quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

ABUNDÂNCIA GUARANI

"Quatro voltas da lua" (ou quatro luas novas) é o tempo necessário e suficiente para se construir um tekoha (aldeia). É o tempo de se preparar a terra e de se plantar. É, fundamentalmente, o tempo necessário para se colher o milho novo. É o tempo gasto para se fazer as casas, para se criar um lugar novo à semelhança do YVY APY (Mundo Original). Dificilmente esse ciclo é interrompido. Isto é, raramente os Mbya deixam um lugar sem que tenha se cumprido o tempo certo, estabelecido por Nhanderu, para se construir ou recuperar o tekoha. Esse tempo coincide com o ciclo do milho, sendo comum que a chegada a um novo lugar ocorra nates da época do plantio do milho, no tempo de preparar a terra, por volta de julho, e a saída do tekoha, temporária ou "definitiva", aconteça depois da colheita e do nimongarai (o "batismo" do milho), após as tempestades.

Não é necessário o abandono do local em que se vive para se recriar um tekoha. O projeto comum para os que ficam é o de aprimorar o tekoha, recuperando as condições físicas e sociais que possibilitarão a sua transformação em YVY APY, local de onde é possível alcançar YVY MARA EY (a Terra sem Mal). Num tekoha que abria muitas famílias, a saída de um grupo está sempre associada ao fato de que não é possível, em razão do preceito divino contido nos mitos, conciliar a permanência de dois YVYRAIJA (sábio, homem-forte cuja alma é proveniente de Tupã retã - Lugar de Tupã). Esse preceito - que implica controle territorial e demográfico, na organização social e nas regras de reciprocidade, em equilíbrio dos recursos naturais em termos de sua utilização para subsistência - funda-se no critério de que um YVYRAIJA e uma KUNHÃ KARAI (mulher sábia, forte, guia espiritual) como complemento, ou vice-versa, é capaz de guiar seu grupo até Yvy Apy.

Os líderes religiosos recebem, em sonhos, as revelações, e estas não devem coincidir, pelas razões expostas anteriormente, quanto ao caminho que o grupo familiar sob sua responsabilidade defve traçar.

"Animicamente, o Guarani é um povo em êxodo, embora não desenraizado, pois a terra que procura é a que lhe servirá de base ecológica amanhã como em tempos passados. Durante os últimos 1.500 anos (...) os Guarani se mostraram fiéis à sua ecologia tradicional, não por inércia, mas pelo trabalho ativo que supõe a recriação e a busca das condições ambientais mais adequadas para o desenvolvimento de seu modo de ser. (...) A busca da terra sem mal, como estrutura do modo de pensar Guarani, dá forma ao dinamismo econômico e à vivência religiosa, que lhe são tão próprios" (Meliá, 1989).

O tekoha é traduzido como o lugar onde é possível realizar o modo de ser Guarani. "Teko" significa "modo de ser", e abrange cultura, normas, comportamentos e costumes. O tekoha, com toda a sua materialidade terrena, é sobretudo uma interrelação de espaços culturais, econômicos, sociais, religiosos e políticos.

Na verdade, "fundar" um tekoha, ou recuperá-lo ou reconstruí-lo mediante as unidades familiares, é realiar o projeto coletivo de reconstrução do mundo Mbya por meio da reprodução dos elementos originais existentes em YVY APY. Yvy apy é o lugar exemplar criado por Nhanderu, onde desceram seus filhos, na terra, e de onde é possível retornar ao infinito.

A noção de abundância entre os Mbyá não está, pois, relacionada com a idéia de quantidade, mas sim com a de qualidade dos elementos existentes no tekoha. Quando se referem à YVY MARA EY, a terra que não termina e onde nada tem fim, a fartura que ela contém está na qualidade de perenidade e de renovação, características dos alimentos, das plantas, dos animais e da água.

"Em yvy apy há uma nascente de água boa, que nunca acaba". Quando os Mbya transportam, aonde quer que vão, as sementes do milho verdadeiro - AVAXI ETEI -, eles não estão preocupados em produzir grandes roças, mas sim em perpetuar sua produção por meio do mesmo ciclo, reproduzindo a origem do mundo. Nunca, ou quase nunca, os Mbya guardam sementes do milho comum (avaxi tupi) após a colheita, o que indica que as coisas verdadeiras criadas por Nhanderu nunca devem se acabar, o que não é o caso do milho comum.

Nesse sentido, a abundância para os Mbyá está associada à qualidade dos elementos criados por Nhanderu, que tem a marca da perenidade. Por isso, para os Mbyá, os Mbya etei - "os verdadeiros filhos de Nhanderu" - alcançar a eternidade, com o corpo e a alma, significa confirmar sua autenticidade enquanto criatura original.

Baseado em texto de Maria Inês Ladeira.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

TEKOHA


A palavra TEKOHA é a forma que o povo Guarani se refere a sua terra tradicional. Porém, mais do que um simples espaço ocupado por um grupo ou de onde se retira sua subsistência, é nesta terra em que se produz toda cultura Guarani.

Segundo os principais dicionários, a palavra Teko significa modo de ser, modo de estar, sistema, lei, cultura, norma, comportamento, hábito, costume. Assim, é no Tekoha que os Guarani realizam seu modo de ser.

Um Tekoha é formado por uma família extensa que é um ente sócio-político, econômico e territorial autônomo, a estrutura básica da sociedade guarani. Cada pessoa é parte de uma família extensa e se identifica com ela. A família extensa é um grupo de pessoas relacionadas entre si por laços de parentesco consangüíneo que incluiu: avós, avôs, pais, mães, tios, tias, maridos, esposas, cunhados, cunhadas, filhos, filhas, sobrinhos e sobrinhas.

O conceito de propriedade para os Guarani é muito diferente do que se entende na sociedade envolvente. O povo Guarani não se considera dono da terra, nem daquilo que vive nela. O que entende é que têm o direito ao usufruto da terra, que deve ser feito de forma respeitosa, equilibrada e limitada, vigiado pelos deuses e os outros Guarani.

Sem se considerar donos das terras, os Guarani respeitam entre si o domínio territorial-familiar em cada tekoha, por isso não invadem ou aproveitam de seus recursos sem a devida permissão.

Na economia Guarani, o princípio da solidariedade com o próximo não se manifesta de forma coletiva, em que todos trabalham juntos e todos são donos de tudo. O que existe é uma obrigação moral de ajudar sempre que o outro necessitar, de receber ajuda quando precisar e participar com alegria do trabalho do outro Guarani sempre que o outro necessite. Esta ajuda recíproca é chamada de jopói.

A generosidade é uma das virtudes mais importantes na sociedade Guarani e uma pessoa egoísta, que acumule bens, por exemplo não compartindo aquilo que produz com as demais, é criticada e marginalizada.


O verdadeiro pai Ñamandú, o primeiro,
Havendo conhecido em si mesmo
O que há de ser o leito de sua própria terra,
Da sabedoria contida em seu próprio ser celeste;
Em virtude de sua sabedoria que se abre em flor,
Disse que na base de seu bastão (ritual),
Foi engendrando-se a terra.
Disse que se despregara,
No centro da terra que havia de ser,
Uma palmeira verdeazul e outra na morada de Karaí
E outra na morada de Tupã,
E outra eu na origem dos ventos bons,
Nas origens do tempo/espaço primeiro;
Disse que abriu como flor a palmeira verdeazul.
Poema Guarani que explica a criação do universo em sua visão.

YVY POTY - A Flor da Terra


Nós, do povo Guarani, desde os tempos quando nasceram nossas raízes mais profundas, acreditamos que a natureza é vida, assim como a terra é o chão onde pisamos, com muita firmeza, seguro e sem medo.

Para nosso povo não é possível esquecer que a terra é o suporte que sustenta toda natureza, toda vida, porque depois que Tupã fez a natureza percebeu que não tinha quem admirasse os rios, a mata e as montanhas. Foi daí que Tupã pensou e criou o Guarani para admirar toda a beleza que fez.

Por isso, nós somos a flor da terra, como falamos em nossa língua: YVY POTY.

Fomos criados pela natureza, por isso ela está sempre a nosso favor, nos ama,nos alimenta e dá a vida por nós, seres humanos.

A água, tão preciosa, sem cor, sem cheiro, cristalina, que vive dentro da gente, respira em nosso corpo e evapora no ar. Formando nuvens de amor de onde cai a chuva para enverdecer as matas, crescer os brotos; as flores para perfumar o universo e alimentar as abelhas que fazem o doce mel; e as frutas para alimentar os pássaros e outros animais.

O mato traz sombra e vitamina para terra e os rios que correm dentro do corpo da terra, como o sangue em nossas veias.

Mas a maldade cruel faz o fogo da morte passar no corpo da terra, secando suas veias. O ardume do fogo torra sua pele. A mata chora e depois morre. O veneno intoxica. O lixo sufoca. A pisada do boi magoa o solo. O trator revira a terra.

Fora de nossas terras ouvimos seu choro e sua morte sem termos como socorrer a Vida.

Chegou a hora de defender a vida do fogo da morte. Defender a vida como Tupã nos entregou: a vida dos rios, das matas, dos pássaros, de todos os animais, das nossas crianças!

Nessa luta pela vida necessitamos contar com o compromisso, a união, a força e a coragem de todas as mulheres, homens e crianças de nosso Grande Povo Guarani.

Nossos povos irmãos que também nasceram desta terra, e há mais de quinhentos anos resistem em seus sonhos, cantos, rezas, danças e línguas, também devem lutar pela vida.

A lembrança dessa terra imaculada está na memória das pedras, das águas e do sangue que corre nas veias de cada morador deste continente.

Em defesa da vida e da terra fazemos um convite para que cada um resgate essa memória, conheça nossa cultura e lute conosco para traçar juntos o caminho para um futuro de liberdade. O Horizonte é a meta, caminhar juntos é o objetivo.
Comissão de Liderança e Professores em Defesa dos Direitos Guarani

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

TILANTONGO

Os ÑUDZAHUI (chamados de Mixtec pelos espanhóis) eram uma constelação de pequenos principados da Mesoamérica, na região de Oaxaca. Eram rigidamente estratificados, com o rei e um pequeno grupo de familiares e conselheiros nobres ocupando o lugar principal da sociedade. Eles mudavam constantemente de configuração, alguns se expandindo até absorver os vizinhos, outros implodindo quando seus povoados constituintes se separavam para juntarem-se a outras comunidades politicamente organizadas. Mais comumente, duas comunidades se juntavam por laços matrimoniais.

A escrita ñudzahui sobreviveu em apenas oito códices - os "Livros de Camurça" ou "de Casca", cujas páginas pintadas podiam ser dobradas como anteparos ou penduradas na parece como murais. Os espanhóis destruíram todo o resto. Muito pictórica, os textos eram arranjados quase aleatoriamente na página; linhas vermelhas dirigem os olhos do leitor de imagem em imagem. As personagens são identificadas pela sua data de nascimento - o mais importante presságio - dos já famosos calendários mesoamericanos.

Quatro desses códices narram a história de 8-VEADO PATA DE JAGUAR, um astuto sacertode-general-político. Foram traduzidos pelo arqueólogo John D. Pohl:

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Nascido em 1063 a.C., 8-Veado era primo distante da família governante de Tilantongo, que durante décadas esteve engajada numa luta dinástica com o reino do "Fardo Vermelho e Branco". Como seu pai, um alto clérigo, 8-Veado foi educado para o sacerdócio, mas os acontecimentos políticos e sua ambição arrogante o impediram de seguir este caminho.

Depois que um ataque não provocado de Tilantongo contra Fardo Vermelho e Branco elevou a hostilidade a um grau febril, as partes beligerantes concordaram em se reunir numa caverna na montanha sagrada com a Sacerdotisa dos Mortos - um poderoso oráculo que, despojada de carne na mandíbula, tinha uma aparência aterradora de caveira. O representante de Tilantongo era 8-Veado, que foi ao encontro no lugar de seu recém-falecido pai. Para seu desalento, a sacerdotisa ficou do lado dos inimigos de Tilantongo e ordenou 8-Veado, o defensor de Tilantongo, a exilar-se a 160 quilômetros de distância, numa cidadezinha chamda Tututepec, perdida na costa do Pacífico.

Afastado em Tututepec, 8-Veado reuniu um exército privado, comandado por muitos parentes e, numa série de campanhas rápidas, capturou dezenas de povoados e cidades-Estado vizinhos. Além de organizar o maior império jamais visto na região, as conquistas lograram matar a maioria dos irmãos e primos acima dele na linha sucessória real. Após seis anos de guerra, ele retornou ao lar em Tilantongo. Durante a visita, 8-Veado encontrou acidentalmente 6-Macaco, a jovem esposa do rei muito mais velho de Fardo Vermelho e Branco. Apesar da longa inimizade entre os dois reinos, 8-Veado e 6-Macaco secretamente se tornaram amantes.

Em 1096, o soberano de Tilantongo morreu em circunstâncias misteriosas. A Sacerdotisa dos Mortos escolheu o amado meio-irmão mais velho de 8-Veado para ser o regente - isto é: o meio-irmão tornou-se a última pessoa entre 8-Veado e o trno de Tilantongo. Três anos mais tarde, agressores desconhecidos esfaquearam o meio-irmão até a morte numa sauna. O inconsolável 8-Veado assumiu o trono de Tilantongo e declarou guerra a Fardo Vermelho e Branco, o qual ele afirmava ter orquestrado o assassinato.

O palácio de Fardo Vermelho e Branco era construído num penhasco sobre uma curva do rio. Guardado por muros abruptos em três lados, seus soltados só tinham que vigiar o quarto lado, onde havia uma berma de terra. Comandando um exército de mil homens, 8-Veado lançou escadas, enxameou com seus omens berma acima, e entrou no palácio. Como convém a um conquistador, 8-Veado estava usando uma elaborada armadura de algodão, uma barba postiça cerimonial, um capz feito com uma cabeça de jaguar; colares de ouro e jade pendiam de seu peito nu. No palácio ele encontrou 6-Macaco e seu marido, o rei de Fardo Vermelho e Branco. Ambos mortalmente feridos. 8-Veado estava abraçando 6-Macaco quando ela morreu.

Os dois filhos do casal real foram capturados; 4-Vento era o herdeiro do trono. Pegando-o pelos cabelos, 8-Veado obrigou o rapaz a rebaixar-se diante dele. Mas também tomou uma decisão que terá sido sentimental: poupou a vida do filho de sua amante.

4-Vento e seu irmão conseguiram fugir do confinamento e, querendo vingança, se associou ao império Zapoteca em busca de ajuda. Com esse apoio, estabeleceu conexão com rebeldes em Fardo Vermelho e Branco e de outras cidades derrotadas por 8-Veado. E, em 1115, cercaram Tilantongo. A batalha durou seis meses e acabou com a derrota total de Tilantongo. Numa imagem espelhada do passado, 8-Veado foi obrigado a curvar-se diante de 4-Vento. Ele tinha 55 anos de idade, seis reinados oficiais e dúzias de pequenos Estados sob seu controle. Vitorioso e vingativo, 4-Vento o executou pessoalmente... e depois casou-se com a filha de 8-Veado.

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Em seu primeiro exercício de estadista, 4-Vento abandonou os aliados zapotecas, aliou Tilantongo ao império Tolteca e atacou Zapoteca. Finalmente, os ñundzahui sob seu comando tomaram grande parte de Oaxaca, obrigando os Estados zapotecas a pagarem impostos. O império por ele estabelecido foi maior que o de 8-Veado, perdurando até o século V, quando foi invadido pelos Mexica.

Baseado em texto de Charles C. Mann

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

TERRITORIEDADE INDÍGENA

Para as sociedades indígenas, a terra é m uito mais que simples meio de subsistência. Ela representa o suporte da vida social e está diretamente ligadaa ao sistema de crenças e conhecimento. Não é apenas um recurso natural mas um RECURSO SOCIOCULTURAL.

A Terra não é e não pode ser objeto de propriedade individual. A noção de propriedade privada da terra não existe nas sociedades indígenas. No passado a questão da manutenção de fronteiras territoriais não chegava a se colocar de maneira categórica. Todos tinham o direito de utilizar os recursos do meio ambiente na forma de caça, pesca, coleta e agricultura, sem que divisas rígidas fossem mantidas entre aldeias ou povos vizinhos. E atualmente, quando praticamenta todas as sociedades indígenas encontram-se cercadas por sociedades ocidentais e que, portanto, a defesa das fronteiras das terras indígenas se torna uma necessidade para eles, ainda assim a terra contilhia sendo objeto de propriedade comunal. O modelo ocidental de propriedade individual não foi adotado pelas sociedades indígenas. Ao contrário, as reivindicações que partem deles enfatizam o grupo como um todo e não indivíduos isolados.

Limites territoriais não são estranhos às tradições indígenas. O que é estranho é o sentido de exclusividade e de policiamento de um dado território. Tradicionalmente, é muito comum existir o reconhecimento geográfico do território. Porém, esses limites não são tão rígidos que impossibilitem o acessao a outras comunidades, nem tão permanentes que inibam uma mudança de local e rearranjos espaciais. O que existe, geralmente, é um consenso partilhado por comunidades vizinhasa de que é eticamente incorreto utilizar os recursos de outra comunidade sem consultá-la ou informá-la. O traçado exato desses limites pode não sere do conhecimento ou do interesse da população, mas há uma praxe reconhecida e observada por todos.

Por exemplo, para os KOBÉWA, que vivem no Alto Uaupé da Colômbia e do Brasil, no noroeste amazônico, não é uma questão a ser pensada, pois não são zelosos de fronteiras e raramente têm problemas com elas, embora as conheçam. Segundo Irving Goldman, "com respeito à terra, estamos lidando mais com dominío do que com propriedade. (...) O domínio é sancionado por tradições de origem que narram precisamente de onde vieram os primeiros ancestrais e suas viagens e aldeamentos subsequentes. É como base nessas tradições que as pessoas podem dizer: 'Esta é a nossa terra'."
Darcy Ribeiro relata conceito semelhante sobre os URUBU-KAAPÓR, do Maranhão: "Embora não haja qualquer idéia de propriedade sobre o território tribal ou de divisão do mesmo entre os vários grupos locais, cada aldeia, na prática, cobre uma certa área em suas atividades de caça, coleta e pesca, de modo que raramente os caçadores de grupos locais diferentes se encontram na mata".

Considerações de ordem social, ritual ou religiosa são muito mais importantes para a noção de território que a questão de limites geográficos. Muitas sociedades proíbem ou desencorajam o casamento entre pessoas na mesma aldeia, o que necessariamente leva várias aldeias a se interligarem por laços de casamento. Esses laços, por sua vez, vêm acompanhados de uma série de obrigações mútuas que transcendem a mera união conjugal. Visitas recíprocas, prestaçaaões de serviços vários, desde econômicos a rituais, levam as comunidades envolvidas a se utilizar do território comum que as contém, território esse que toma uma importância social extraordinária.

Um dos temas de conversa mais recorrente entre pessoas da mesma aladeia ou de aldeias diversas, é o estado geral e particular do território: trocam-se notícias sobre caçadas, abundância ou escassez de um produto, amadurecimento de um fruto, as idas e vindas dos moradores das diversas aldeias, os sustos e as recompensas que a mata pode trazer, o encontro ocasional com espíritos na mata, e muitos outros assuntos que revelam a inquestionável importância do território, não apenas como sustentáculo físico dessas populações, mas também - e principalmente - como uma realidade socialmente construída, elaborada e intensamente vivida.

A questão da escassez, por exemplo, é bem significativa. No sistema econômico ocidental adotado pelos países sul-americanos, a escassez de recursos é mais o resultado do sistema socioeconômico vigente do que de uma limitação natural. A própria terra foi transformada em bem escasso no momento em que passou a ser regida pelo princípio da propriedade privada: somente aqueles com suficente poder aquisitivo têm acesso a ela. Nas sociedades indígenas isso não ocorro. A terra e seus recursos natruais sempre pertenceram às comunidades que os utilizam, de modo que praticamente não existe escassez, socialmente provocada, desses recursos. Se há escassez natural, ela é partilhada por todos: se há fartura, todos se beneficiam; se há falata, todos a sofrem. Pois a desigualdade social, quando existe, não se dá à custa de privações econômicas de uns em benefício de outros; geralmente está vinculada a privilégios sociais, políticos ou rituais que não envolvem acumulação desproporcional de bens materiais ou acesso diferencial a recursos naturais.
território grupal está ligado a uma história cultural revestida de uma linguagem mítico-religiosa, que orienta e define os movimentos espaciais das aldeias de um sítio ocupado para outro novo. David Price cita o exemplo dos NAMBIQUARA: "Os vivos oferecem comida e bebida aos espíritos dos mortos e os agradam com canto, e os espíritos, reciprocamente, asseguram saúde e bem-estar à aldeia. segue que o lugar onde os parentes são enterrados é sagrado. E já que estão enterrados na aldeia, a aldeia é sagrada. Onde há Nanbiquara enterrado é aldeia, e onde não há ninguem enterrado não é aldeia, ainda que ai vivam cinquenta habitantes". Isso significa que cada aldeia está históricamente vinculado a seus habitantes, de modo que o passar do tempo não apaga o conhecimento dos movimentos do grupo, desde que se mantenha viva a memória dos ancestrais. Estes estão, portanto, ligados ao território, sendo que o foco dessa relação é o local de habitação. Quando alguém morre longe de uma aldeia, o corpo é levado, se for necessário, para ser enterrado num lugar onde há mata boa, onde roças possasm futuramente ser feitas. Ou seja: se não pode ser enterrado numa aldeia antiga, então será numa aldeia futura!

Assim, no território estão inscritas as mais básicas noções de autodeterminação, de articulação sociopolítica, de vivência e crenças religiosas. Limitar o território de um grupo às imediações de seu centro residencial, a aldeia, é condenar esse grupo à penúria permanente, privando-o dos recursos naturais que, por natureza ecológica, acham-se espalhados por grandes distâncias, necessitando, consequentemente, de uma exploração extensiva e não intensiva. No Brasil temos inúmeros exemplos de índios que, havendo perdido seus territórios originais, são obrigados a utilizar, para sobreviver, o único recurso que lhes resta: o seu trabalho, vendido barato, senão mesmo dado, aos invasores ocidentais.
Baseado em texto de Alcida Rita Ramos.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

POSTULADOS DO VIVER BEM

A nova Constituição Política da Bolívia estabelece o princípio ancestral de VIVER BEM como o modelo a ser reimplantado no pais, que busca “o viver em harmonia com a natureza”. Estas consideravam que o ser humano esta em segundo plano, logo após o meio ambiente. Seu Artigo 8º estabelece que “O Estado assume e promove como princípios ético-morais da sociedade plural: AMA QHILLA, AMA LLULLA, AMA SUWA (não sejas preguiçoso, não sejas mentiroso e não sejas ladrão), SUMA GAMAÑA (viver bem), ÑANDEREKO (vida harmoniosa), TEKO KAVI (vida boa), YVY MARÃ EY (terra sem mal) e QHAPAJ ÑAN (caminho ou vida noble)”.

O Ministro das Relações Exteriores, David Choquehuanca – estudioso aymara desse modelo e expert na cosmovisão andina –, conversou com o jornal LA RAZÕN e explicou os detalhes destes princípios reconhecidos no Artigo 8º da Constituição Política do Estado (CPE). “Queremos voltar ao ‘VIVER BEM’, o que significa que iremos valorizar nossa história, nossa música, nossos trajes, nossa cultura, nosso idioma, nossos recursos naturais. Ao decidirmos recuperar tudo o que é ‘nosso’, voltamos a ser o que fomos”.

O ministro procurou ressaltar a distância que há entre essa decisão política e o Socialismo, tanto quanto do Capitalismo. O primeiro, por buscar satisfazer as necessidades humanas apenas; o segundo porque coloca o dinheiro e a propriedade como o mais importante. “Para os que pertencem à cultura da vida, o mais importante não é nem a prata, nem o ouro e nem mesmo o homem. O mais importante são os rios, o ar, as montanhas, as estrelas, as formigas, as mariposas (...) pois sem essas coisas o homem não pode viver; para nós, portanto, o mais importante é a vida”.

Nessa entrevista, David Choquehuana apresenta as principais características de um Estado construído a partir do BEM VIVER:

PRIORIZAR A VIDA
VIVER BEM é buscar a vida em comunidade, onde todos se preocupam com o bem-estar de cada pessoa. O mais importantes não é o indivíduo (como afirma o Socialismo), nem o dinheiro (como postula o Capitalismo), mas a VIDA. Por isso se busca uma vida mais fraterna, que seja o caminho da harmonia com a natureza.

BUSCAR O CONSENSO
VIVER BEM é buscar sempre pelo consenso entre todos. Isso implica que ainda que as pessoas tenham diferenças, o diálogo deve continuar até que se chegue a um ponto em que todos estejam satisfeitos e não haja conflitos. “Não estamos contra a democracia, mas queremos superá-la pois nela existe também a palavra “submetimento” e submeter o próximo não é VIVER BEM”, esclareceu David Choquehuanca.

RESPEITAR AS DIFERENÇAS
VIVER BEM é respeitar o outro, saber escutar a todos aqueles que desejam falar, sem discriminação ou qualquer tipo de submetimento. Não podemos nos contentar com a tolerância, mas devemos chegar ao respeito. “Não há unidade na diversidade, mas apenas semelhanças e diferenças. Cada cultura ou região tem uma forma diferente de pensar; para VIVER BEM e em harmonia é necessário respeitar essas diferenças”. Esta doutrina inclui a todos os seres que habitam o planeta, como os animais e as plantas.

VIVER EM COMPLEMENTARIEDADE
VIVER BEM é priorizar a complementariedade: todos os seres que vivem no planeta se complementam uns aos outros. Nas comunidades, a criança se complementa com o idoso, o homem com a mulher, etc. Por isso o homem não pode matar as plantas; elas complementam sua existência e o ajudam a sobreviver.

EQUILÍBRIO COM A NATUREZA
VIVER BEM é levar uma vida de equilíbrio com todos os seres dentro de uma comunidade. Segundo David Choquehaunca, a Justiça ocidental também é excludente, porque só leva em contar as pessoas dentro de uma comunidade humana e não ao que é mais importante: a vida e a harmonia do homem com a natureza. É por isso que VIVER BEM aspira uma sociedade com equidade e sem exclusões.

DEFENDER A IDENTIDADE
VIVER BEM é valorizar e recuperar a identidade cultural de cada povo. Essa identidade implica desfrutar plenamente uma vida baseada em valores que têm resistido por mais de 500 anos (à invasão espanhola) e que são o legado de famílias e comunidades que vivem em harmonia com a natureza e o cosmo.

PRIORIZAR DIREITOS CÓSMICOS
VIVER BEM é dar prioridade aos direitos cósmicos antes de aos direitos humanos. Quando se fala de mudança climática, estamos nos referindo a direitos cósmicos, assegura o Ministro de Relações Exteriores. “Por isso, no momento, é mais importante falar sobre os direitos da Mãe Terra que falar sobre os direitos humanos”.

SABER COMER
VIVER BEM é saber alimentar-se, saber combinar as comidas adequadas de acordo com as estações do ano (alimentos segundo a época). O Ministro David Coquehuanca explica que este hábito deve basear-se na prática dos antepassados, que se alimentavam com um determinado produto durante toda uma estação e que essa era a garantia de boa saúde.

SABER BEBER
VIVER BEM é usar bebidas alcoólicas com moderação. Nas comunidades indígenas cada festa tem um significado e as bebidas alcoólicas sempre estiveram presentes nas celebrações, mas nunca eram consumidas com exageros. “Temos que saber beber; nossas comunidades tinham festas que estavam relacionadas com as épocas sazonais. Não é como ir a uma cantina e encher a cara de cerveja e matar os neurônios”.

SABER DANÇAR
VIVER BEM é saber dançar, não simplesmente saber bailar. A dança se relaciona com alguns momentos concretos, como a colheita e a semeadura. As comunidades continuam honrando com a dança e música à Pachamama, principalmente em épocas agrícolas. Nas cidades ocidentalizadas, as danças originárias são consideradas como “expressões folclóricas”. O BEM VIVER inclui a redescoberta do verdadeiro significado de dançar.

SABER TRABALHAR
VIVER BEM é considerar o trabalho como festa. “O trabalho para nós é felicidade”, disse David Choquehuanca, ressaltando a diferença em relação ao Capitalismo, onde se paga para trabalhar. O BEM VIVER retoma o pensamento ancestral de considerar o trabalho como uma festa; é uma forma de crescimento, por isso que nas culturas indígenas se trabalha desde pequenos.

RETORNAR A ABYA YALA
VIVER BEM é promover que os povos se unam em uma grande família. Para David Choquehuanca, isso implica que todas as regiões dos pais devem se reconstitir no que ancestralmente se considerou como uma grande comunidade. “E isso tem que estender-se a todos os países. Por isso vemos como bom sinal os presidentes que estão juntos na tarefa de unir a todos os povos e voltarmos a ser o Abya Yala que fomos”.

REINCORPORAR A AGRICULTURA
VIVER BEM é reincorporar a agricultura às comunidades. É recuperar as formas de vivência em comunidade, como o trabalho da terra, cultivando produtos para suprir as necessidades básicas para a subsistência. “Por isso é fundamental que se faça a devolução de terras às comunidades, de modo que as economias locais possam se reorganizarem”.

PODER COMUNICAR-SE
VIVER BEM é poder se comunicar. O VIVER BEM exige que retomemos a comunicação que existia nas comunidades ancestrais, posto que o diálogo é o resultado dessa boa comunicação. “Temos que nos comunicarmos como nossos pais o faziam antes, e resolviam os problemas antes que se tornassem conflitos”.

CONTROLE SOCIAL
VIVER BEM é realizar um controle obrigatório entre os habitantes de uma comunidade. “Esse controle é o que garante a verdadeira participação das pessoas”, disse Choquehuanca. “Como nos tempos antigos, quando todos se encarregavam de controlar suas principais autoridades”.

TRABALHAR EM RECIPROCIDADE
VIVER BEM é retomar a reciprocidade do trabalho nas comunidades. Nos povos indígenas essa prática se denomina AYNI, que não é mais que devolver em trabalho a ajuda prestada a uma família em uma atividade agrícola, como a semeadura e a colheita. “É, sem dúvida, o mais importante dos princípios ou códigos, pois é o que nos garantiam o equilíbrio frente às grandes adversidades”, explica o Ministro.

NÃO ROUBAR E NÃO MENTIR
VIVER BEM baseia-se no “ama sua” e “ama quilla” (“não roubar” e “não mentir”, em quéchua). Esses preceitos, que também estão incluídos na nova Constituição Política do Estado, deve ser respeitada pelo Presidente, mas também é fundamental que as comunidades respeitem estes princípios para lograr o bem-estar e confiança de seus habitantes.

PROTEGER AS SEMENTES
VIVER BEM é proteger e guardar as sementes como um meio de preservar a riqueza agrícola ancestral através, por exemplo, da criação de bancos de sementes, para que no futuro se evite o uso de produtos transgênicos, que danifica e acaba com as sementes ancestrais.

RESPEITAR A MULHER
VIVER BEM é respeitar a mulher, porque ela representa a Pachamama – a Mãe Terra que da vida e cuida de seus frutos. Por estas razões, dentro das comunidades, a mulher deve ser valorizada e está presente em todas as atividades orientadas à vida, à criança, à educação e à revitalização da cultura. Os povoados das comunidades indígenas valorizam a mulher como base da organização social, porque transmitem a seus filhos os saberes de sua cultura.

VIVER BEM AO INVÉS DE VIVER MELHOR
VIVER BEM é diferente de viver melhor, que se relaciona com o Capitalismo. Viver melhor se traduz em egoísmo, desinteresse pelos demais, individualismo e pensar somente em lucro; essa doutrina capitalista impulsiona à exploração das pessoas com acumulação de riquezas em poucas mãos, enquanto o VIVER BEM aponta para uma vida comunitária que mantenha uma produção equilibrada.

RECUPERAR RECURSOS
VIVER BEM é recuperar a riqueza natural do país e permitir que todos se beneficiem desta maneira equilibrada e equitativa. A finalidade da doutrina do VIVER BEM também é a nacionalização e recuperação das empresas estratégicas do país, como marco do equilíbrio e a convivência entre o ohmem e a natureza em contraposição com uma exploração irracional dos recursos naturais. “Ante tudo se deve priorizar à natureza”, disse o Ministro.

EXERCÍCIO DA SOBERANIA
VIVER BEM é construir o exercício da soberania no país, a partir das comunidades. Isto significa que se chegará à soberania por meio do consenso comunal, que defina e construa a unidade e a responsabilidade a favor do bem comum, sem que nada falte a ninguém. Esse deve ser o marco a partir do qual se reconstruirão as comunidades e a nação para chegarmos a uma sociedade soberana, com harmonia entre a pessoa, a natureza e o cosmos.

USO RACIONAL DA ÁGUA
VIVER BEM é distribuir racionalmente a água e usá-la de maneira correta. A água é direito de todos os seres que habitam o planeta. “Temos muitas coisas, recursos naturais, água. A França, por exemplo, não tem a quantidade de terra nem a quantidade de água que há em nosso país, e, no entanto, eles não têm nenhum Movimento de Sem-Terra. Da mesma forma, devemos valorizar o que temos e preservar o mais possível, isso é VIVER BEM”.

ESCUTAR OS MAIS VELHOS
VIVER BEM é ler nas rugas dos mais vellhos para poder retomar o caminho. Uma das principais fontes de aprendizagem são os idosos das comunidades, que guardam histórias e costumes que, com o passar dos anos, vão se perdendo. “Nossos avós são bibliotecas vivas, por isso sempre devemos aprender deles”. Portanto, os idosos são respeitados e consultados nas comunidades indígenas do pais.