O conceito de TERRA-SEM-MAL outorgou aos Guarani um caráter de modernidade notável. Do conceito, apropriaram-se não só os antropólogos, mas também ecologistas, filósofos, sociólogos, historiadores, poetas e teólogos. A Missa da terra-sem-males, de Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, é em si um poema admirável e apaixonado. Do guarani, foi amplamente divulgada a imagem de quem busca, incansável e profeticamente, essa terra-sem-mal. Falar de guarani se tornou quase sinônimo da busca da terra-sem-mal. Desse modo, uma experiência indígena se tornou exemplar e paradigmática para se pensar e trabalhar uma realidade mais ampla e geral, como é o projeto – a utopia – de uma sociedade mais solidária e humana. Segundo os versos de Casaldáliga (1980):
Os pobres desta terra
queremos inventar
essa Terra-sem-males
que vem cada manhã
queremos inventar
essa Terra-sem-males
que vem cada manhã
E é verdade que as palavras “yvy marane’ÿ” – terra sem-mal – assim como “ka’a marane’ÿ” – selva sem-mal – constam já no “Tesoro”, de 1639, mas com um sentido mais ecológico e realista. Trata-se de um solo intacto, de um monte ou selva não trabalhado, de onde ainda não se tirou madeira. Por analogia, “kuña marane’ÿ” é mulher virgem, e o epíteto foi aplicado pelos missionários à Virgem Maria. O caminho à terra-sem-mal não desviaria do paraíso, mas, pelo contrário, faria começar aqui e agora essa utopia, em um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem opressão. A terra-sem-mal dos Guarani seria, nada mais e nada menos, “a terra da liberdade de todos os homens”, como entendeu também Casaldáliga.
A verdade é que os Guarani escolheram climas úmidos, com uma temperatura média entre 18 e 22º C, se localizaram preferencialmente nas orlas de rios e lagunas, em lugares que não excedem os 400 metros acima do nível do mar, habitando bosques e selvas típicas da região subtropical.
Mas a ecologia Guarani não é só natureza, nem se define pelo seu valor exclusivamente produtivo. Com uma expressão que lhe é muito característica, o guarani se refere ao seu território como “tekoha”. Pois bem, se o “teko” é o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o “tekoha” é o lugar e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser guarani. Com os próprios dirigentes guarani, é preciso dizer que sem “tekoha” não há “teko”. O “tekoha” ideal é um monte preservado e pouco perturbado, reservado para a caça, a pesca e a coleta de mel e frutas silvestres. Além disso, há manchas de terra especialmente férteis para nelas se fazer as roças e os cultivos. E, por fim, um lugar onde será levantada a grande casa comunal, com um grande pátio aberto, ao redor do qual crescem alguns pés de banana, de tartago, de algodão e de urucu. São esses espaços: monte, roça e aldeia, que dão a medida da boa terra guarani.
Há até muito pouco tempo – antes que chegasse a rápida deterioração ecológica da região –, caminhar pelos caminhos de um “tekoha” Guarani e descansar em suas casas era ver um espetáculo e escutar uma sinfonia. Essa é a terra boa que o Guarani, caminhante, horticultor e aldeão, procurou incansavelmente para nela cultivar e viver.
Com boa produção agrícola, pode-se ter muita e abundante comida, e a possibilidade de fazer festa é muito maior. O fundamento da terra Guarani acaba sendo, desse modo, a festa, onde se compartilha a alegre bebida da chicha – “kaw” –, e onde há uma festa Guarani aí está, no fim das contas, o centro da terra e a terra boa e perfeita à qual se aspira.
Para o guarani, há uma relação direta entre terra-sem-mal e perfeição da pessoa. O caminho de uma leva à outra. E assim como a terra-sem-mal é real e está neste mundo, a perfeição, que, em seu grau de excelência, inclui o não-morrer – que não é simplesmente a imortalidade –, também é real na terra. A terra-sem-mal como terra nova e terra de festa, espaço de reciprocidade e de amor mútuo, produz também pessoas perfeitas, que não saberiam morrer.
Historicamente, o Guarani tem uma experiência inegável do mal na terra: é a festa impossível, a perfeição inalcançável. São numerosas as tradições que falam de catástrofes e cataclismos que já aconteceram e são sempre possíveis. As diversas metáforas da destruição da terra e de seus males podem receber uma leitura natural e desmitificada: se trataria de prolongadas secas, esgotamento do solo, diversas pragas de animais daninhos, eclipses do sol e da lua, inundações, ataques de inimigos... Não é essa, no entanto, a interpretação indígena. O mal na terra, essa “coisa deforme”, nunca é um fenômeno natural nem uma circunstância meramente ecológica. É algo que afeta e destrói o modo de ser guarani.
Os Paÿ e Kaiowá contemporâneos assinalam como causas que podem provocar a destruição da terra a violência e, em especial, o homicídio, as faltas cometidas contra a ordem moral, quando são negados a colaboração e o amor mútuo, e também a ofensa moral, quando não há reconciliação.
O mal atual consiste nos montes, nas cercas das fazendas que cortam os caminhos e reduzem a nada as terras indígenas, no egoísmo dos brancos e na falta de religião destes mesmos. É por isso que os cataclismos de sempre estão à espreita para se abater sobre o mundo: ventos de furacão, tempestades, incêndios, inundações, desgraças de todo o tipo, em forma de mortes repentinas, enfermidades incuráveis, fomes e mal-estar social.
O mal da terra não é de agora. Não há dúvida de que foi com a entrada do sistema colonial que o mal irrompeu com força inusitada e formas inéditas. Pestes, escravidão, cativeiro e perseguições foram os quatro cavaleiros do apocalipse colonial. A história colonial é, para o guarani, uma progressão de males que parece não ter fim nem limite. O pior de todos os males coloniais será simplesmente negar a terra aos Guarani. Ir aonde? Desaparecem as selvas e os montes, tudo se torna campo, e o campo é exigido pelo branco para as suas vacas. Toda a terra se torna mal. O “mba’e meguã” – a coisa ruim – cobre tudo.
Migrante e, portanto, frequentemente “trans-terrado”, o guarani, nunca antes havia sido tão des-terrado. Agora, em busca da terra-sem-mal, ele só teme o dia em que só haverá mal sem terra. Então, não haverá nem terra nem palavra.
Estive com frequência em assembléias e em rituais em que os discursos e as rezas expressam a dramática busca do povo guarani, em vista à recuperação da terra-sem-mal. Certamente, se apresentam dificuldades enormes, principalmente para reconstituir um território guarani, que, por outro lado, seria de grande valor para o Brasil inteiro e para toda a região do Rio da Prata. Os Guarani continuam lutando nessa busca. Isso lhes dá um sentido de ser, eles mesmos, profecias vivas e de ser, para todos nós, memória de futuro.
A verdade é que os Guarani escolheram climas úmidos, com uma temperatura média entre 18 e 22º C, se localizaram preferencialmente nas orlas de rios e lagunas, em lugares que não excedem os 400 metros acima do nível do mar, habitando bosques e selvas típicas da região subtropical.
Mas a ecologia Guarani não é só natureza, nem se define pelo seu valor exclusivamente produtivo. Com uma expressão que lhe é muito característica, o guarani se refere ao seu território como “tekoha”. Pois bem, se o “teko” é o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o “tekoha” é o lugar e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser guarani. Com os próprios dirigentes guarani, é preciso dizer que sem “tekoha” não há “teko”. O “tekoha” ideal é um monte preservado e pouco perturbado, reservado para a caça, a pesca e a coleta de mel e frutas silvestres. Além disso, há manchas de terra especialmente férteis para nelas se fazer as roças e os cultivos. E, por fim, um lugar onde será levantada a grande casa comunal, com um grande pátio aberto, ao redor do qual crescem alguns pés de banana, de tartago, de algodão e de urucu. São esses espaços: monte, roça e aldeia, que dão a medida da boa terra guarani.
Há até muito pouco tempo – antes que chegasse a rápida deterioração ecológica da região –, caminhar pelos caminhos de um “tekoha” Guarani e descansar em suas casas era ver um espetáculo e escutar uma sinfonia. Essa é a terra boa que o Guarani, caminhante, horticultor e aldeão, procurou incansavelmente para nela cultivar e viver.
Com boa produção agrícola, pode-se ter muita e abundante comida, e a possibilidade de fazer festa é muito maior. O fundamento da terra Guarani acaba sendo, desse modo, a festa, onde se compartilha a alegre bebida da chicha – “kaw” –, e onde há uma festa Guarani aí está, no fim das contas, o centro da terra e a terra boa e perfeita à qual se aspira.
Para o guarani, há uma relação direta entre terra-sem-mal e perfeição da pessoa. O caminho de uma leva à outra. E assim como a terra-sem-mal é real e está neste mundo, a perfeição, que, em seu grau de excelência, inclui o não-morrer – que não é simplesmente a imortalidade –, também é real na terra. A terra-sem-mal como terra nova e terra de festa, espaço de reciprocidade e de amor mútuo, produz também pessoas perfeitas, que não saberiam morrer.
Historicamente, o Guarani tem uma experiência inegável do mal na terra: é a festa impossível, a perfeição inalcançável. São numerosas as tradições que falam de catástrofes e cataclismos que já aconteceram e são sempre possíveis. As diversas metáforas da destruição da terra e de seus males podem receber uma leitura natural e desmitificada: se trataria de prolongadas secas, esgotamento do solo, diversas pragas de animais daninhos, eclipses do sol e da lua, inundações, ataques de inimigos... Não é essa, no entanto, a interpretação indígena. O mal na terra, essa “coisa deforme”, nunca é um fenômeno natural nem uma circunstância meramente ecológica. É algo que afeta e destrói o modo de ser guarani.
Os Paÿ e Kaiowá contemporâneos assinalam como causas que podem provocar a destruição da terra a violência e, em especial, o homicídio, as faltas cometidas contra a ordem moral, quando são negados a colaboração e o amor mútuo, e também a ofensa moral, quando não há reconciliação.
O mal atual consiste nos montes, nas cercas das fazendas que cortam os caminhos e reduzem a nada as terras indígenas, no egoísmo dos brancos e na falta de religião destes mesmos. É por isso que os cataclismos de sempre estão à espreita para se abater sobre o mundo: ventos de furacão, tempestades, incêndios, inundações, desgraças de todo o tipo, em forma de mortes repentinas, enfermidades incuráveis, fomes e mal-estar social.
O mal da terra não é de agora. Não há dúvida de que foi com a entrada do sistema colonial que o mal irrompeu com força inusitada e formas inéditas. Pestes, escravidão, cativeiro e perseguições foram os quatro cavaleiros do apocalipse colonial. A história colonial é, para o guarani, uma progressão de males que parece não ter fim nem limite. O pior de todos os males coloniais será simplesmente negar a terra aos Guarani. Ir aonde? Desaparecem as selvas e os montes, tudo se torna campo, e o campo é exigido pelo branco para as suas vacas. Toda a terra se torna mal. O “mba’e meguã” – a coisa ruim – cobre tudo.
Migrante e, portanto, frequentemente “trans-terrado”, o guarani, nunca antes havia sido tão des-terrado. Agora, em busca da terra-sem-mal, ele só teme o dia em que só haverá mal sem terra. Então, não haverá nem terra nem palavra.
Estive com frequência em assembléias e em rituais em que os discursos e as rezas expressam a dramática busca do povo guarani, em vista à recuperação da terra-sem-mal. Certamente, se apresentam dificuldades enormes, principalmente para reconstituir um território guarani, que, por outro lado, seria de grande valor para o Brasil inteiro e para toda a região do Rio da Prata. Os Guarani continuam lutando nessa busca. Isso lhes dá um sentido de ser, eles mesmos, profecias vivas e de ser, para todos nós, memória de futuro.
Entrevista de Bartomeu Melià ao IHU On-Line