enferrujadas as cordas que as sabem tocar.
Há dias em que quero traduzir uma para a outra,
mas as palavras se escondem de mim, fogem para bem longe
e gasto muito tempo correndo atrás delas.
Entre elas, dividem o meu mundo
e quando atravessam a fronteira se sentem meio perdidas
e não se cansam de roubar palavras uma da outra.
Ambas pensam,
mas há partes do coração em que uma delas não consegue entrar
e quando se aproxima da porta, o sangue se põe a jorrar com as palavras

Cada uma foi professora da outra:
o guarani nasceu primeiro e eu me habituei a dormir
embalado por sua suave sonoridade musical.
O guarani não tinha a letra, é verdade, mas era o dono da palavra falada.
Ensinou ao português os segredos da oralidade, guiando-lhe a voz.
Já o português, nascido na ponta dos meus dedos,
ensinou o guarani a escrever, porque este nunca havia freqüentado a escola.
Tenho duas línguas comigo
duas línguas que me fizeram
e já não vivo sem elas, nem sou eu, sem as duas.

------------------------------------------

Participaram da elaboração do poema:

Da aldeia SAPUKAI:
PROFESSORES GUARANI: Algemiro da Silva (Karai Mirim), Alessandro Mimbi da Silva (Wera Mirim) e Valdir da Silva (Wera Poty).
AGENTES DE SANEAMENTO: Adílio da Silva (Kuara´y) e Aldo Fernandes Ribeiro (Karai Mirim)

Da aldeia ITACHIM:
PROFESSORES GUARANI: Sérgio Silva (Nhamandu Mirim), Darcy Nunes de Oliveira (Tupã) e Isaac de Souza (Kuaray Poty).
AGENTE DE SANEAMENTO: Hélio Vae (Karai Tupã Mirim)

Da aldeia RIO PEQUENO:
PROFESSORES GUARANI: Nirio da Silva (Karai Mirim) da Aldeia Araponga e Neusa Mendonça Martins (Kunhá Tacuá).
AGENTE DE SANEAMENTO: Jorge Mendonça Martins (Wera)

Da aldeia ARAPONGA:
AGENTE DE SANEAMENTO: Vilmar Vilhares (Tupã)

Da aldeia TRES PALMEIRAS:
TRADUÇÃO E REVISÃO: Marcelo Werá

FAXINAL DO CÉU (Paraná):
O mesmo texto foi trabalhado com os Guarani pelos professores José R. Bessa e Ruth Monserrat.

Os guaranis e não-guaranis agradecem a Amadeu Ferreira
a generosidade em ceder o seu poema para ser trabalhado dessa forma.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

VÁRZEA AMAZÔNICA... ponto de partida

A VÁRZEA é uma planície sazonalmente inundável, que ocorre ao longo da calha do rio Amazonas e na voz de alguns de seus principais afluentes, bem como na bacia do Orinoco. Essa planície é chamada ALUVIAL porque sua superficie é formada pelo depósito, sempre renovado, de material em suspensão transportado pelo rio. O Amazonas é um rio quimicamente rico e farto em material depositável, pois seus formadores, nascem nas serrarias andinas, descem velozmente em direção leste, erodindo as margens e carregando grandes quantidades de sedimentos. Costuma-se opor a várzea à terra firme, que representa mais de 95% do território amazônico. Essa categoria é, no entanto, por demais genérica, e não dá conta da diversidade de solos e ambientes da região.


Robert Carneiro e Donald Lathrap foram dos primeiros historiadores a apontarem para a produtividade da várzea e, por isso, a sua ocupação por diversos povos durante séculos. Lathrap defende a idéia de que a Amazônia central foi um grande pólo de desenvolvimento cultural: centro de domesticação de plantas e do sistema produtivo baseado na mandioca amarga, local do desenvolvimento da primeira indústria cerâmica e de estilos artisticos sofisticados. De sua várzea, tão rica quanto disputada por uma população sempre crescente, teriam partido levas migratórias que iriam povoar a América do Sul. O modelo de Lathrap baseia-se na ideia de que a combinação entre um ambiente rico e ao mesmo tempo restrito funcionaria como uma espécie de coração, bombeando população e cultura para outras áreas do continente. O crescimento demográfico, possibiliitado pela abundância de recursos, provocaria competição e guerra; parte da população seria obrigada a migrar, levando consigo as realizações culturais da Amazônia central para regiões distantes.

Lathrap propos uma visão alternativa sobre a floresta tropical, invertendo o olhar "andes-cêntrico": a Amazônia - pelo menos a várzea - aparece como um lugar fértil e criativo, e não mais como um ambiente esterilizante das visões antigas. Etnre o mito do inferno verde e o do El Dorado, ele preferiu o segundo. Algumas de suas idéias, que pareciam implausíveis nos anos 1970, hoje ganham sustentação. A descoberta dos restos cerâmicos mais antigos das Américas no baixo Amazonas, na região de Santarém, veio reforçar a idéia de que a área possa ter sido um pólo de invenção e irradiação culturala. Datada por Anna Roosevelt, a cerâmica remonta a oito milênios, sendo cerca de 1 a 1,5 mil anos mais antiga do que aquelas encontradas no norte da Colômbia (San Jacinto) e na costa do Equador (Valdívia).


Ainda que essas inovações não tenham ocorrido na Amazônia central, e sim mais a jusante, a visão positiva de Lathrap parece hoje dominar a reflexão arqueologica. O Amazonas, com suas cheias e vazantes, converteu-se em nosso grande Nilo, com já sugeria o jesuíta Cristóbal de Acuña, em 1641: "Se o Nilo irriga o melhor da África, fecundando-a com sua corrente - o rio das Amazonas banha reinos mais extensos, fertiliza mais planícies, sustenta mais homens e aumenta com suas águas oceanos mais caudalosos."

Hoje, tende-se a pensar como Acuña. As estimativas demográficas para a várzea do Amazonas, por exemplo, saltaram dos 130 mil habitantes propostos por Steward para 1.5 milhões de pessoas (quase 15 hab/m2), segundo cálculos de Denevan. O retorno da visão do paraíso, contudo, só se tornou hegemônico a partir dos trabalhos de Anna Roosevelt, nas décadas de 1980 e 90. Foi então que o paradigma de Meggers começou a perder influência e dar lugar a uma nova imagem da Amazônia pré-conquista. Roosevelt renovou os métodos e as interpretrações arqueologicas na América do Sul tropical, realizando pesquisas na bacia do Orinoco e no baixo Amazonas. Sua influência é, hoje, notável e ultrapassa o âmbito da arqueologia, constituindo-se tambem um paradigma para etno-historiadores e etnólogos, com impacto profundo sobre a conceitualização das sociedades indígenas do passado e do presente.


A despeito do efeito liberador de seus trabalhos para a arqueologia regional, a autora permance presa aos pressupostos do modelo anteror. Compartilhando o determinismo ecológico de Meggers, discorda desta quanto ao potencial do ambiente amazônico, em particular no tocante aos solos aluviais da várzea (mas também em relação à diversidade pedológica e ecológica da região). Roosevelt sustenta que as planícies inundáveis às margens do Orinoco e do Amazonas propiciaram o desenvolvimento de formas sociopolíticas complexas. Sua hipótese inicial, baseada em pesquisas no Orinoco, era de que a introdução do cultivo do milho teria conduzido a um notável crescimento e adensamento populacional na várzea.

Embora a hipótese de mudança tecnológica não tenha sido confirmada por sua pesquisa em Marajó, a autora não alterou sua formulação sobre a história cultur
al amazônica. Segundo ela, a partir do primeiro milênio da era cristã, modificações nas atividades, escala e organização das sociedades da várzea começaram a ocorrer, com os seguintes ingredientes:
- incremento demográfico,
- intensificação da produção,
- especialização da produção artesanal,
- extensão das redes de comércio,
- estratificação social e

- centralização política.
Esse processo teria levado ao surgimento de grandes cacicados complexos em torno de 1.000 d.C., cujos domínios se estenderiam por dezenas de milhares de quilômetros, abrigando populações de vários milhares de pessoas, unificadas muitas vezes sob o comando de um chefe supremo. Essas sociedades seriam belicosas e expansionistas, com uma organização social hierárquica mantida por tributos e por uma economia intensiva, capaz de produzir e estocar alimentos em larga escala.

Baseado em texto de CARLOS FAUSTO

NORTE CHICO... berço da civilização sul-americana

Imprensada entre os Andes e o Pacífico, a costa do Peru é extremamente árida. Sobre a maior parte do continente sul-americano, ventos predominantes vêm do leste, através do Brasil. Quando o quente vento e úmido amazônico chega às alturas dos Andes, resfria-se e sua umidade desce na forma de neve. Não sobra quase nada para a costa peruana... Por outro lado, ela também é isolada da umidade do Pacífico, onde ventos alísios criam uma segunda zona de chuva. Soprando a partir do sudoeste, os alísios empurram a superfície quente das águas para o nordeste, trazendo as águas geladas das profundezas perto da praia para a superfície. O fluxo de água fria costeira - conhecida como "Corrente Humboldt" - esfria o ar acima da superficie. Vindo do oeste, os ventos alísios do Pacífico encontram o ar frio da corrente Humboldt e são empurrados para cima, numa inversão de temperatura clássica. Com isso, o movimento do ar é inibido (o ar frio não consegue elevar-se e o ar q uente não desce), inibindo a chuva. Assim, isolado do ar úmido pelos Andes e pela Corrente Humboldt, o litoral peruano é espantosamente seco. Em alguns lugares - como por exemplo partes do Deserto de Atacama, na fronteeira entere o Peru e o Chile - nunca foi registrada qualquer chuva.

Contudo, a costa é pontuada por mais de cinqüenta rios, que canalizam as aneves derretidas dos Andes para o mar. As linhas de vegetação ao longo das suas margens são oásis, locais férteis em que as pessoas podem cultivar em campos que de outro modo seriam terra morta. Durante grande parte do ano, o ar oceânico é frio o bastante nas manhãs de inverno para fazer a cerração avançar para dentro dos vales a 30 metros de profundidade. A nebllina dá ao deserto a maior parte da sua umindade.
Os primeiros habitantes do Peru aparecem no registro arqueológico antes de 10.000 a.C. Aparentemente, viviam uma parte do ano nos contrafortes das montanhas, coletando e caçando; quando o inverno chegava, eles marchavam para a costa mais quente.

Em 8.000 a.C., os paleoamericanos tinham se irradiado por todo o oeste da América do Sul. Alguns grupos se estabeleceram em cavernas nas montanhas, matanco vicuñas do tamanho de veados com lanças; outros tiravam peixes dos mangues; ainda outros permaneciam na praia como seus antepassados tinham feito, fazendo redes e colocando-as na água. No crestado deserto do Atacama, os Chinchorro criaram as primeiras múmias da história.


As múmias chinchorras eram frequentmente repintadas, indicando que não eram logo enterradas, mas mantidas em exibição, talvez durante anos. Pode-se especular que os pais enlutados não fossem capazes de deixar partir o corpo dos seus filhos numa sociedade que considerava que o espírito aderia à carne. O que é certo é que as múmias chinchorras são a primeira manifestação de um fenômeno que marcou as sociedades andinas em todo o caminho até os Inka: a crença de que o morto preservado e venerado podia exercer um forte impacto sobre os vivos.

Uma das regiões dessa costa é conhecida, hoje, como NORTE CHICO,
formada por quatro estreitos vales fluviais - Huaura, Supe, Pativilca e Fortaleza. Eles convergem para uma fatia de litoram com menos de 48 quilômetros de comprimento. Que, como todo o resto, é uma zona agronômica impraticável: estéril, nebulosa, quase desprovida de chuvas, sísmica e climaticamente instável. Exceto ao longo dos rios, nada cresce a não ser líquen. Não obstante, em algum momento antes de 3.200 a.C., e posivelmente antes mesmo de 3.500 a.C., algo aconteceu ali, pois encontramos, nessa área, um complexo de sítios extraordinários: a concentração de pelo menos 25 grandes centros cerimoniais/residenciais, única em toda a América do Sul. Metaforicamente, a maior parte dos Andes é coberta por pequenos grãos de areia (entre 3.000 e 1.800 a.C.); em uns poucos pontos, há formigueiros que se distinguem na paisagem de grãos desarticulados... No Norte Chico, há um vulcão!

Entre esses centros, destacamos ASPERO, com meia dúzia de montes-plataforma, de tipo templo, alguns com 5m de altura, que são indícios de uma cultura mais avançada materialmente do que se imaginaria para a época e o local. Hoje sabe-se que Aspero pode ter chegado a 17 montes-templos construídos entre 4.900 e 3.000 a.C.

CARAL emerge do solo arenoso como uma portentosa formação de 60 hectares de terraplanagens: seus grandes montes-plataforma, um com 20 metros de altura e 33 m de um dos lados; duas praças cerimoniais circulares rebaixadas; meia dúzia de complexos de montes e plataformas; grandes edifícios de pedra com apartamentos residenciais, foi fundada antes de 2.600 a.C.
Entre os rios Pitivilca, ao norte dessa região, e o Fortaleza, um pouco mais ao norte, encontramos centros urbanos importantes, do porte de Caral em termos de arquitetura monumental, estruturas cerimoniais e arquitetura residencial. E alguns deles são mais antigos que Caral. Há evidências, em HUARICANGA, de povos vivendo ali a partir de 9.210 a.C. Em CABALLETE a datação mais antiga chega a 3.100 a.C.; em PORVENIR e UPACA, a 2.700 a.C. Tomadas individualmente, nenhuma das 25 cidades do Norte Chico rivalizava as cidades sumérias em tamanho, mas a totalidade era maior do que a Suméria inteira. As pirâmides do Egito eram maiores, mas foram construídas séculos mais tarde.

Essas cidades devem ter tido um governo centralizado que instigava e dirigia o trabalho. No Norte Chico, em outras palavras, o Homo sapiens experimentou um fenômeno que antes só tinha ocorrido uma vez, na Mesopotâmia: a emergência, para o melhor ou o pior, de líderes com prestígio, influência e posição hierárquica bastantes para induzir seus súditos a fazerem trabalho pesado. Era a segunda experiência do gênero de HUMANOS COM GOVERNO!
O Norte Chico é um dos únicos dois lugares que INVENTOU o Governo. Em todos os demais lugares, ele foi herdado ou emprestado. As pessoas nasceram em sociedades com governo, ou viram os governos dos vizinhos e copiaram a idéia. Mas no Norte Chico, as pessoas PRODUZIRAM UM GOVERNO.
De onde provém o governo? O que faz as pessoas decidirem abrir mão de uma parte de sua liberdade pessoal em nome dele? O que elas ganham com isso? No Norte Chico, o Governo não parece ter decorrido da necessidade de defesa mútua, pois as 25 cidades não são localizadas estrategicamente e não tem muralhas defensivas. Também não se encontra nenhuma evidência de guerra - como edifícios queimados ou corpos mutilados. Em vez disso, a base do poder dos governantes era o bem econômico e espiritual comum. O governo era quase certamente teocrático, com líderes induzindo seus seguidores a obedecerem através de uma combinação de ideologia, carisma e reforço positivo habilmente cronometrado. Espalhado uase que a esmo, em torno do topo dos montes, há pedregulhos queimados e oxidados, demostrando serem "pisos de lareira". O que insinua restos de banquetes; ou seja: os governantes estimulavam e premiavam a força de trabalho durante a construção e a manutenção do monte organizando churrascos celebratórios de peixe e raiz de bananeirinha-da-índia, diretamente no local do trabalho. Depois, eles misturavam os restos ao monte, incorporando a celebração na construção. Também foram encontradas 32 flautas feitas de ossos de asa de pelicano, guardadas num nincho no templo principal.
O único traço conhecido de deidade no Norte Chico pode ser uma água-forte gravada na casca de uma cabaça: representa uma figura com presas afiadas usando chapéu, que encara o espectador de frente, segurando um longo cajado ou bastão em cada mão. Parece uma versão primitiva do DEUS DA VARA, deidade com presas que é uma das principais do panteão andino. A cabaça do Norte Chico foi feita entre 2.280 e 2.180 a.C. Essa data indica quea principal tradição espiritual andina - AI APAEC ou o PUMA SOLAR - originou-se no Norte Chico e que essa tradição perseverou por pelo menos 4 mil anos.

O Norte Chico acendeu a fogueira cultural. Ao longo dos 3 mil anos seguintes, o Peru hospedou diversas culturas, mas a despeito da sua variedade, todas parecem ter bebido na fonte do Norte Chico. O tipo de intercâmbio estabelecido, cobrindo uma extensa área; propensão para o coletivo; projetos de obras cívicas festivas; alto valaor dos téxteis e da tecnologia têxtil... o Norte Chico parece ter estabelecido o modelo para todas essas práticas.

Baseado no texto de CHARLES C. MANN

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

ÑAMANDU RU TENONDÉ... a Grande Escuta

Todo entardecer é saudado dos Guarani por cantos prolongados e invocações a ÑAMANDU RU TENONDÉ, o Verdadeiro Pai Primeiro. Ele é a figura central da cosmogonia das matas; representa o desdobrar de um brilho incomensuravel a surgir de uma fonte de luz fulgurante que ainda não é o sol - pois naqueles tempos primordiais, Kuarahy nem sequer existia - porém que é o fulgor do seu próprio coração. Desconhecidos ainda os dias e as noites, o único manancial de luz era o que refletia o py'aguassu (grande coração) de Ñamandu.

Os anciãos contam às gerações mais novas, em volta do fogo, que no seio das trevas primigênitas - Pytu yma - antes da existência do céu e da terrra, surgiu a Grande Escuta chamada Ñamandu. E durante sua passagem, com o desdobrar do corpo de Ñamandu, foram se desenvolvendo miríades de maravilhas: o sol, a lua, as estrelas e todas as luminárias, as grandes árvores e as plantas, as fontes e os córregos, os mares, as montanhas e as colinas, e todas as demais manifestações irrompendo aos borbotões, incessasntes. E do desobrar de Ñamandu foram emanados também todos aqueles que seriam os companheiros da sua divindade. Cada ser, ao surgir, cantando sua própria melodia, exalando seu próprio aroma.

Todos os ñanderu (sábios, sacerdote, curandeiro) afirma que a dádiva maior do desenrolar de Ñamandu é a FALA, embutida no âmago de cada habitante da mata. Essa preeminência da oalavra-revestida-de-alma é notável em toda a cosmogonia Guarani. Contam esses sábios que o peito de Ñamandu foi parindo melodias sem fim, desabrochando em lumiárias celestes, em rios e colinas, em chuvas e ventos, em todas as formas pulsantes de vida. Foi assim que a Linguagem Sagrada espalhou-se em todas as direções, nessse ímpeto gerador que, em determinado momento, fez surgir as quatro forças primordiais da vara-cetro que Ñamandu leva nas mãos, como símbolo do surgimento espontâneo dos seres. Cada força manifesta-se como uma deidade, com sua companheira, incumbida de uma tarefa específica, continuamente sendo cumprida no ciclo a brotar, infinito, do seio das trevas.

Sobre essas forças primeiras há várias versões. A mais comum fala que os ancestrais divinos mais importantes são os que assinalaram os quadro cantos do mundo:

JAKAIRA RU ETÉ e sua esposa YSAPY, portadores da neblina vivificante, do orvalho e da primavera, fonte de vida para todos os seres, cujo reino se estende ao leste do mundo.

KUARAHY RU ETÉ e sua esposa JACHUKÁ, portadores da luz, desenvolvem o brilho maior; seu reino abrange o norte, de onde projetam as ondas quentes de seu bafo.

KARAI RU ETÉ e sua esposa KERECHU, portadores do fogo e das chamas, contém as labaredas em suas manifestações visíveis, vivificam todos os seres em seu caminhar, e seu reino se alastra para o oeste.

TUPÃ RU ETÉ e sua esposa PARÁ, portadores da água, dos trovões, dos relâmpagos e das tempestades, irrompem, implacáveis, em estrondos e raios, e seu reino se espalha pelos espaços do sul.
O zênite, o meio-do-céu, é a morada de ÑAMANDU e sua esposa ÑANDECY.

O símbolo dessa cosmogonia é a CRUZ GUARANI, de braços iguais dentro de um círculo - o YVYRÁ JOAÇÁ RECÓ YPÝ. Ela representa as quadro direções, os quatro cantos do mundo, que se desdobram a partir do meio.
Os pensamentos vão desfiando uma trilha de brilho contínuo, semelhante à senda que Jacy (o Lua) lança sobre as águas, no plenilúnio: será que as emanações de Ñamandu foram recendo a consciência das divindades, gerando poesias? Seria esta a fonte inspiradora dos seus filhos diletos? Os antepassados divinos devem certamente zelar para repartir as suas dádivas entre seus amados filhos, homens, e entre suas amadas filhas, as mulheres.
A neblina vivificante de Jakaíra, o calor irradiande de Kuarahy, as chamas flamejantes de Karaí e as águas refrescantes de Tupã: estas quatro forças certamente são as que constituem o fundamento do bem-estar humano. Através desses sublimes dons, ao ser humano é dado o privilégio de se erguer e de caminhar e, mais ainda, lhe é concedida a dádiva maior: a sua FALA. Receptáculos de tantas bem-aventuranças, a relação entre os humanos e seus ancestrais só pode ser a de solidariedade e amor. E para retribuir tantas dádivas recebidas, o seu primeiro dever seria depurar a sua fala: está é uma tarefa sagrada! Todas as outras, se comparadas, carecem de relevância. Pois é a expressão verbal que comprova o pulsar da origem divina. Cada ser é embalado por uam voz só sua, é dotado de uma imaginação própria, de modo a poder transitar em espirais de melodias. O DIZER de um ser humano é primordial!
Os quatro pilares essenciais da vida foram se posicionando naturalmente, cada qual na direção que melhor lhe convinha, de modo a sustentar o desenfreado fluxo de tantos fenômenos palpitantes surgindo num emaranhado estonteante de sons, texturas e aromas entrelaçados. Ao centro da torrente estrepitante brotou PINDOJU, a palmeira sagrada, para orientar os quatro primeiros Pais da Palavra.

Baseado no texto de Yara Miowa, no livro "Kuarahycorá - O Círculo do Sol"


sábado, 9 de janeiro de 2010

MILPA e o MILHO ÍNDIO, agricultura natural mexica

Os agricultores indígenas do México têm como esquema básico de cultivo o MILPA. Muitas vezes traduzido como "milharal", por ser o milho índio a base alimentar daqueles povos, o milpa é um campo sempre recentemente capinado, onde o agricultor planta uma série de cultivos ao mesmo tempo: milho índio, abacate, múltiplas variedades de abóbora e feijão, melão, tomates, pimentas, batata-doce, jicama (um tubérculo), amaranto (um pseudocereal), e macuma (um legume tropical). Na natureza, feijões e abóboras selvagens crescem frequentemente no mesmo campo que os teosinto, os feijões usando o alto teosinto como escada para subir na direção do sol; debaixo da terra, as raízes fixadoras de nitrogênio dos feijões fornecem nutrientes necessários ao teosinto. O milpa é uma elaboração deste situação natural, diferente das fazendas comuns, que envolvem extensões de monoculturas de um tipo raramente observado em paisagens não aradas.

As safras produzidas no milpa são nutricional e ambientalmente complementares. O milho índio carece dos aminoácidos lisina e triptofano, de que o corpo precisa para produzir proteínas e ácido nicotínico; dietas com excesso de milho índio podem levar a deficiência protéica e pelagra, doença causada pela falta de ácido nicotínico. Feijões têm tanto lisina como triptofano, mas não os aminoácidos cistina e metionina, que são fornecidos pelo milho índio. Resulta que feijões e milho índio compõem uma refeição nutricionalmente completa. A abóbora, por seu lado, povê uma gama de vitaminas; o abacate, gordura. O milpa, na estimativa de Garrison Wilkes, pesquisador da Universidade de Massachusetts, em Boston, "é uma das mais bem-sucedidas invenções humanas jamais criadas".

Como o campo agricultural é menos diverso do que os ecossistemas naturais, não pode desempenhar todas as funções deste último. Resulta que os solos de fazendas podem exaurir-se rapidamente. Na Europa e na Ásia, os cultivadores tentam evitar a pressão sobre o solo promovendo a rotação de cultivos; eles podem plantar trigo em determinado ano, legumes no seginte, e deixar o solo descansar no outro. Em muitos lugares, porém, a prática so funciona por um tempo, ou então é economicamente inviável não usar a terra por um ano. Então, os cultivadores lançam mão de fertilizantes artificiais, o que, na melhor das hipóteses, é caro, e, na pior, pode infligir danos de longo prazao ao solo. Ninguém sabe por quanto tempo o sistema poderá continuar. O milpa, em contraste, tem um extenso registro de sucessos. Há lugares na Mesoamérica que foram continuamente cultivados ao longo de 4 mil anos e ainda são produtivos. O milpa é o único sistema que permite esse tipo de uso de longo prazo. É provavel que o milpa não possa ser repetido em escala industrial. Porém, ao estudar as suas características essenciais, os pesquisadores podem adquirir a capacidade de abrandar os gumes ecológicos cegos da agricultura convencional. "A Mesoamérica ainda tem muito a nos ensinar", diz Wilkes.

Os métodos de cultivo índios antigos podem ser a cura para algumas doenças modernas da agricultura. A partir dos anos 1950, cientistas desenvolveram cepas híbridas de trigo, arroz, milho índio e outras colheitas muito mais produtivas do que as variedades tradicionais. A combinação das novas safras e o uso grandemente amplliado de fertilizantes e de irrigação levaram ao boom conhecido como "Revolução Verde": muitos países pobres tiveram as safras aumentadas tão depressa que, apesar do rápido crescimento das populações, a incidência de fome caiu dramaticamente. Infelizmente, contudo, os novos híbridos são quase sempre mais vulneráveis a doenças e insetos que as variedades mais velhas. Além de serem muito caros para muitos pequenos cultivadores, os fertilizantes e a irrigaçção podem, se usadas de maneira imprópria, prejudicar o solo. E talvez ainda pior a longo prazo, a exuberante difusão da Revolução Verde desencadeou a extinção de muitos cultivares tradicionais, o que por sua vez reduziu a diversidade genética das safras. Wilkes acredita que essas dificuldades podem ser total ou parcialmente resolvidas através da reprodução do milpa num contexto contemporâneo.

O milho índio no milpa, escreveu Michael D. Core, arqueólogio do Yale, "é a chave (...) para compreendermos a civilização mesoamericana. Lá onde ele floresceu, também floresceu a alta cultura". Na década de 1970, a geógrafa Anne Kirkby descobriu que os cultivadores índios de Oaxaca consideravam que se um milpa não pudesse produzir mais de cerca de 40 quilos por hectare, não valia o esforço despendido. Usando esse número, Kirkby voltou às antigas espigas escavadas em Tehuacán e tentou estimar quantos grãos por hectare elas teriam produzido. Nos seus cálculos, a colheita rompeu a barreira mágica dos 40 quilos por hectare em algum momento entre 2000 e 1500 a.C. É mais ou menos nessa época que as primeiras evidências de capina da terra em larga escala para estabelimento de milpas surgem no registro arqueológico. E com isto surge a Olmeca - primeira grande civilização da Mesoamérica.

Baseado no lado da costa do Golfo na cintura do México, no outro lado de uma cadeia de montanhas baixas desde Oaxaca, a Olmeca entendeu claramente as profundas mudanças desencadeadas pelo milho índio - com efeito, eles as festejaram em sua arte: o lugar central do milho índio, geralmente representado por uma espiga vertical com duas folhas laterais pendentes. Nos retratos olmecas de seus reis, gravados em estelas (longas pedras planas colocas verticalmente no solo), as roupas escolhidas para representar o seu papel espiritual crucial na prosperidade da sociedade geralmente incluím ornatos de cabeça com uma espiga de milho índio brasonada na fronte, como uma estrela. Segundo Virgínia Fields, curadora de arte pré-colombiana do Museu de Arte do Condado de Los Angeles, o símbolo tinha tanta ressonâncias que, em hierógrilos maias posteriores, "tornou-se o equivalente semântico do mais alto titulo real, o ahaw". No mito maia da criação, o célebre Popul Vuh, os humanos foram lliteralmente criados a partir do milho índio. Em se livro "O Milpa e a Origem do Calendário Maia, Paulino Romeereo Conde emite a teoria de que o Tzolkin - o calendário maia - está conectado ao milpa e ao cultivo do milho índio.

O milho índio e o
milpa se disseminaram lentamente pelas Américas, só interrompendo seu avanço onde o cllima tornava-se frio ou seco demais. Na época dos Peregrinos, milpas com milho índio, feijões e abóboras misturados pontuavam a costa da Nova Inglaterra e em muitos lugares estendiam-se por quilômetros ao interior. Ao sul, o milho índio chegou ao Peru e ao Chile, onde foi uma ração de muito prestígio, mesmo as nações andinas tendo desenvolvido o seu próprio sistema agrícola, com as batatas ocupando o lugar central. E, na Amazônia, a mandioca.

Baseado em texto de Charles Mann