sábado, 23 de agosto de 2014

CORPO TRANÇADO – CESTARIA E A RELAÇÃO MBYÁ-JURUÁ



O encontro entre duas culturas, que pode ser compreendido pela categoria interculturalidade, cujo prefixo inter expressa o sentido de interação, troca, reciprocidade, indica a possibilidade de integração entre elas sem anular sua diversidade, ao contrário, fomentando o potencial criativo e vital resultante das relações entre diferentes agentes e seus respectivos contextos, conforme argumenta Reinaldo Matias Fleuri (2005). É nesta perspectiva que proponho pensar o corpo trançado, que na contemporaneidade se estabelece a partir da relação mbyá-juruá, considerando seu fundamento mítico original, sendo tal fundamento conectado às novas experimentações que inspiram uma criação seriada, contínua e acrescida de outros elementos. Frade e Reis (2010) argumentam que não se pode pensar nos artefatos produzidos pelos Mbyá-Guarani sem levar em conta o esforço tradutório e interpretativo sobre o que se encontra no mundo externo e o que se pode esperar dessa relação.

A arte do corpo trançado encontra sua potência na cestaria, que é considerada como marca identitária dos três grupos Guarani – Mbyá, Kaiowá e Nhandeva. O cesto (ajaka) é confeccionado com as lascas do bambu, que por sua vez surgiu do orvalho, símbolo de Jachuka. Da planta porongo, também símbolo de Jachuka, fabrica-se o mbaracá dos homens. Da mesma fonte nasce o bambu, do qual se produz o bastão de ritmo das mulheres. Dessas duas plantas surgiram a humanidade, homem e mulher (CHAMORRO ARGÜELLO, 2008). Corroborando essa interação, Ivori Garlet revela a relação intrínseca existente entre o homem e a mulher. “O Ser Criador bateu com seu arco no cesto e dessa ação originou-se o homem, que é um corpo (rete) em forma de arco (guyrapa). Ele bateu no cesto pela segunda vez, dessa vez com a taquara, e dessa ação surgiu a mulher, que é corpo (rete) em forma de cesto (ajaka)” (GARLET, 1997).

Os Guarani acreditam que o trançado, que dá origem ao cesto, foi ensinado por Nhanderu para que pudessem carregar as sementes do milho sagrado para serem plantados na roça ou para guardarem o pão sagrado feito de milho (mboejape), referendado no batizado das crianças – um ensinamento para a realização da vida. Segundo o cacique guarani Vera Nhamandu Miri, é feito o mboejape (pão sagrado de milho), que é posto no adjaka (cesto) e fica durante 24 horas na Opy (Casa de Reza), o lugar mais sagrado da aldeia. Depois o oypirigua (pajé) chama as crianças que irão receber o nome. Neste momento, o cesto proporcionará alimento para o espírito. E, satisfazendo o espírito, o nome será bem cuidado, bem recebido. No dia seguinte, os pãezinhos de milho serão dados aos pais e às crianças.

No tekoa, o adjaká é mais que coisa, mas ente, um corpo/memória, possuindo a condição de sujeito/objeto. A espiritualização do adjaká possui uma ontologia ambígua. O corpo-forma do cesto contribui na geração da palavra, objeto pensado como extensão da pessoa, objeto trançado como ato sagrado. (FRADE; CAMPOS, 2008).

Em tempos remotos, as mulheres guarani utilizavam pigmentos naturais na coloração dos filetes de taquara (da família do bambu) que contribuíam na formação dos desenhos básicos tradicionais. O professor indígena Eloir Werá Xondaro traduz no papel os grafismos mais recorrentes visualizados nos cestos mbyá-guarani: Ipara kora: grafismo fechado, simboliza a pele de algumas cobras; Ipara korente: grafismo em forma de corrente, simboliza as relações entre as comunidades Guarani, seja de parentesco ou de amizade; Tanambi pepo: simboliza as asas de um tipo de borboleta; Ipara ryxi: grafismo em fila, simboliza pessoas em fila indo para a caça, para a coleta de frutos, para a pesca, para a busca de material para a confecção do artesanato.

Os adjaká usados nos rituais realizados na Opy não podem ser afetados por nenhum elemento externo. Devem ser criados com “elementos crus”, ou seja, as lascas retiradas do bambu e do porongo não devem receber tintura artificial, sendo assim, diferenciados daqueles que entram no circuito comercial.

Na Aldeia Tekoa Mbo’yty, Dona Lídia e sua mãe, Dona Juventina, exercitam sua sabedoria na arte do trançado, uma matemática complexa geradora de superfícies ritmadas. Cada trançado tem seu próprio autor, apontado através de grafismos identificadores de determinadas famílias. As formas evoluem no cotidiano, novas combinações são criadas e compartilhadas pelo grupo que as incluem em seu repertório cesteiro.

Apesar de designar tradicionalmente uma produção feminina, na Aldeia Tekoa Mbo’yty, alguns homens colaboram na feitura dos cestos: uns vão à reserva mais próxima coletar a taquara, uns ajudam no tingimento, outros na amarração inicial das fibras de taquara, ou até mesmo na produção total de cestos. É também comum contar com a colaboração de outras pessoas (homens ou mulheres), desde que pertencentes ao mesmo núcleo familiar, no processo de preparação das fibras, que são lascadas com a ajuda de uma lâmina delicada e afiada. Cada núcleo familiar desenvolve esse processo próximo a sua habitação-oca, estabelecendo seu território de criação coletiva. Uma trama resultante do entrelaçamento de fibras e também de corpos.

Os cestos, junto com outros objetos artísticos, encontram-se dispostos em uma ampla bancada para serem comercializados aos turistas que visitam a aldeia. Os objetos são dispostos por aproximações de categoria e autoria, que por sua vez são agrupados de acordo com os núcleos familiares. Conferem um modo de exposição segundo critérios estéticos autóctones. Essa disposição e agrupamento se aproximam do modo como os Guarani concebem a organização social e cosmológica do grupo no espaço/tempo (Ara Ypy), uma organização que prima por seus núcleos familiares, sejam eles da ordem da natureza ou da sobrenatureza.

A comercialização dos objetos artísticos se constitui como modo primordial de subsistência, tornando a vida dos mbo’yty cada vez mais entrelaçada à dos não-índios. Além do recurso material obtido pela venda dos objetos, essa interação estabelece um espaço de diálogo intercultural, uma comunicação estética mais ampla com o mundo externo e interno à sociedade mbyá-guarani. Um modo de subsistir pela via da arte – uma economia que se dá na produção de artefatos para o consumo externo – requer a ressignificação de sua cultura material, um entendimento que permita incorporar esse novo significado do nhanderekó mbyá-guarani, como argumenta Frade e Reis (2010).

O cesto adquire outro estatuto. A vida dos objetos relaciona-se diretamente ao universo que se pretende invocar. O sentido muda conforme o contexto no qual cada objeto se insere. “Os contextos podem mudar de forma radical, como acontece quando objetos e artefatos entram no circuito comercial interétnico, quando se tornam emblemas de identidade étnica, peças de museus ou ‘obras de arte’ ” (LAGROU, 2007).

Em comparação à disposição e significação dos cestos tingidos e os tradicionalmente sagrados no espaço da aldeia, é importante destacar as modificações operadas sobre esses itens ao mudarem de contexto. Ao serem transportados e reorganizados em museus, os cestos adquirem contornos de artefatos componentes, a partir de então, da dinâmica que se realiza na interação com um espaço reservado às instituições identitárias da arte institucional. O espaço de projeção da arte do corpo trançado configura-se, assim, em um ambiente imersivo, paisagem a ser desvendada pela incursão do espectador, privilegiando-se sua dimensão estética.

Os objetos da cultura material que no contexto tradicional tinham frequentemente, valor espiritual, são apreendidos como objetos estéticos, ao mesmo tempo em que são submetidos às leis de mercado do mundo da arte, conforme argumenta Stocking Jr. (1985). Blanca Dian Brum (2004) pontua que inserir esses objetos em outro sistema de representação quebra o elo de uma cadeia de significações, muitas vezes inoperante, capaz mesmo de criar barreiras epistemológicas no sentido da compreensão desses objetos e das sociedades que os produzem. Dessa forma, ambos, propõem a ampliação das categorias de apreensão e compreensão dessas produções estéticas, dessas sociedades e das práticas que as envolvem, compreendendo-as como textos simbólicos, como discursos que são uma dimensão fundada na oralidade. “Tudo significa, tudo é texto, que devemos aprender a ler, tudo é discurso que devemos aprender a ouvir para poder efetivamente mergulhar nessas culturas, compreendê-las e respeitá-las” (BRUM, 2004).

Os professores guarani Arnildo Werá e Eloir Werá Xondaro, ao visitarem a exposição no Museu do Índio – RJ, reclamaram da falta de um monitor nativo para falar um pouco sobre o contexto em que os objetos são produzidos – “apresentar seu olhar sobre si mesmo”. Estranharam também a seleção dos objetos expostos no museu, pois concebiam que veriam “coisas de antigamente”, que remetessem à história de seus ancestrais, como arcos, flechas e lanças; panelas produzidas com argila; pratos, colheres e canecas confeccionadas com sementes; colchão feito de folha de palmeira trançada; instrumentos, entre outros, que a memória dos jovens não alcança.

Não sei, talvez eu possa estar errado. É algo importante que está sendo mostrado aqui, mas isso é da atualidade. Se a gente voltasse um pouco para a antiguidade, para a história dos nossos ancestrais, veríamos coisas diferentes aqui, uns instrumentos diferentes e até mesmo o artesanato um pouco mais diferente. Mas isso não quer dizer que isso aqui não é importante para a sociedade guarani hoje em dia. Isso aqui é uma exposição de grande importância para nós. Através dessa exposição talvez a sociedade dos juruás dê mais importância ao povo Guarani. Não só aqui no Rio de Janeiro, mas em todo o território nacional. Isso é de muita importância para nós. São iniciativas assim que nos fortalecem. Os Guarani estão sendo um pouco esquecidos. Muito se fala de índio, mas pouco se fala dos Guarani. Existem várias etnias no Brasil. Principalmente os Guarani do Sul, de onde eu venho, é pouco falado, pouco lembrado. Os Guarani estão aqui no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Sul, em Santa Catarina, na Argentina e no Paraguai. O povo Guarani está vivo, sua cultura está viva, seus costumes estão vivos. Então, isso nos fortalece, não só fortalece como uma aldeia, mas como um todo, o povo no geral assim. Eu fico feliz pelos meus parentes terem conseguido esta oportunidade de estar mostrando um pouco das aldeias. E eu parabenizo esses guerreiros pela coragem também de estar expondo isso assim. Também fico muito feliz. Mas, o importante é mostrar a iniciativa, mostrar o suficiente para a sociedade conhecer um pouco da cultura guarani, mas isso não é suficiente (Depoimento de Eloir Werá Xondaro, 2010).

Há ainda muito a se fazer no campo da patrimonialização e/ou musealização dos bens materiais e imateriais indígenas dos Mbyá-Guarani. Há que se pensar outras políticas públicas de valorização, reconhecimento e conservação da cultura material e imaterial indígena, mas certamente políticas que contemplem o protagonismo indígena. Nesse sentido, o Museu do Índio apresenta algumas iniciativas como essa exposição, ainda que com uma participação “tímida” dos índios, bem como com oferecimento de cursos no campo museológico que qualifique, os próprios Guarani, como pesquisadores de sua cultura, conforme dito por José Carlos Levinho (2010), diretor do Museu do Índio: “Tem que ter formação, tem que ter qualificação, fornecer as ferramentas e deixá-los administrar e mostrar também os caminhos, porque não adianta fazer um feijão com arroz sem qualidade”. Mas como o próprio Guarani Eloir (2010) salienta: “isso não é suficiente”.

Baseado em texto de Maria Cristina Rezende de Campos –
“A arte do corpo mbyá-guarani: processos de negociação, patrimonialização e circulação de memória”

CORPO CERIMONIAL – RELAÇÃO PALAVRA ALMA


Na concepção dos Guarani a alma está vincula à palavra, e essa alma de origem divina está destinada a desenvolver-se até alcançar a plenitude. Cada pessoa é uma encarnação da palavra, a alma se faz com a história de vida da pessoa e as palavras formam a sinfonia de sua vida. “A alma, enquanto princípio de individuação que faz do corpo vivo uma pessoa, confunde-se com o nome próprio: a alma é o nome” (CLASTRES, P., 2004). O nome da pessoa é o fundamento fora do qual a pessoa não terá outro suporte válido. Cada ser nasce com uma cifra poética, descortinada em parte em sua nominação, que acompanha a pessoa desde seu nascimento até a sua morte. A concepção do ser humano é atribuída ao sonho, sonho que gera uma palavra. A pessoa será, então, uma “palavra sonhada”, um ato de conhecimento sonhado.

O mito de origem Mbyá, traduzido por Hélène Clastres (2007), esclarece que a Terra que primeiro existiu, Yvy Tenonde, foi criada por Nhanderu Papa Tenonde, também chamado Nhamandu Ru Ete. O Pai Primeiro “ergueu-se” e concebeu a linguagem. A palavra-alma, que circula no esqueleto, é o que mantém ereto o Guarani; e é somente quando a criança consegue ficar de pé e começa a andar que lhe é atribuído um nome guarani que marca a procedência (leste, oeste, norte, sul ou zênite) da palavra-alma que se encarnou nela.

Zélia Bonamigo (2008) recolheu, em sua pesquisa entre os Mbyá-Guarani da ilha da Cotinga, tekoa Pindoty, em Paranaguá-PR, dados reveladores sobre os Ñee ru ete – “Pais das almas” - que transmitem os nomes dados às crianças, tornando-os seus parentes. São eles: Jekupe e sua esposa Iva, sinônimos de Jakaira e Ysapi (primavera – cuidam da fonte da neblina – habitam o Norte); Kuaray e sua esposa Jachuka ou Ara (seres semelhantes ao sol – habitam o Leste); Vera ou Tupã e sua esposa Para (seres que lembram água, trovões, raios e chuvas – habitam o Oeste); Karai e Kerechu (seres guerreiros relacionados com o fogo – habitam o Sul). Esses seres se comunicam e circulam constantemente entre seus domínios. Quando Nhamandu Ru Ete concebeu essas divindades, conferiu-lhes o encargo das palavras-almas dos futuros homens. São eles que o cerimonialista – pajé, rezador ou xamã – invoca para saber de onde vem a alma da criança e qual é o seu nome. É essa palavra que providencia um lugar para si no corpo do novo ser.

A transposição dos nomes acontece durante o ritual Nimongarai ou Nhemongarai  – a, em ocasião da colheita do milho, durante o mês de janeiro – momento em que são revelados e distribuídos os nomes em língua Guarani às crianças da aldeia que, segundo os Mbyá, representam suas verdadeiras "almas" (SCHADEN, 1982). Traduzido provavelmente pelos missionários e assimilado pelos Guarani como “batismo do milho ou batizado”, o Nimongarai apresenta características autóctones que o torna significativamente diferente do batismo cristão.

O Nimongarai age no fortalecimento do corpo de cada indivíduo, inscrevendo-o no círculo de relações sociais. As crianças nascem com uma alma provisória e somente após o rito de nominação recebem, através da palavra, uma alma permanente, que deve ser cuidada. Palavra e alma se agenciam a partir do próprio significado do prefixo nhe que precede o termo mongarai – palavra-alma de origem divina. Pissolato (2007) ressalta que o corpo se mantém erguido na Terra “na medida em que os humanos sejam capazes de preservar o fluxo de ‘palavras’ – nomes, cantos, potencialidades dizíveis –, as quais se devem ‘fazer erguer’ quando enviadas pelos pais e mães divinos dos Mbyá ou de suas almas-palavras”.

Quando o pajé, rezador ou xamã não descobre o nome da criança, é sinal de que nenhuma palavra se encarnou nela e de que não sobreviverá. Tonico Benites (2009) conta que quando a pessoa morre a alma volta para o lugar de onde veio. Até o doze anos de idade essa alma se encontra em estado de instabilidade, podendo, a qualquer momento, se afastar ou ser atacada pelos predadores invisíveis. O corpo-alma dos mais velhos tem maior estabilidade, porém necessita de um desenvolvimento espiritual intenso, através de rezas diárias, para manter o estágio desejado.

A morte é a perda da palavra; a alma, o princípio vital, que anima e mantém ereto o corpo guarani. Quando acometidos por alguma doença grave, os Guarani consideram que o doente recebeu um nome-alma que não lhe convém, sendo necessária uma nova busca. Pierre Clastres explica:

O xamã parte então em viagem para descobrir o verdadeiro nome. Quando este lhe é comunicado pelos deuses, ele o faz conhecer ao doente e a seus parentes. A cura prova que ele efetivamente descobriu o verdadeiro nome do paciente. Enquanto seu espírito está em busca da alma perdida (indo às vezes muito longe, até o Sol), o xamã dança e canta em volta do paciente. (CLASTRES, P., 2004).

A viagem de descoberta do verdadeiro nome da criança pode não resultar em retorno breve, ou seja, compatível com o tempo estimado para realização do ritual. Na ocasião da nominação da filha do cacique Darci Tupã, em janeiro de 2010, a pajé Dona Lídia, encarregada de realizar a nominação da criança, não recebeu a comunicação dos deuses evocados. Dona Lídia argumentou que “seria preciso muita reza”, conforme suas palavras, para a revelação do nome da criança e que somente no próximo ciclo do ritual faria nova tentativa. O ciclo relaciona-se ao plantio do milho (avaxi), que é semeado na primeira lua minguante de agosto e colhido em janeiro, época dos “tempos novos”, marcada para a realização do batismo das crianças. Em janeiro do ano seguinte, a filha do cacique recebeu sua palavra-alma, adquirindo, desse modo, maior estabilidade para seu corpo-espírito.

No ritual Nimongarai, composto por várias cerimônias, os objetos rituais atingem maior significação no espaço sagrado da Casa de Reza (Opy), adquirindo, em grau mais elevado, o valor de ente, referência a uma dimensão espiritual compartilhada. Em preparação e como agradecimento pela revelação dos nomes-almas, os pais oferecem a Nhanderu na Casa de Reza alguns presentes.

O menino é representado pela oferta de um pequeno pote, feito de taquara, com mel de abelha jataí ou ey jatei e/ou uma pequena flecha ou uy, e/ou um pequeno chocalho ou mbaraka feito com a cabaça ou yh’a kua e sementes de kapi’i’ ou planta chamada rosário. A menina é representada por um takua pu, instrumento musical feito com madeira ou taquara, usado pelas mulheres durante os cantos sagrados, e/ou pelo mbojapé ou pão de milho, feito com sementes de milho, batizadas anteriormente pelo pajé, pão que também pode ser feito de fubá de milho não-guarani. A flecha simboliza a força e a coragem para uma boa caça ou sucesso em tudo o que o Mbya-Guarani faz. O mel é alimento tradicional que acompanha o milho, que fortalece o corpo e acolhe as visitas. O bolo de milho simboliza o alimento que dá força e saúde, e o takua pu significa que a menina sempre estará presente nos rituais da casa de reza (BONAMIGO, 2008).

A água depositada na canaleta do cedro para ser aspergida na cabeça da criança; a fumaça aspirada através do petÿngua, provocando uma névoa exorcizadora das forças negativas; os instrumentos musicais, o canto, a dança, o milho e o mel criam um corpo aureolático vivificador e integrador do sistema de pertença mbyá-guarani.

As diferentes habilidades e capacidades de desempenhar certas tarefas que o corpo assume são um espaço de emergência das diferenças, uma imanência da multiplicidade do Ser. Um modo pelo qual os diferentes tipos de corporalidade experimentam naturalmente o mundo como multiplicidade de afetos e afecções, cujas formas emanam a arte do corpo cerimonial dos Mbo’yty.

Assim como não possuem um nome como se fosse uma “coisa” (CHAMORRO-ARGÜELLO, 1999), os Mbyá também não percebem os objetos distanciados do mundo animado, mas como formas humanizadas e humanizantes. “A humanidade emerge de uma troca de intencionalidade, que se revela ou se cristaliza progressivamente. (...) O pertencer ao gênero humano é elástico em sua extensão e flutuante no tempo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006). “Os objetos apontam necessariamente para um sujeito, são encarnações materiais de uma intencionalidade humana” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).

O devir mbyá-guarani, que vai se amalgamando e se diferindo no tempo, altera marcas, suportes, meios que, por sua vez, geram novas produções e novas subjetividades. Os cestos confeccionados com a fibra de taquara natural, os instrumentos musicais, o milho e os bastões cerimoniais pendurados em um bambu – elementos usados nos rituais– compõem o cenário místico. O canto e a dança dirigidos aos deuses são celebrados, invocando o fortalecimento dos participantes. A fonte de inspiração dos cerimonialistas remete às conquistas sobre o mundo desconhecido, de vizinhos inimigos ou seres naturais e sobrenaturais invasivos e ameaçadores do bem-estar guarani.

Baseado em texto de Maria Cristina Rezende de Campos –

“A arte do corpo mbyá-guarani: processos de negociação, patrimonialização e circulação de memória”

CORPO ÑANDEREKO - O JEITO DE SER GUARANI


A arte do corpo mbyá-guarani se desenvolve no tekoa, lugar onde se pode viver e agir conforme seus próprios costumes, leis, tradição e sabedoria, sendo, pois, necessário compreender sua constituição, organizada simetricamente no plano da relação natureza-cultura, metáfora fundadora da sociedade guarani.

No início dos tempos, Nhanderu Ypy (Pai Primeiro) criou uma mulher Nhandesy Ypy (Mãe Primeira) que gerou dois gêmeos: Kuaray (Sol) e Jasy (Lua). Nesse começo, todos os seres vivos eram humanos, porém num dado momento, de acordo com suas ações, grupos foram (trans)formados em vegetais e animais, surgindo então, outros núcleos familiares. Esses núcleos familiares – humanos, vegetais e animais – convivem no mesmo espaço-tempo – o Ara Ypycircundados pelos Espíritos e Divindades. Esses Espíritos e Divindades vivem no espaço entre os núcleos, energizando essa rede. Como agentes operadores do universo cosmológico guarani, materializados na fumaça aspergida pelo petÿngua – cachimbo guarani –, provocam relações de interação, resultando em diferentes elaborações criativas.

Se os humanos veem-se como humanos e são vistos como não-humanos – como animais ou espíritos – pelos não-humanos, então, “os animais devem necessariamente se ver como humanos. Se todos têm almas, ninguém é idêntico a si. Se tudo pode ser humano, então nada é humano inequivocamente”. Dizer que animais e espíritos são gente é dizer que são pessoas, é atribuir aos não-humanos capacidades de intencionalidade consciente e de agência. Tais capacidades são reificadas na alma ou espírito. “É sujeito quem tem alma e tem alma quem é capaz de um ponto de vista”. O ponto de vista cria o sujeito e será sujeito quem se encontrar ativado ou agenciado pelo ponto de vista – a perspectiva cria o sujeito (Viveiros de Castro, 2002). O perspectivismo, concebido por Viveiros de Castro, é um conceito que qualifica um aspecto muito característico de várias, senão todas, as cosmologias indígenas.

O esquema de origem do povo Guarani corrobora o perspectivismo apontado por Viveiros de Castro. Trata-se da noção de que o mundo é povoado de muitas espécies e seres dotados de consciência e de cultura e de que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais espécies de modo bastante particular: cada uma se vê como humana, vendo todas as demais como animais ou espíritos. Todo ser que ocupa vicariamente o ponto de vista de referência, estando em posição de sujeito, apreende-se sob a espécie de humanidade.

A humanidade é menos o nome de uma substância e muito mais um tipo de relação que todo ente tem consigo mesmo. Significa que toda espécie vê a si mesma como humana. Significa que o que é humano é o "se ver", muito mais do que aquilo que se está vendo. É o pronome reflexivo que define a humanidade. Ao se ver, todo sujeito vê-se como humano. Nesse sentido, a humanidade também é uma relação. Para Viveiros de Castro, sujeitos e coisas não existem por si mesmos, mas sempre a partir da relação em que estão inseridos. A relação vem antes da substância e, portanto, os sujeitos e os objetos são, antes de tudo, efeitos das relações em que estão localizados e assim se definem, redefinem, se produzem e se destroem na medida em que as relações que os constituem mudam.

No entanto, essa é uma tradução apontada por Viveiros de Castro e Bruno Latour. O eixo epistemológico da distinção clássica entre natureza e cultura defendida por Lévi-Strauss, parte da compreensão de que tudo que é universal no homem corresponde à ordem de natureza e se caracteriza pela espontaneidade, enquanto tudo que está sujeito a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos de relatividade e particularidade, portanto recebe as interferências das diferenças conjunturais, étnicas e simbólicas de cada povo, do contexto social e de outros fatores, como o econômico, o político e o ideológico. Lévi-Strauss observou que, para os “selvagens”, a humanidade cessa nas fronteiras dos grupos, ao mostrar que eles faziam as mesmas distinções ao se considerarem como “humanos verdadeiros”. Para o autor, eles distinguiam a natureza da cultura. A universalidade da distinção cultural entre natureza e cultura atestava a universalidade da cultura como natureza do humano.

Para Hélène Clastres, a cultura é a marca do sobrenatural na Terra imperfeita, o signo de uma eleição que separa os homens da animalidade. Os ritos religiosos dos Guarani, a gesta de seus heróis míticos, são governados pela crença de que o homem pode ascender à imortalidade sem passar pela prova da morte, e que depende de cada um a boa escolha de sua vida, o que possibilitará o alcance da Terra Sem Mal.

Serem as testemunhas dos deuses na terra má faz com que os homens existam na ambiguidade. Habitantes da terra imperfeita, eles mesmos são imperfeitos, sujeitos às leis da natureza – nascem, geram, morrem. Por outro lado, separam-se do resto dos seres vivos pela cultura, isto é, pelo reconhecimento de uma força necessária de outro tipo, sobrenatural (CLASTRES, H., 2007).

José Savio Leopoldi, por sua vez, compreende que a fala marca a distinção entre os homens e os animais. A fala é privilégio exclusivo dos humanos. Ainda que possam comunicar-se por outras vias, os animais não falam, ou seja, não usam palavras com acepções específicas, que navegam pelas abstrações e simbolismo inerentes à teia de significados ao que se convencionou chamar cultura. Vale ressaltar, entretanto, que se considerarmos a perspectiva dos índios que concebem humanos e animais como parte de um mesmo universo cultural, onde estabelecem uma relação intrínseca, o som que os animais emitem pode ser compreendido como uma forma de comunicação tão significativa quanto a fala humana.

No mito de origem do povo Guarani, Kuaray (Sol) e seu irmão gêmeo Jasy (Lua) presenciaram, no ventre da mãe (Nhandesy Ypy), sua morte. Ao percorrer as trilhas da floresta à procura do marido (Nhanderu Ypy) que havia deixando sua criação, a Terra, foi comida pelas onças esfomeadas. Seus filhos, depois de crescidos, resolveram vingar a morte da mãe: construíram armadilhas e mataram quase todas as onças, deixando somente uma, que estava prenha, garantindo a continuidade da espécie, e consequentemente, a manutenção do estado de alerta frente os desafios da Terra Com Mal. Kuaray, após inúmeras aventuras vividas sobre a Terra com seu irmão Jasy, decidiu deixá-la para ir ao encontro de seu pai, que vivia em outro espaço cosmológico, o Ara Ypy – o universo, o tempo/espaço guarani. Sua preparação para isso consistiu em jejuar, dançar e rezar até sentir-se suficientemente leve, de modo a poder alcançar este tempo/espaço, caminho aberto por uma sequência de flechas lançadas por Kuaray. O Sol, Kuaray, que vem do leste, orienta a crença guarani, é como uma luz que circula por toda a Terra, iluminando e abrindo o caminho para todos trilhar. Assim, esse mito de origem funda o nhanderekó (jeito de ser guarani): a trilha é repleta de armadilhas, sendo necessário jejuar, dançar e rezar para manter o corpo em estado de alerta, e somente desse modo o corpo estará autorizado a receber a luz que iluminará e abrirá o caminho de encontro ao Pai (Nhanderu), que vive na Terra Sem Mal.

A importância dos mais velhos, para os Guarani, é explícita na refeição matinal: momento de partilha em que o mais velho, após ouvir as histórias dos mais novos, orienta o melhor caminho a seguir, caminho esse que possibilitará a alegria – sair pela mata, visitar um parente em outra aldeia, ir à cidade, procurar outro lugar para morar, entre outros desejos – simbolizando uma ideia de movimento orientado. As andanças guarani, que requerem a orientação dos mais velhos, que, por sua vez, foram orientados por Nhanderu: é preciso estar atento, pois na mata vivem os Espíritos que controlam as espécies de bichos e os elementos da natureza. É também o lugar de possíveis encontros que põem em risco a vida das pessoas.

Um casal de deuses primeiros estabelece com os humanos uma relação afetivamente parental. Corpos e nomes, almas e ações, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo, meio esse cujo fim a mitologia se propõe a contar. Os animais e outros seres do cosmo se encontram na qualidade de sujeito. Todos se assemelham.

Do ponto de vista de sua qualidade de sujeito, de subjetividade, eles são idênticos, sejam animais, plantas ou espíritos, se diferenciam por sua fisicalidade, pelo mundo de relações que lhe oferecem as pesquisas de seus corpos de espécie (Viveiros de Castro, 2006).

Os deuses, mais do que todos, são como os humanos, pessoas corpóreas, vivas e atuantes. Essa similitude, não apenas de aspectos, mas de destinos e relações, sugere aos humanos serem como os deuses, em perfeição interior. É dessa troca contínua de afetos e afecções que emana a arte do corpo nhanderekó experimentada no tekoa e apresentada no museu.


Baseado em texto de Maria Cristina Rezende de Campos –
“A arte do corpo mbyá-guarani: processos de negociação, patrimonialização e circulação de memória”

domingo, 17 de agosto de 2014

OS YÃMIYXOP – ESPÍRITOS SÁBIOS DO POVO MAXAKALI


No primeiro capítulo do livro "Par-delà nature et culture", Philippe Descola faz um pequeno inventário das concepções sobre o que nós Ocidentais designamos pelo termo "Natureza", englobando vários povos do mundo. Seu ponto de partida foi o contexto etnográfico que lhe é mais familiar, os Achuar do Equador, entre os quais não há uma disjunção absoluta entre Natureza e Cultura, uma vez que para este povo: Longe se reduzir a lugares prosaicos provedores de sustento, a floresta e as roças cultivadas constituem os teatros de uma sociabilidade sutil onde, dia após dia, se vai adular [amadouer] seres que somente a diversidade de aparências e a falta de linguagem distinguem verdadeiramente dos humanos (Descola, 2005).

Com base nesse preceito, os Achuar criaram uma forma de relacionamento estável com esses seres, estabelecendo mecanismos de comunicação não verbal com entes cuja interioridade seria supostamente idêntica àquela presente na humanidade, mediante o uso de encantamentos mágicos (anent) e através dos sonhos (Descola, 2005). Longe de se constituir num caso etnográfico isolado, essa concepção encontraria eco em numerosas sociedades autóctones da América do Sul, para as quais "as características atribuídas às entidades que povoam o cosmos depende menos duma definição prévia de sua essência que de posições relativas que elas ocupam umas em relação às outras em função das exigências de seu metabolismo, e, notadamente, de seu regime alimentar. A identidade dos humanos, vivos e mortos, das plantas, dos animais e dos espíritos é inteiramente relacional e, portanto, sujeita a mutações e metamorfoses segundo os pontos de vista adotados" (Descola, 2005).

Essa concepção sobre as cosmologias dos povos autóctones da América do Sul, chamada de animista por Descola a partir do diálogo com a noção de perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro (2002), resultaria em uma inversão formal dos termos presentes na noção ocidental sobre a Natureza e a Cultura. Nesta última haveria uma diversidade subjetiva e/ou cultural entre os seres do mundo, a qual seria repartida sobre um fundo natural comum; já para os povos tributários deste tipo de cosmologia, os atributos comuns aos seres seria uma subjetividade de tipo humano e as disjunções ocorreriam nos atributos naturais das espécies. Tal postulado serviria de base para o estabelecimento de relações entre os humanos e os demais seres que habitam o cosmos, nas quais estes dois tipos de sujeitos não estariam opostos, mas comporiam graus variados de relações sociais similares àquelas vigentes entre os humanos.

Um exemplo disso é a análise de Descola sobre os motivos da não domesticação do pecari pelos povos autóctones da Amazônia. Para este autor, as relações estabelecidas entre os humanos e os não humanos teriam como modelo aquelas vigorantes na humanidade. Sendo assim, embora disponham de todas as técnicas e conhecimentos necessários para domesticar o pecari, essas populações não teriam algo próximo da domesticação - isto é, da instrumentação utilitária de outrem - em seu estoque de relações sociais. Com isso, as modalidades autorizadas de relação estabelecida com esses animais seriam: a caça, baseada no modelo vigente nas interações existentes entre parentes afins e inimigos - isto é, a predação -, e a adoção dos filhotes caçados, cujo parâmetro é fornecido pelas relações existentes entre os parentes consanguíneos (Descola, 2002).

Após inventariar as imagens sobre a "Natureza" de povos situados em outras regiões do planeta (Norte da América, Sibéria, Indonésia, índia, Japão, África, etc.), Descola afirma que as posições assumidas não são tão dessemelhantes às dos Achuar e demais povos autóctones da América, por não apresentarem uma separação absoluta entre Natureza e Cultura concebida pelo naturalismo Ocidental (Descola, 2005). Com isto, tal quadro permitira "a tomada de consciência que a maneira pela qual o Ocidente moderno representa a natureza é a coisa do mundo menos compartilhada [pelos povos do mundo]. Em numerosas regiões do planeta, humanos e não humanos não são concebidos como se desenvolvendo em mundos incomunicáveis e segundo princípios separados; o meio ambiente não é objetivado como uma esfera autônoma; as plantas e os animais, os rios e os rochedos, os meteoros e as estações não existem em um mesmo nicho ontológico, definido pela sua falta [défaut] de humanidade. E isto parece verdadeiro quaisquer que sejam as características ecológicas locais, os regimes políticos e os sistemas econômicos, os recursos acessíveis e as técnicas utilizadas por lhes explorar" (Descola, 2005).

O caso dos MAXAKALI não escapa ao quadro geral esboçado por Descola. Trata-se de um povo engolfado pelas frentes de expansão colonial na segunda metade do século XVIII, início do século XIX. Atualmente eles vivem confinados em uma Terra Indígena e duas Reservas Indígenas, cuja área somada tem somente 6020 hectares, situadas no nordeste do Estado de Minas Gerais, próximo da fronteira com a Bahia. Este povo fala uma língua classificada junto ao tronco linguístico Macro Jê e o termo mais próximo de uma autodenominação é TIKMU'UN, uma espécie de pronome pessoal da primeira pessoa flexionado no plural, utilizado para fazer referência às pessoas que vivem ou estão juntas.

Tal qual a demonstração de Descola sobre a maior parte dos povos do mundo, os Tikmu’un não postulam uma disjunção entre os atributos humanos e aqueles dos demais entes que povoam o mundo. Tal aspecto fica evidente quando se analisa os YÃMIYXOP, termo composto do radical "yãmiy", o qual pode ser traduzido como "espírito" e do sufixo "xop", usado para formar coletivo. Assim, a tradução literal desta expressão é "grupo de espíritos", mas este termo é aplicado: a) na designação dos espíritos dos ancestrais humanos, dos animais e dos vegetais, e mesmo de alguns entes e dispositivos provenientes do mundo colonial, como o avião, helicóptero e a cachaça, entre outros; b) para fazer referência aos conjuntos desses espíritos, pois o pensamento Tikmu’un os reúnem em grupos; c) para mencionar as performances rituais e os cantos associados a estes entes.


Um dos aspectos mais notáveis da cosmologia Tikmu’un é o fato de este povo viver em uma região cujo meio ambiente foi devastado pela ação do colonizador, onde a floresta originária foi posta abaixo ainda no início do século XX, como indica a passagem que Nimuendaju (1982) fez à região em 1938-9. Nas palavras do autor: "Os Machacarí (sic.) consideram como terras desde tempos antigos habitavam na região das cabeceiras do Rio Itanhaém pela margem esquerda, e igualmente a situada em ambas as margens da Água Boa que despeja no Ribeirão do Norte, afluente também do Itanhaém, que corre paralelo ao Umburanas e a oeste dele [...] A terra apesar de ligeiramente acidentada, era ótima para a lavoura. Os Ribeirões Água Boa, Pradinho e Umburanas conduzem excelente água e nunca secam. Hoje, porém, já dois terços desse paraíso dos índios lavradores e caçadores, que estava coberto de mata ininterrupta, estão transformados em vastas pastagens de capim-colônia, na sua maior parte sem uma única rez, pelos intrusos..." (Nimuendaju, 1958).

A despeito deste fato, os Tikmu’un atuais mantém um profundo saber sobre os seres da Mata Atlântica, atualizado nos cantos e ritos realizados por ocasião dos yãmiyxop. Os cantos fazem referências a situações do cotidiano, a hábitos dos seres que povoam o mundo, a mitos que explicam a constituição atual do cosmos, como indicarei mais detalhadamente à frente.

Curiosamente, este complexo sistema de conhecimento havia sido pouco estudado até recentemente. A primeira monografia a esse respeito foi escrita por Harold Popovich (1976), um missionário do Summer Institute of Linguistics (SIL) que dominava a língua Maxakali. Em seu "Maxakali supernaturalism" o autor identifica nos yãmiyxop uma espécie de classificação totêmica das espécies e seres da floresta, sem se aprofundar nas circunstâncias narradas nos yãmiyxop. Em 1992, Myriam Martins Álvares publica sua dissertação de mestrado, na qual ela identifica nos yãmiyxop a existência de um mecanismo estrutural de controle do fluxo destes entes. Segundo esta autora, os Tikmu’un seriam o "povo do canto", dada a importância que esta prática tem para sua existência. Todavia, este trabalho não aprofunda o teor presente nas mensagens dos mesmos, identificando somente como esse circuito de yãmiy formaria a noção de pessoa própria a eles.

Foi somente na década de 2000 que se pôde obter um maior detalhamento dos conteúdos presentes nos yãmiyxop, em especial por conta do projeto coordenado pela professora de musicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Dra. Rosângela Pereira de Tugny. Esta pesquisadora trabalhou na formação de um acervo sobre os cantos sagrados deste povo, transcrevendo-os na língua escrita Maxakali e os vertendo em seguida para o português, mediante a ativa colaboração de professores bilíngues e de especialistas Tikmu’un nos yãmiyxop. Ao longo do processo, os Tikmu’un produziram uma copiosa iconografia a respeito dos seres presentes nos yãmiyxop, retratando entes e situações enunciados nos cantos. Após estes trabalhos uma nova compreensão sobre a cosmologia deste povo emergiu, resultando, até o momento, na produção de duas dissertações de mestrado (Alvarenga, 2007 e Campelo, 2009), além da publicação no ano passado de duas versões bilíngues de dois destes complexos rituais, uma dedicada ao Xunin (espírito do morcego) e outra ao Mõgmõgka (espírito do gavião). Neste texto pretendo discutir como o que chamamos de "Natureza" aparece no que se sabe acerca deste complexo cosmológico, tentando indicar como este sistema se afigura como um modo de recomposição da história colonial a que esse povo está submetido.

Os Tikmu’un reúnem os yãmiyxop em 10 grandes grupos, cada qual formado por uma miríade de seres que narram suas histórias através dos cantos. Os nomes de tais grupos são retirados do ente reputado de ser o mais "forte" de cada uma deles, sendo que seis deles são encabeçados por espíritos animais: Putuxox (espírito do papagaio), Mõgmõka (espírito do gavião), Xunin (espírito do morcego), Ãmãxux (espírito da anta), Tatakox (espírito de uma lagarta que vive na taquara), Po'op (espírito do macaco); os outros quatro são ligados a outros tipos de seres: Koatkuphi (o fio não comestível da mandioca), Yãmiy (espíritos ancestrais humanos masculinos), Yãmiyhex (espíritos ancestrais humanos femininos) e Kõmãyxop (ritual ligado à amizade formal, ou seja, às pessoas que se tratam reciprocamente pelo termo komãy). Há ainda o Hemex (um ser que não possuí corpo animal), que pode ser feito junto ao ciclo ritual de Xunin e Yãmiy, produzindo a vinda yãmiyhex e imhup, quando se pretende "encurtar um ciclo ritualístico" (Pereira de Tugny, 2009).

Os Tikmu’un atribuem uma personalidade específica a cada um dos yãmiyxop, sendo que os grandes grupos mencionados acima são formados por entes específicos e desiguais, a um só tempo. Eles seriam específicos, pois a letra das músicas e a composição destes grupos de cantos seriam invariantes, tendo sido dada de uma só vez para os humanos pelos yãmiyxop no início dos tempos. Para me explicar este aspecto, os Tikmu'un sempre comparam seus cantos com a música comercial de nossa sociedade, a qual muda toda hora, ao passo que os cantos dos yãmiyxop seriam diferentes, pois estes não mudariam nunca.

Mas estes conjuntos de espíritos são desiguais em mais de um aspecto. Primeiro, porque não há obrigatoriedade de haver um mesmo número de entes no interior de cada grupo, existindo, ao contrário, uma variação grande na quantidade e na qualidade de cantos/entes no interior de cada yãmiyxop - uns têm pouco mais de 80 cantos/entes, enquanto outros têm mais de 200. Além disso, cada um desses seres está associado a um aspecto da existência, de modo que a ação dos yãmiyxop ocasiona efeitos distintos e específicos. Assim, há aqueles que são reputados pela bravura e coragem, como Putuxop (papagaio) e Mõgmõgka (gavião), cuja presença é sempre evocada quando da emergência de conflitos com grupos externos ou na confrontação de entes potencialmente hostis, tais como a onça (hãmgãy) e o Inmõxa. Há outros, como Po'op (macaco) que atuam na caça e outros, como Xunin (morcego), cuja presença é bastante requisitada nas práticas terapêuticas. Ademais, para os Tikmu’un, os yãmiyxop são os donatários de todo o conhecimento verdadeiro a respeito das coisas, cujo contato permitiria aos humanos o acesso às benesses decorrentes deste saber. Isto explica o zelo dedicado pelos Tikmu’un à sua relação com os yãmiyxop, pois estar em contato constante com estes seres permitiria acessar as benesses decorrentes de sua ação.

Todo canto está associado a um yãmiyxop particular, cuja letra e entonação vocálica são de domínio público. No entanto, cada canto pertence a uma pessoa específica, que o recebeu de duas maneiras: seja pela herança de um parente mais velho, normalmente um consanguíneo; seja através de uma visita na forma de sonho, no qual o yãmiyxop aparece e ensina a história que ele quer legar aos humanos. Em geral, este tipo de ocorrência só acontece entre os mais velhos e experimentados, os quais dispõem de longo contato com os yãmiyxop. Nestes casos, mostra-se o canto aprendido na kuxex (casa de religião) e depois ele é inserido no yãmiyxop "apropriado", no lugar "certo" da sequência.

Infelizmente, nenhum pesquisador acompanhou um processo como este e não se sabe ao certo quais os critérios e formas de deliberação que atuam no ordenamento dos cantos novos no interior de um yãmiyxop qualquer. Tal descoberta seria importante, por permitir compreender melhor a lógica atuante na classificação dos cantos/entes sagrados no interior de um grupo de yãmiyxop, bem como o princípio que atua na determinação do qual lugar ele ocupa na série de cantos. Há, no entanto, um canto que se sabe ter sido originado de um processo semelhante. Trata-se do canto da capivara (kuxakuk), pertencente ao Xunin:

Capivara
Gilberto [dono do canto]
hai ii iaaa heidia o a
heidia iii dia a
do alto da cachoeira rolando
do alto da cachoeira rolando
ela veio caindo e morreu
ela veio caindo e morreu
vi, tive pena
sentei e chorei
sentei e chorei
hai ii iaaa heidia o a
heidia iii dia a
do alto da cachoeira rolando
do alto da cachoeira rolando
ela veio caindo e morreu
ela veio caindo e morreu
vi, tive pena
sentei e chorei
sente e chorei
heai hoooa
hui huui

Como nos mostra a exegese do canto, ele narra uma cena de caçada, envolvendo os pais de dois Tikmu’un contemporâneos, Guigui e Toninho. Enquanto aqueles homens caçavam, eles teriam encurralado uma capivara no alto de uma cachoeira, localizada nas cercanias da terra indígena demarcada, mas que foi deixada de fora do processo de homologação das terras dos Tikmu’un pelo Estado brasileiro. Ao tentar escapar, a capivara rolou cachoeira abaixo, vindo a morrer. À noite, Xunin teria aparecido em sonho e ensinado o canto acima a um dos caçadores e este o repetiu na casa de religião (kuxex) para os demais homens, que em conjunto consideraram-no um ensinamento sagrado de Xunin, incorporando-o ao seu repertório. Assim, este exemplo é significativo por mostrar como as experiências pessoais são incorporadas no complexo cosmológico dos Tikmu'un.

Ademais, este fato ilustra uma das razões pelas quais os complexos de cantos podem sofrer pequenas alterações entre os grupos locais dos Maxakali. Tal fato se explica pelo teor das relações políticas deste povo, uma vez que não há uma instância transcendental de totalização da experiência, o que abre margem para a emergência deste tipo de variação. Mas há também um aspecto histórico intervindo neste processo, pois os Tikmu’un dizem que seus grupos de cantos são formados pela coalizão das pessoas que se reuniram nesta região na passagem do século XIX para o XX. Cada qual teria contribuído com um trecho dos atuais 10 grupos de cantos existentes e através da troca de músicas eles puderam criar os atuais yãmiyxop. Tal fato atesta que os yãmiyxop estão longe de serem tomados como um dado bruto da realidade, sendo, ao contrário, percebidos como o resultado relativamente contingente da história.

Ademais, este aprendizado de cantos pelo sonho contradiz a idéia mencionada acima de um fechamento absoluto dos grupos de cantos, pois, de fato, alguns dentre eles são mais permeáveis à modificação, como é o caso do Xunin, enquanto outros estariam menos propensos à alteração de sua composição interna, como é o caso do Komãyxop. Talvez essa aparente contradição se resolva com a referência a alguns mitos dos Tikmu'un sobre a origem dos yãmiyxop. Alguns deles, como o de Koatkuphi e Komãyxop, narram que no início dos tempos estes entes eram desconhecidos dos humanos e que após um encontro casual, sempre ocorrido na floresta e marcado por algum acontecimento extraordinário, os yãmiyxop resolvem ir morar na kuxex, aliando-se com os humanos, mediante a união de cada um dos entes com uma pessoa particular, a qual passa ser seu "dono" - isto é, de seu canto. Após algum tempo ocorre alguma quebra de etiqueta, o que faz com que os yãmiyxop se retirem da aldeia, mas mantenham sua união com os homens, voltando temporariamente à kuxex sempre que eles fossem chamados, mediante o respeito à etiqueta que eles exigem. Por conseguinte, creio que a alusão à origem e imutabilidade dos cantos seria antes uma referência a essa necessidade de se respeitar as normas e predicados necessários para normalizar as relações com os yãmiyxop, ao invés de explicar o modo de acesso primeiro aos cantos sagrados.

Acerca do conteúdo das letras das músicas, há um grupo delas compostas de "palavras vazias", isto é, de sons melódicos sem nenhum significado associado. A maioria, todavia, apresenta letras com significação, sendo que boa parte delas consiste na narração por um yãmiyxop de algum acontecimento, ou então na descrição do comportamento de algum dos seres que habitam o mundo (homem incluso). Os temas abordados variam bastante, indo desde os hábitos dos animais que viviam junto aos mõnãyxop (antepassados) na floresta (mimmãtix xexka, isto é, na "mata grande"), até o comportamento de homens e mulheres alcoolizados quando de suas idas às cidades, passando pelas situações excepcionais vividas por heróis culturais.

O narrador pode ser o ente que dá nome ao grupo de cantos, ou os demais yãmiyxop que lhe são associados, segundo a classificação vigente entre os Tikmu’un - por exemplo, os cantos entoados pelos Puxap (Pato) pertencem ao subgrupo do yãmiyxop Putuxop. Há casos em que os cantos são narrados por seres que se metamorfoseiam em outros - por exemplo, quando o Gavião se transforma em Xakuxux (Urubu) no mito de Putuxop, narrando algo de sua perspectiva -, e mesmo cantos nos quais um ser narra os acontecimentos na perspectiva de outro ente, como se vê no canto a seguir:

História do cachorro (Koktix - macaco-prego)
Yê, yê, quati me matou
Quati me matou
Yê, yê, macaco me matou,
Macaco me matou,
Yê, yê , armadilha me matou,
Armadilha me matou,
Yê, yê, cobra me matou,
Cobra me matou,
Yê, yê, e agora estou conversando com Tupã
e agora estou conversando com Tupã
Yê, yê.

O narrador do canto acima é Koktix, o espírito do Macaco-Prego, o qual conta, em primeira pessoa, a história do cachorro. Os primeiros versos descrevem como o cachorro perseguia vários animais que acabaram "virando o jogo" e matando-o. Assim, o cachorro perseguiu primeiro o Quati e depois o Macaco, mas foram estes últimos que o comeram. Em seguida, há menção a outras duas formas de morte: uma por ter caído numa armadilha e outra em decorrência de picada de cobra. Por fim, o cachorro teria ido para o céu, encontrado Tupã e conversado com ele. Segundo Ana Cristina de Alvarenga (2007), este canto apresenta um jogo de perspectivas (o canto é do macaco, mas é narrado em primeira pessoa pelo cachorro e cantado pelos homens) e há um tom jocoso na narrativa, por conta dos acontecimentos que o acompanham no ritual, no qual uma mulher oferece bananas ao macaco, e outra as rouba em seguida, a meio caminho da kuxex. E no prosseguimento: "O macaco cai, depois se levanta e corre atrás da mulher. Ele a pega por trás, num gesto fálico, vai até as outras mulheres, assustando-as, e volta ao kuxex. O clima é de pura diversão, com muitas gargalhadas. No caminho, o macaco passa pelo homem cuja esposa ofereceu as bananas e faz o mesmo gesto fálico." (Alvarenga, 2007).

Embora todos os adultos saibam as letras, vocalizações e ritmos das músicas existentes em todos os grupos de yãmiyxop mencionados acima, o uso dos cantos durante os rituais somente pode ser feito mediante a presença de seu dono. Além disso, há uma ordem específica a ser respeitada nessas ocasiões, de modo que existem alguns homens responsáveis por zelar pelo bom andamento do rito, bem como pela entoação dos cantos na ordem precisa e pela execução correta das performances e danças dos yãmiyxop no pátio dos grupos locais (hãpxeop), quando é o caso. Trata-se, geralmente, de pessoas mais velhas e prestigiosas, conhecidas por serem as responsáveis pela kuxex (casa de religião), a casa que ocupa o ponto focal partir do qual se constroem as demais moradias de um grupo local. A kuxex é inabitada no dia-a-dia, mas serve de morada aos yãmiyxop quando estes acorrem ao mundo dos humanos. Trata-se de um espaço masculino, onde os homens iniciados acorrem para realizar toda a atividade ritual e secreta destinada aos yãmiyxop, estando vedada àqueles não iniciados (geralmente os estrangeiros) e mesmo aos jovens muito pequenos. Ademais, esta casa serve de abrigo para conversas e reuniões informais realizadas pelos homens ao longo do dia, se constituindo num verdadeiro espaço de articulação dos nexos entre os moradores de um grupo local.

A principal atividade realizada na kuxex consiste em entoar os cantos sagrados. Para este fim, os homens "emprestam" suas vozes aos yãmiyxop, sendo inclusive conhecidos como yãmiyxop täg, isto é, como "pais" dos yãmiyxop. Quanto às mulheres, durante a realização dos rituais elas se postam no hãpxeop (pátio) e zelam ao longo dos longos períodos dedicados a realização dos mesmos, preparando a comida que é servida para alimentar os yãmiyxop e acompanhando cantos feitos e as evoluções feitas no pátio, sendo por isso conhecidas como yãmiyxop tug, isto é as mães dos yãmiyxop.

Um ponto digno de nota é a miríade de seres presentes neste sistema de referências. Tais quais os sistemas cosmológicos animistas de Philippe Descola ou o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro, os animais (xoxuk) ocupam um lugar de destaque, sendo que a eles são imputadas uma vida cultural semelhante à humana. Daí que as modalidades de relação instauradas nos yãmiyxop sigam aquelas vigentes entre os humanos.
Ora, como se sabe desde os escritos de Marcel Mauss (1974) e Claude Lévi-Strauss (1976) sobre a reciprocidade, este é um mecanismo central para a instauração da unidade nos povos sem Estado. Lévi-Strauss dirigiu sua atenção às trocas instauradas pelo parentesco, que se baseiam numa regra negativa (o tabu do incesto), para produzir um efeito positivo (as alianças matrimoniais). No entanto, ele mesmo assevera que ela deve englobar três instâncias: os bens, as mensagens e as pessoas (mulheres), como se vê em suas palavras: "Uma sociedade é feita de indivíduos e de grupos que se comunicam entre si. Entretanto, a presença ou a ausência de comunicação não poderia ser definida de maneira absoluta. A comunicação não cessa nas fronteiras da sociedade. Mais que fronteiras rígidas, trata-se de limiares, marcados por um enfraquecimento ou deformação da comunicação, e onde, sem desaparecer, esta passa a um nível mínimo. [...] Em toda sociedade, a comunicação se opera ao menos em três níveis: comunicação de mulheres, comunicação de bens e de serviços, comunicação de mensagens" (Lévi-Strauss, 1985).

Para poupar espaço nesta exposição, não detalharei o sistema de parentesco dos Tikmu'un. Basta resumir aqui que ele instaura uma instância de intercâmbio que impede o fechamento dos grupos entre si, tendo como casamento ideal aquele que envolva primos cruzados. Há, somente, uma polêmica na bibliografia sobre o alcance desta regra, pois segundo Frances Bock Popovich (1980) o casamento preferencial envolveria somente os primos cruzados matrilineares, sem esboçar nenhuma explicação para esta interdição. Já de acordo com Myriam Álvares (1992) haveria uma bilateralidade na escolha, bastando que eles sejam de segundo grau.

Mas o sistema de parentesco não é o único mecanismo de reciprocidade, pois o circuito cerimonial presente nos yãmiyxop seria o único sistema de dons recíprocos que extrapola os limites das relações de parentesco e engolfa o grupo local por inteiro. Os homens reunidos na kuxex entoam os cantos e em contrapartida as mulheres lhes doam alimentos. Via de regra, a doação é feita pela mulher daquele que é o dono do canto, no caso de um homem, instaurando um mecanismo de dom e contra-dom entre mensagens e bens. Há casos, em que a reciprocidade é mais explicita, pois nestes casos as mulheres entregam os alimentos na kuxex pedindo que um canto/vocalização seja entoado/a em seguida. Ora, tal forma de reciprocidade vigora em especial entre os parentes afins e os não-parentes, mas dada a forma da economia atual dos Tikmu'un, não há nenhuma instância que arregimente grupos mais extensos de pessoas, algo reservado somente aos yãmiyxop. Como estes complexos rituais foram formados pela troca de trechos cantos entre as famílias formadoras dos Tikmu’un atuais, nenhuma parentela possui os cantos necessários para se realizar um yãmiyxop isoladamente e a própria reprodução deste complexo cosmológico somente é possível mediante a manutenção da aliança entre os moradores de um grupo local. Assim, é necessário manter a concórdia entre as pessoas particulares para que haja o ritual e o socius Tikmu’un transcenda os limites das relações de parentesco.

Na construção da reciprocidade nos yãmiyxop, há um cuidado especial em atribuir uma equivalência nos dons de acordo com as preferências atribuídas a cada espírito. Assim, há determinados espíritos, como o Xunin e o Koktix, reputados por gostarem de bananas e são elas que lhes são dirigidas. Tal conhecimento do gosto dos yãmiyxop se baseia num extenso saber zoológico e botânico e na atribuição de relações similares às humanas na forma de interação destes seres entre si - daí que a reciprocidade possa instaurar uma relação positiva dos humanos para com estes entes, tal como ocorre nos humanos.

No entanto, embora os animais (xokxop) constituam a maior parcela dos seres presentes nestas interações, as narrativas presentes nos yãmiyxop também retratam intercâmbios com entes ligados à situação colonial. Segundo o texto do "Handbook of South American Indians", de autoria de Alfred Métraux e Curt Nimuendajú (1946), a única referência histórica do uso de substância psicoativa por parte deste povo se dá com okutekut, uma lagarta que vive na taquara. No entanto, há vários cantos dos yãmiyxop nos quais se relata o uso da cachaça, uma bebida psicotrópica proveniente do mundo colonial, como se vê no canto abaixo:

Cachaça brava
Antônio José [dono do canto]
ia aaaaa i ii
ia aaaaa i ii
aaa i a iia
ruim vocês
dando cachaça brava
yãmiy virando morto
aaa ii a AA
ruim vocês
dando cachaça brava
yãmiy virando morto
aaa ii a AA
virando morto
aaa ii a AA
virando morto
aai dia abiai
aai dia abiai
diac aabiaí aidiac aaia ô ôôô

A exegese do canto explica que o yãmiyxop narrador deste episódio é Hemex, mas quem atua é Xunin, mostrando mais uma vez um jogo de modificação de perspectivas semelhante ao mencionado acima por ocasião do canto de Koktix. Xunin teria visto dois homens brancos conversando, tendo ganhado cachaça de um deles e indo repousar em seguida. Embora possamos considerar que há uma apreciação negativa do ato de se utilizar da cachaça ("ruim vocês/dando cachaça brava"), isso não impede a experimentação da situação. Além disso, em outras passagens os Tikmu’un fazem várias menções críticas à forma de vida dos agentes coloniais e talvez seja essa a fonte da desaprovação presente neste canto. Mas, repito: nenhuma dessas circunstâncias negativas impede o uso das bebidas alcoólicas por parte de Xunin e que, por conseguinte, que haja uma interiorização deste tipo de experiência por parte da cultura deste povo.

Isso se torna ainda mais evidente quando se considera que a principal queixa dos agentes coloniais com relação aos Tikmu’un é o consumo de bebidas alcoólicas. Pode-se mesmo dizer que este é apresentado como o "problema Maxakali" por excelência. Toda ida à cidade é ocasião para que os membros deste povo busquem essa substância, cuja comercialização é vedada aos indígenas desde o ano de 1976. Nem é preciso mencionar que esta proibição levou à implantação de um comércio clandestino de bebidas, com preços majorados, ao invés de interromper sua utilização. Embora parte da bibliografia consagrada aos Tikmu'un desenvolva a idéia de que este povo somente conseguiria "pilhar" os elementos provenientes do mundo do colonizador (Álvares, 1992; Vieira, 2006), creio que estes indícios mostram a possibilidade de haver um relacionamento do mesmo tipo que o vigente com os demais seres.

Na verdade, penso que a questão do dia para os Tikmu’un seja desenvolver formas de interação mais adequadas ao universo vigente a partir da submissão ao colonizador. E nesse processo, as lições presentes no universo relacional dos yãmiyxop orientam a construção desta forma relacional. Sendo assim, o modo pelo qual se dá a apropriação dos bens do colonizador indica este esforço de construir uma forma de reciprocidade para com ele. O problema aqui é o não-reconhecimento deste mecanismo por parte do outro termo envolvido, pois no tocante aos animais, à flora, e mesmo para com os demais povos autóctones com os quais os Tikmu’un interagiam antes da submissão colonial, esta forma comunicacional era eficaz, produzindo uma instância de reconhecimento mútuo capaz de implementar as formas relacionais vigentes àquela altura. Como indicado acima, os seres da Mata Atlântica eram tomados como sujeitos equiparáveis aos humanos e não opunham resistência para que este sistema funcionasse na interação mantida para com eles.

Já o caso do colonizador é diferente e a única instância em que há um mínimo reconhecimento parcial deste sistema é no tocante às trocas comerciais. Não espanta que seja justamente nestes momentos em que o consumo exacerbado de bebidas alcoólicas ocorra, pois este é um meio, ainda que inconsciente, dos Tikmu'un protestarem contra a falta de reciprocidade e de comunicação vigente no relacionamento contra a grande alteridade com a qual se deparam no presente. Vale notar que são ocasiões nas quais os membros deste povo perdem a compostura, brigando entre si e dando verdadeiros espetáculos nas praças das pequenas cidades que circundam a terra indígena Maxakali. Não admira que este seja o problema indígena por excelência por parte dos agentes coloniais. Todavia, estes últimos não reconhecem o apelo feito pelos Tikmu'un de sair deste curto-circuito comunicacional e preferem projetar nos membros deste povo a pecha de "índios beberrões", ao invés de entender qual processo está se delineando diante de seus olhos.

Enfim, toda essa reflexão mostra como o conceito de "Natureza" é inadequado para se pensar o universo relacional instaurado pelos yãmiyxop entre os Tikmu'un. Como indiquei acima, não há uma distinção a priori entre os seres que habitam os cosmos, de modo que aos animais e vegetais é imputada uma interioridade idêntica aos humanos. Com isso, um jogo relacional inspirado nas relações sociais recíprocas serve de modelo para as interações mantidas para com estes entes. Mostra também como este mesmo modelo relacional serve de parâmetro para as relações para com o colonizador e seus bens, simbólicos ou não. Com isso, quis mostrar que é possível fazer uma abordagem mais histórica das cosmologias ameríndias, me afastando um pouco do modelo instaurado pela noção de perspectivismo ameríndio, através da qual se tem efetuado as análises sobre a cosmologia deste povo. A grande dificuldade das análises inspiradas neste modelo tem sido lidar com os acontecimentos decorrentes da submissão ao colonialismo luso-brasileiro.

Tentei mostrar como são as relações entretidas no dia a dia que presidem a construção do imaginário social, aproximando-me da posição mantida por Maurice Godelier (1981, 1984, 2001). Segundo este autor, são as relações mantidas pelo homem no processo de transformação da natureza que criam a história. E suas palavras: “no coração das relações materiais do homem com a natureza, aparece uma parte ideal onde se exercem e se juntam três funções do pensamento: representar, organizar e legitimar as relações dos homens entre si e com a natureza” (Godelier, 1984)

No caso dos Tikmu’un esse processo criou um mecanismo relacional que permitiu a reprodução deste grupo desde tempos imemoriais. Um mecanismo que foi abruptamente convulsionado pela situação colonial. No entanto, foi a partir dele que se erigiu um meio para reassentar o socius Tikmu’un sob novas bases. Agora, não mais atuando prioritariamente na interação junto àquilo que chamamos natureza, mas diante das condições de vida colonial. Nesta situação, o imaginário social deste povo começa a produzir um conjunto de representações acerca das interações que eles entretêm no cotidiano, acomodando-se no sistema cosmológico criado para lidar com os seres da mata Atlântica. Do ponto de vista econômico essa solução não tem sido a mais bem sucedida, pois ao longo do século XX diversas tentativas de recriar uma economia Tikmu'un autônoma falharam, por tentarem modificar a base material deste povo sem levar em conta o sistema de referências que guia as interações cotidianas. Todavia, tal prática tem mostrando como: “Há sempre no exercício do pensamento qualquer coisa que transborda o momento histórico e as condições materiais e sociais deste exercício, qualquer coisa que reenvia a uma outra realidade a uma outra história que a do homem, qualquer coisa que reenvia à história da natureza, anterior, exterior, mas ao mesmo tempo interior àquela do homem, pois ela o dotou de um organismo material (o corpo) e de um órgão (o cérebro) que lhe permitem de pensar” (Godelier, 1984).

Godelier escreveu estas palavras visando explicar os motivos do desenvolvimento de outras formas de vida social ao longo do devir histórico humano. Segundo ele, não estaríamos presos à mera reprodução da vida material tal qual a recebemos de nossos antepassados, podendo inserir uma dimensão ideal nas relações materiais, de modo da alterar as formas vigentes de relações sociais. De minha parte, quis mostrar como essas idéias se aplicam a algo diferente: a reestruturação das condições de existência com base num modelo ideal de vida baseado numa relação material que não pode mais existir, dadas as condições ambientais e sociais presentes. Com isso, a parte ideal do real desempenha ainda hoje um papel destacado na reprodução da vida social. Ao menos creio que é assim que se passa com os Tikmu’un e seus yãmiyxop.

Texto de Rodrigo Barbosa Ribeiro
Xupapoynãg - Espírito da Lontra

Xupapoynãg - Espírito da Lontra

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A OUTRA FACE DE JOSÉ DE ANCHIETA...

Como acontece com a grande maioria dos países, na contemporaneidade, o Brasil é um país construído a partir de processos de hibridismos culturais: o português, o banto, o suruí, o tembé, o japonês, o italiano, o alemão, o ribeirinho, o caboclo, o caiçara... Lamentavelmente e “naturalmente”, a história, desde 1500, é contada apenas pelo foco narrativo de quem estava no poder. Do início da colonização européia até os nossos dias, a história viveu e vive sob a ditadura do olhar do colonizador e da palavra escrita ocidental, européia, branca.

Não é possível pensar, no entanto, que existiu um único sujeito particular que planejou o sistema colonial. Nem mesmo uma única instituição ocidental pode ser responsabilizada individualmente. O colonialismo europeu, tanto na América como em outras partes do mundo, se impôs a partir de uma multiplicidade de interesses. Os Estados europeus, com seus exércitos e seus anseios de se tornarem impérios, as grandes empresas que começavam a surgir e desejavam abrir novas frentes de exploração econômica e a Igreja Católica com o objetivo de aumentar o rebanho de Deus são alguns dos mais visíveis fatores que impulsionaram as práticas coloniais. E cada uma destas instituições, com suas práticas sociais, foi fundamental para que a ordem discursiva da colonização européia se estabelecesse na América.

A participação da Igreja Católica foi efetiva no processo de colonização da América. Em muitos momentos, inclusive, foi decisiva sua atuação entre as sociedades indígenas. Não por acaso, a primeira atitude dos comandantes, quando tomavam posse das novas terras, era mandar rezar a “primeira missa”. São fartas as narrativas sobre estas primeiras missas e há muitos quadros pintados sobre elas. Estas referências são frequentemente citadas nos livros de história como o marco inicial da colonização.

Várias ordens religiosas intermediaram a relação das sociedades indígenas com o Estado, a princípio o português e depois o brasileiro. A maneira como os religiosos se comportaram ao logo destes séculos é bastante variável. Se por um lado houve e há religiosos comprometidos com a causa indígena, por outro, a ação da grande maioria foi e é no sentido de alterar as tradições indígenas e estabelecer uma nova ordem discursiva, onde não há espaço para os rituais religiosos indígenas e a atuação dos pajés continua sendo intensamente coibida.

Ainda que na prática a Igreja Católica tenha em muitos momentos da história colonial se afastado dos ideais de justiça social, o cristianismo sempre colocou em circulação discursos relacionados à humildade, à igualdade entre os homens. A forma violenta como o sistema colonial se impunha era, por isso, contraditória em relação a estes ideais. A ação da Igreja no processo de colonização não se justificava apenas pela conquista de novas terras, como acontecia em relação aos Estados europeus.

No século XVI, os genocídios praticados pelos espanhóis, na América, começaram a ser denunciados na Europa por alguns religiosos que cumpriam o papel de defensores da justiça social cristã, como foi o caso do incansável Frei Bartolomeu de Las Casas. Tanto os reis de Castela, quanto o Papa foram obrigados a se pronunciar sobre a questão. Mas, a própria Igreja se incumbiu de encontrar justificativas para as chacinas promovidas pela violência da colonização. Profanos, infiéis, idólatras, ateus. Quem não se convertesse merecia o peso da mão do colonizador. Eduardo Galeano explica (1983: 25):

Entretanto, alguns teólogos protestaram e a escravização dos índios foi formalmente proibida ao nascer do século XVI. Na realidade, não foi proibida, mas abençoada: antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os índios, sem intérprete, mas diante de um escrivão público, um extenso e retórico ‘Requerimiento’ que os exortava a se converterem à fé católica: “Se não o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneiras que puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos vendereis, e disporei de vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder...”

Este Requerimiento, um texto escrito, lido em uma língua desconhecida para os índios, efetivava o poder da palavra, pois ainda que não conhecessem a língua, o que acontecia depois era bastante evidente. Podemos interpretar este documento como uma metáfora da colonização, que era escrita, cristã e justificavelmente violenta. A Igreja se valeu deste dispositivo para justificar seu apoio à violência colonial. Afinal, que direitos poderiam ter pessoas que não aceitavam Deus e se negavam a obedecer ao mando real?

Em relação à escravidão dos índios, a Igreja também precisava de justificativas. Os religiosos se valeram das determinações papais que haviam resolvido a questão da igualdade social em relação às sociedades africanas, estas determinações estabeleciam que o “negro” não era considerado gente para a Igreja Católica. Diante das incertezas sobre as populações da América, para aprovar as atitudes colonizadoras, os religiosos se valeram deste artifício e passaram a chamar os índios de negro. Então, é comum encontrar em textos jesuíticos do século XVI a palavra “negra” sendo usada para se referir aos índios. As pessoas que formavam as sociedades africanas eram consideradas animais e os jesuítas colocavam os índios nesta mesma categoria. No fragmento a seguir do “Diálogo da Conversão do Gentio”, a palavra “negro” se refere a “índio” e aparece também a relação com os animais:

Não há homem que em toda esta terra, que conheça estes, que diga outra cousa. Eu tive hum negro, que criei de pequeno. Cuidei que hera boom chrsitão e fugiu-me pera os seus: pois quando aquele não foi boom, não sei o que seja. Não hé este que sôo me faz descomfiar destes serem capa do bautismo, porque não fui eu sôo o que criei este corvo; nem sei se hé bem chamar-lhe corvo, pois vemos que os corvos tomados no ninho secrião se amasão ensinão e estes mais esquecidos da criação que os brutos animais e mais igratos que os filhos das biboras que comem suas mãis, nenhum respecto tem ao amor e criação que se faz neles. (NÓBREGA: 2006, 6-7)

No início do século XVI, alguns discursos bastante estabilizados entre nós ainda se encontravam instáveis. O significado de palavras como negro, escravo, índio, liberto, forro ainda não tinham seus sentidos definidos. Para justificar muitas de suas atitudes, sem nenhum pudor, a Igreja, para fugir da condição de anti-cristão, chamou os índios de negros.

A Igreja tinha por princípio catequizar as almas dos gentios e pelo menos simbolicamente, este processo não poderia ser violento, a menos que muito bem justificado. O ethos discursivo do religioso está relacionado à bondade, à humildade, diferente do que acontecia em relação aos navegadores, aos soldados, aos governadores, cuja imagem associada à violência figurava como uma característica bastante positiva, já que era necessário aterrorizar os índios para que eles não oferecessem resistência.

O ethos implica, com efeito, uma disciplina do corpo apreendido por intermédio de um comportamento global. O caráter e a corporeidade do fiador provêm de um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, sobre as quais se apóia a enunciação que, por sua vez, pode confirmá-las ou modificá-las. Esses estereótipos culturais circulam nos domínios mais diversos: literatura, foto, cinema, publicidade etc. (MAINGUENEAU: 2000,99)

O colonizador e o religioso chegaram juntos, fazem parte do mesmo processo. É até bem coerente afirmar que os religiosos também eram colonizadores. Mas aos olhos das sociedades indígenas, havia uma grande diferença entre os padres e os militares e colonos. O olhar dos índios foi o fiador destes ethos discursivos construídos pelo Ocidente. Eles não recebiam da mesma forma militares agressivos, usando uniformes, com botas imponentes, armados, montados em cavalos, da mesma forma que recebiam aqueles homens de aparência angelical, de fala macia, usando sandália, com olhar de acolhimento.

O corpo dos jesuítas tinha uma atitude diferente. Eles demonstravam interesse pelas línguas e pelas culturas nativas. Chegaram à América trazendo a música erudita, significativo elemento de atração para índios, cujo cotidiano era embalado pela música e pela dança. Não, à toa, estes religiosos conseguiram entrar no universo indígena sem muitas dificuldades a princípio. Eles promoveram diferentes gestos de interpretação no olhar nativo, por isso não podiam ser percebidos da mesma forma que os outros colonizadores.

O início da colonização não foi tarefa simples para portugueses e espanhóis. Era necessário encontrar formas de se relacionar com as sociedades indígenas, sem que necessariamente tivessem que exterminar todos os índios. Eles precisavam de mão-de-obra na América e viver em estado de guerra encarecia a colonização e diminuía os lucros. Para efetivar este projeto colonizador, teve papel fundamental uma nova ordem religiosa, fundada em 1534, por Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus. Esta nova congregação católica tinha um objetivo claro: instituir a fé cristã como uma ordem discursiva, submetendo as sociedades colonizadas à religião católica e aos reis europeus através da ação missionária voltada para educação. Não por acaso esta congregação foi tão fortemente apoiada pela Corte portuguesa e encontrou nas escolas fundadas em Portugal seu principal centro irradiador de novos jesuítas.

Quando os jesuítas chegaram ao Brasil, eles se valeram de uma tecnologia discursiva sofisticada de impor a sujeição aos povos colonizados. A Igreja Católica já havia protagonizado em outras colônias espanholas e portuguesas a ação da catequese, que necessariamente passava pela disciplinarização do corpo. Isso incluía agregar os índios em missões, onde eles passavam a levar uma vida sedentária, sob o controle da Igreja, ficando assim dependentes dos favorecimentos dos religiosos. Nestas missões, a Igreja impunha novas regras de condutas que incluíam a monogamia, o hábito de freqüentar escolas e a introdução de um novo cardápio alimentar. No trecho seguinte, em uma carta enviada à Companhia de Jesus, Nóbrega deixa bem claro os objetivos destes religiosos em relação aos índios:

A lei, que lhes hão-de-dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do Governador, fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se, pois tem muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos, fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes padres da Companhia para os doutrinarem. (SERAFIM LEITE: 1954, p. 153)

Em relação à interferência na vida religiosa, uma das estratégias mais eficientes consistia em ridicularizar os princípios religiosos tradicionais, condenar a ação dos pajés e estabelecer a confissão como condição para a convivência com os religiosos.

Para colocar em prática seus objetivos, os jesuítas se dedicaram a uma pesquisa minuciosa entre os índios Tupinambá. Procuraram conhecer sua língua, sua organização social e religiosa para poder agir com mais propriedade entre eles. Eles fundaram as primeiras escolas, escreveram as primeiras gramáticas e os primeiros dicionários das línguas indígenas.

Esta nova ordem discursiva, que começou a ser instituída pelos jesuítas, ainda hoje continua se estabelecendo nas fronteiras da Amazônia com outras organizações religiosas. É uma recorrência que a partir do encontro com as igrejas os índios passem a depender de muitos favorecimentos dos religiosos, quer seja da busca de proteção para as invasões inimigas, para a obtenção de alimentos, para conseguir assistência médica, em função de não dominarem as doenças trazidas pelos não-índios, para receber como presentes os artefatos culturais que passavam a fazer parte do cotidiano ou mesmo porque a doutrina cristã, de alguma forma, encontra e encontrava espaço de diálogo com o self religioso de algumas sociedades indígenas.

Na primeira metade do século XVI, a colonização portuguesa enfrentou muitas dificuldades para ocupar o território brasileiro e “civilizar” seus moradores nativos. Ecoava também na América a guerra religiosa promovida pela Reforma Protestante e pela Contra-Reforma da Igreja Católica. A ameaça dos calvinistas franceses, perseguidos pela Contra-Reforma era constante, eles mantinham relações amistosas com os índios e pretendiam fundar no Brasil um país em que pudessem ter liberdade de religião. Foi somente em 1532 com a chegada de Martim Afonso de Souza que começou efetivamente a colonização do Brasil. Mas as primeiras iniciativas da Corte Portuguesa não resultaram na ocupação efetiva de um território tão extenso. A presença da Igreja Católica no Brasil representava uma estratégia dos europeus para transitar entre as sociedades indígenas sem guerras, mas também traduzia a preocupação do Vaticano em relação aos franceses no litoral brasileiro.

Os jesuítas José de Anchieta, Antônio Nóbrega e Antônio Vieira, filhos da Contra-Reforma, são alguns dos maiores expoentes da igreja católica no Brasil. Estes religiosos foram considerados protetores dos índios e a própria Igreja se incumbiu de divulgar este ethos pelo mundo inteiro. Os três ainda hoje são respeitados por sua produção literária, além de religiosos eram muito cultos, chegavam a ser eruditos. Mas estes três jesuítas foram decisivos no processo de reconhecimento e apagamento da história dos índios. Eles não são lembrados porque tenham dado voz a uma memória indígena. Não, eles se destacaram pela catequese.

A produção literária destes jesuítas interferiu bastante na imagem que a sociedade brasileira, de forma geral, tem dos índios. A própria imagem deles se confunde com suas atuações entre os índios. Anchieta foi indicado para canonização em função do trabalho que realizou entre os Tupiniquim e Tupinambá. Também a ele se deve o primeiro estudo sistematizado e escrito de uma língua indígena no Brasil – “A Arte (gramática) da Língua mais usada na costa do Brasil”. O trabalho lingüístico realizado pelo jesuíta no Brasil teve como principal metodologia conhecer o léxico e os aspectos estruturais da língua falada pelos Tupinambá, para poder efetivar um trabalho de catequização entre eles.

Muito antes de Malinowski ou das modernas correntes teóricas dos estudos da linguagem, era bem claro que estar entre os índios e conhecer e manipular sua língua representava as condições essenciais à sua empreitada. Anchieta, além de ser um linguista primoroso, também se tornou um profundo conhecedor da cultura Tupinambá. Preocupou-se, precipuamente, em compreender as estruturas do pensamento religioso.

A gramática do enunciado jesuítico implica, portanto, mapear o tupi e capturá-lo com classes e categorias gramaticais do latim, do português e do espanhol. Ao inseminar na língua tupi a presença de uma alma católica proporcionada pela semântica substancialista de uma memória de culpa, a gramática também produz seu análogo sensível, o corpo dócil, ordenado em práticas prescritivas que o integram juridicamente como inferioridade natural. Lição da Política aristotélica: é próprio do inferior subordinar-se naturalmente ao superior. (HANSEN: 2005, p. 38).

A produção literária de Anchieta é bastante vasta e compreende poemas em latim, poemas em Tupi antigo, peças de teatro, uma série de cartas enviadas à Companhia de Jesus, entre outros. Aqui, vou tratar especificamente de um de seus poemas, “Dos Feitos de Mem de Sá”. Nele ficam bem evidentes as características do índio ideal aos olhos de Anchieta. O índio que ele se empenhou em inventar em sua literatura.

Com seus mais de três mil versos, este poema foi publicado pela primeira vez em 1563 para homenagear a vitória dos portugueses sobre a rebelião indígena que ficou conhecida como Confederação dos Tamoios.

Em “Dos Feitos de Mem de Sá”, José de Anchieta, além de revelar o que pensava sobre os índios que resistiam à colonização, ovaciona as ações do governador Mem de Sá. Ele constrói dois ethos discursivos bem distintos, do governado como um grande herói e o dos Tupinambá como selvagens, animais e ferozes. O tom áspero do poema traduz a tensão que jesuítas, portugueses e Tupinambá viveram durante a Confederação dos Tamoios. Neste texto, Anchieta evidencia o que significava levar a conversão aos infiéis.

Ethos não diz respeito apenas, como na retórica antiga, à eloqüência judiciária ou aos enunciados orais: é válido para qualquer discurso, mesmo para o escrito. Com efeito, o texto escrito possui, mesmo quando o denega, um tom que dá autoridade ao que é dito. Esse tom permite ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador (e não, evidentemente, do corpo do autor efetivo). A leitura faz, então, emergir uma instância subjetiva que desempenha o papel de fiador do que é dito. (MAINGUENEAU: 2000,98)

O fiador deste poema não eram os índios. O público a quem Anchieta queria atingir eram os portugueses, os europeus colonizadores. Dentre as principais condições de produção deste poema é importante assinalar que originalmente foi manuscrito em latim e tinha como objetivo a circulação imediata entre os portugueses que viviam no Brasil e na metrópole. O próprio Anchieta fez uma cópia do poema e entregou ao governador geral Mem de Sá.

Segundo alguns críticos literários, este seria o primeiro poema épico feito no Brasil. Sua estrutura segue o modelo clássico épico: há um herói, a forte presença da mitologia cristã e acontecimentos fantásticos a partir de fatos reais.

Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasil
te contemplou! quanto bem trarás a seus povos
abandonados! com que terror fugirá a teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínas
lançou nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!
(ANCHIETA, 1958:12 )

Escrever, em latim, com a estrutura épica, já localiza algumas características da formação do jesuíta. Ninguém duvida de suas qualidades como linguista e como literato. Há uma farta literatura especializada que trata destes aspectos da obra de Anchieta. Mas aqui, interessa a posição discursiva do jesuíta. A narrativa épica de Anchieta, herdeira de Homero, foi escrita antes que Camões compusesse “Os Lusíadas”. Seu herói é mais parecido com Ulisses, o conquistador do que com Vasco da Gama, o navegador.

Todo o argumento se define a partir da oposição entre os entre os “heróis” e a “turba horrenda”. Anchieta constrói um discurso tão depreciativo em relação aos índios, que parece plenamente justificável o massacre promovido por Mem de Sá.

Anchieta era, de fato, um religioso da Contra-Reforma e esta condição aparece logo na “Epístola Dedicatória”. Fica bem clara a posição do jesuíta no poema. Ele faz uma crítica severa aos franceses:

15 Vês como de nada valeu a esses ninhos altivos de pedra
toda a estratégia das posições achadas. Inexpugnáveis embora à força humana as ameias erguidas pelo hábil francês no cimo dessa penha
(ANCHIETA, 1958: 47)
Bem diferente do discurso estabilizado sobre a resistência indígena, que fala em índios pacíficos, que não resistiam, a história dos Tupinambá, já no primeiro momento da colonização, mostra que eles não aceitaram pacificamente a dominação, tampouco nutriram profunda admiração pela cultura ocidental, como afirmam muitos autores. Estes índios eram corajosos guerreiros, que apoiados pelos franceses, promoveram, liderados por Ambirê e Guaixará, no litoral dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre 1554 e 1567, a Confederação dos Tamoios e levaram a guerra contra os portugueses às últimas consequências. As batalhas entre portugueses e os Tupinambá servem de inspiração para a construção do poema.

Os Tupinambá tinham consciência clara do que estavam em jogo durante as batalhas da Confederação dos Tamoios. Eles sabiam que sua liberdade e a hegemonia sobre os territórios dominados. Eles lutaram para não se submeter, mas Anchieta condena esta luta.

Vês como gentes cruéis em hordas imensas preparam aos cristãos batalhas ferozes. De morte humilhante
245 ameaçam agora a cabeça dos pobres colonos quais tigre cruéis em redor da preia lanhada sorvendo com fauces sedentas o sangue inocente.
(ANCHIETA, 1958: 61)

Os Tupinambá queriam vingar seus guerreiros mortos pelo exército português e compreendiam o risco da presença dos portugueses no Brasil. A respeito do estado de ânimo dos Tupinambá, esclarece Florestan Fernandes (1963: 29):

[a] guerra contra os portugueses assumiu formas violentas, congregando todos os grupos tribais da região. O auxílio direto dos franceses e suas promessas formais de colaboração permanente tornaram-se também um incitamento muito significativo. O objetivo da guerra, do ponto de vista tribal, consistia na expulsão ou extermínio dos portugueses.

Quando se iniciou a guerra, os Tupinambá ameaçaram dominar os portugueses, que passaram a recuar estrategicamente. Foi a intermediação de Nóbrega e Anchieta, que ficaram meses como reféns entre eles, que permitiu aos jesuítas conhecer as estratégias de guerra dos Tupinambá. Com estas informações, ficou mais fácil ao exército português, comandado por Mem de Sá, aniquilar a resistência indígena.

No trecho seguinte, há uma inversão da história do que aconteceu na América entre os índios e os europeus. Os índios são apresentados como vilões. Parece que eles invadiram o Brasil e entrincheiraram a cultura cristã:

825 Essa raça selvagem, sem a menor lei, perpetrava
crimes horrendos contra os mandados divinos,
proferindo impunemente ameaças contínuas e altivos
discurso. Então, com arrogância o índio sanhudo
olhava para os cristãos e estes entrincheirados,
830 detrás de seus muros tremiam de pavor vergonhoso:
como quando lobos vorazes, que a fome impiedosa
açula e avassala, rangendo os dentes, cobiçam
à ronda do aprisco, espotejar os tenros cordeiros
e extinguir a sede ardente no sangue que sugam;
(ANCHIETA, 1958:83)

No trecho seguinte, o índio é identificado com os animais irracionais:

(..) Podem os tigres viver sem a preia
e os leões ferozes deixar de espedaçar os novilhos
e os lobos perdoar as mansas ovelhas? Antes deixará a baleia
de encher de peixes o bojo no vasto oceano
956 antes deixará o gavião, em vôo audacioso librado no espaço,
de raptar tímidas aves, e a águia real de garras aduncas
de levantar as alturas em revoada a lebre cativa;
do que deixarem os brasis de devorar carnes humanas.
(ANCHIETA, 1958: 89)

No fragmento a seguir, do Livro II do poema, a forma como Anchieta se utiliza dos verbos atua no apagamento da história dos índios e constrói uma “verdade absoluta”, bem própria da história construída pela Companhia de Jesus:

Assim se expulsou a paixão de comer carne humana,
a sede de sangue abandonou as fauces sedentas;
e a raiz primeira e causa de todos os males,
a obsessão de matar inimigos e tomar-lhes os nomes,
1100 para glória e triunfo do vencedor, foi desterrada.
Aprendem agora a ser mansos e da mancha do crime
afastam as mãos os que há pouco no sangue inimigo
tripudiavam, esmagando nos dentes membros humanos.
Há pouco a febre do impuro lhes devora as entranhas:
1105 imersos no lodaçal, aí rebolavam o fétido corpo,
preso à torpeza de muitas, à maneira dos porcos.
Agora escolhem uma, companheira fiel e eterna,
vinculada pelo laço do matrimônio sagrado
que lhe guarda sem mancha o pudor prometido.
 (ANCHIETA, 1958: 95)

Em sua sintaxe discursiva, Anchieta usa verbos no passado, que mostram como era a vida dos índios e verbos no presente, que retratam a nova realidade estabelecida depois que Mem de Sá venceu os Tupinambá. Esta escolha dos tempos estabelece uma nova discursividade. O jesuíta usa o presente omnitemporal ou gnômico. Para Fiorin (2001:150-151) isto acontece:

quando o momento de referência é ilimitado e, portanto, também é o momento do acontecimento. É o presente utilizado para enunciar verdades eternas ou que se pretendem como tais. Por isso é a forma verbal mais usada pela ciência, pela religião, pela sabedoria popular (máximas e provérbios)

“Eles eram”, depois de Mem de Sá, “eles são”: o trabalho de transformação está concluído. Nesta construção, não há escape para a nova ordem cristã estabelecida: “Assim se expulsou a paixão de comer carne humana”, acabou a antropofagia e a monogamia se estabeleceu como regra de conduta “Agora escolhem uma companheira fiel e eterna”.

O funcionamento discursivo do início da colonização, agenciado pela igreja, reprodutor do modelo das Cruzadas religiosas da Idade Média, em vários momentos da História, construiu duas categorias de ethos: o santo, que não pega em armas e aparece como uma figura cândida, (daí a imagem estabilizada que temos de Anchieta) e o herói, o líder militar, forte, quase imbatível, representado por Mem de Sá. No poema também se observa o ethos do índio ideal para Anchieta, aquele que se submeteu a Mem de Sá e que pode ser considerado humano. Quanto aos outros, são irracionais e não têm o direito de continuar vivendo.

Durante séculos, a Igreja Católica e o Estado português, seguido pelo brasileiro administraram nossos “gestos de leitura” em relação à catequese e à colonização. Colocaram em circulação suas próprias versões da história, que, ainda hoje, sem muita dificuldade, pode ser verificada nos livros, ou, para ser mais contemporânea, em qualquer busca no Google.

O índio não foi inventado sozinho. Para que a imagem do selvagem fizesse sentido, muitas outras também entravam em cenas. Na verdade, esta relação de dominação que aconteceu com as sociedades indígenas e com as sociedades africanas nos séculos XVI, ainda hoje continua se repetindo no Vietnã, no Iraque, na Faixa de Gaza, onde quer que existam pessoas querendo subjugar sociedades inteiras. Nestas situações sempre as invenções discursivas serão mais uma forma de violência contra os povos oprimidos. Em sua mais recente versão, costuma-se afirmar que o mundo mudou e que falar sobre dominantes e dominados é coisa do passado.


Texto de Ivânia dos Santos Neves