quarta-feira, 29 de julho de 2009

XAMANISMO


Foi fora da dinâmica da celebração cósmica
que fomos criados a princípio.
Temos o objetivo de nos tornar
celebração e generosidade,
cheios de autoconsciência.

O que é o ser humano?

O ser humano é um espaço, uma abertura,
onde o Universo celebra sua existência.

Brian Swimme

terça-feira, 28 de julho de 2009

DIREITOS DA NATUREZA

Há um capitulo na nova Constituição do Equador chamado “Derechos de la Natureleza”, que prevê logo no início: “A natureza, ou Pacha Mama, onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que seja respeitada integralmente sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos.”

A Carta também afirma em seu preâmbulo que “decidimos construir uma nova forma de convivência cidadã, em diversidade e harmonia com a natureza, para alcançar o bem viver, o sumak kawsay” - em língua quéchua, vida harmoniosa entre homem e natureza.

A iniciativa de colocar a natureza como sujeita de direitos soa bastante inusitada. Mas, no campo do direito e da filosofia, diversos pensadores já haviam colocado o antropocentrismo dos direitos em xeque.

Afinal, por que apenas o homem tem direito à vida garantido? A resposta está na origem iluminista da sociedade ocidental, que nos elevou à condição de dominadores da natureza mediante o uso da razão. Uma visão tipicamente cartesiana e antropocentrista, que coloca a natureza como um instrumento da vida do homem e tem resultados danosos ao planeta. Felizmente, já contamos com instrumentos teóricos para superá-la.

O físico Fritjof Capra,
por exemplo, dedicou boa parte de sua obra para justificar a superação do pensamento cartesiano rumo a um pensamento sistêmico e não-linear, condizente com a humanidade e a ciência contemporânea. Outro grande defensor do pensamento sistêmico é o filósofo francês Edgar Morin. Na área do direitos dos animais, destaca-se o filósofo australiano Peter Singer, que questiona: se os animais também sentem dor e sofrimento e vivem em comunidades, por que não têm seu direito à vida resguardado, como os homens?
Novidades conceituais sempre demoram muitos anos para serem recepcionadas pelo mundo do Direito. Por isso, o capítulo “Derechos de la natureleza” merece atenção especial: trata-se de evento inédito e capaz de estabelecer um novo paradigma global.

Certamente levarão muitos anos para que as conseqüências jurídicas deste fato sejam adequadamente debatidas, compreendidas e efetivadas. Mas isso não reduz o mérito da iniciativa equatoriana. Há vinte anos o Brasil aprovava sua Constituição cidadã, garantindo direitos sociais como moradia, saúde, educação e lazer, e até hoje persegue sua efetivação. Como afirmou
Eduardo Galeano, “não são poucos os que continuam sem direitos, mas pelo menos reconhece-se, agora, o direito a tê-los”.

Texto de Bruno Lupion

SUMAC KAWSAY

Talvez por ser brasileiro, ao ouvir pela primeira vez a expressão BUEN VIVIR pense logo em “BOA VIDA”, que no nosso país significa pejorativamente vida fácil, tranqüila e sem preocupação com coisa alguma. Nada de trabalho, muitos passeios e luxo à custa de outrem e consciência política zero.

Esta completamente enganadao. O buen vivir não significa nada disso. Muito pelo contrário, o buen vivir é, de acordo com os povos indígenas da região andina, especialmente os aymaras, um forte princípio que significa vida em harmonia e equilíbrio entre homens e mulheres, entre as comunidades e, sobretudo, entre os seres humanos e a natureza, já que eles são parte dela. A prática deste conceito naturalmente implica em saber viver em comunidade, alcançar condições mínimas de igualdade, eliminar o preconceito e a exploração e respeitar a natureza preservando seu equilíbrio.

Sendo assim, percebe-se claramente que a cultura em que estamos inseridos não tem nada do “buen vivir”. Estamos em total desequilíbrio conosco e com a natureza quando compramos mais do que precisamos; quando exploramos a terra, a água e as próprias pessoas sem remorsos; quando visamos o lucro astronômico, que na maioria das vezes beneficia apenas uma só pessoa ou um pequeno grupo.

Avançam as tecnologias e o conforto aumenta a cada dia, mas isso é apenas para poucas pessoas. Para a maioria, avança a pobreza e aumenta a cada dia a exploração, o preconceito, a competição e o individualismo. Essa é a lógica do sistema em que vivemos. E definitivamente não estamos no “buen vivir”.

Por outro lado, os noticiários nos mostram a toda hora o agravamento da crise financeira mundial, a queda do dólar, o mercado de valores negociando riquezas que sequer existem, o aquecimento global, o risco da falta de água... Enfim toda hora nos noticiam o fracasso desse sistema.

E, diante disso, é irônico ouvir que os indígenas são selvagens e têm um modo de vida atrasado e primitivo. Como? Se sempre souberam viver em comunidade; produzir apenas o suficiente para o consumo; conviver bem com a natureza e com os seus semelhantes; alimentarem-se principalmente de frutas, legumes e outros vegetais e conhecem como ninguém os segredos da floresta e da medicina natural? Além disso, viveram milhares de anos na América antes dela ser “descoberta” de maneira sustentável, mesmo sem saber o que significa ‘sustentabilidade’. Será que isso é ser selvagem?

Justamente, o buen vivir foi bastante defendido nesta 9ª edição do Fórum Social Mundial que aconteceu na Amazônia, em Belém do Pará, centro da Amazônia brasileira. Para quem esteve no Fórum, sem dúvida nenhuma a participação dos povos indígenas da América Latina marcou muito. E não foi só pelos rituais, pelas músicas, pela pintura corporal, pela pele avermelhada e pelo colorido das suas vestes. Foi pela consistência do discurso e a coragem de defender o que acreditam, o “buen vivir”.

E o SUMAC KAWSAY ou BUEN VIVIR já é um conceito incorporado no debate da Assembléia constituinte do Equador. O "buen vivir" também está garantido na nova constituição da Bolivia, aprovada recentemente por meio de Referendo. O “buen vivir” foi a marca desse Fórum Social Mundial. Talvez esse seja o começo do novo mundo possível.


Texto de Cecilia Bizerra

sábado, 25 de julho de 2009

SINAL DOS TEMPOS

A teoria constitucional, no continente americano, historicamente, bebeu das fontes européias, sejam da Espanha, Portugal, Alemanha ou França. Um modelo que foi construído a partir de uma equivalência: um Estado = um território = uma nação = uma língua nacional. Foi, em grande parte, uma teoria constitucional eurocentrada, branca, monocultural e, até certo ponto, monorreligiosa e monolingüística.

Os modelos de repartição de funções do Estado, suas relações com a sociedade civil, a própria formação da nacionalidade foram inspirados nos parâmetros que as teorias européias construíram como cânones. Os últimos movimentos constitucionais dos países da América do Sul questionam este modelo colonial em pontos até então hegemônicos e tidos como inquestionáveis.

Primeiro, porque, diante de uma crise de representação dos partidos políticos e de uma “democracia de baixa intensidade”, insistem em novas inter-relações da democracia representativa e democracia participativa. Não somente referendos e plebiscitos, mas diversos movimentos de participação popular e de constituição de corpos intermediários entre o Estado e os representados (conselhos, órgãos de fiscalização, orçamento participativo, etc). No caso da Bolívia, quatro níveis distintos de autonomia, dentro de um Estado unitário. O constitucionalismo clássico ficara paralisado na fórmula “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”.

Segundo, porque rompem, parcialmente, com uma visão eurocentrada de mundo e admitem a inclusão de visões até então marginais na teoria constitucional, fruto também do forte protagonismo das comunidades indígenas. São exemplos: a inscrição de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deve garantir a sustentabilidade e o bem viver (“sumak kawsay”, artigo 14 da Constituição equatoriana); a inclusão de “ama qhilla, ama lulla, ama suwa” (não seja preguiçoso, mentiroso nem ladrão), “sumak kawsay” (viver bem), “ivi maraei” (terra sem mal), “ñandereko” (vida harmoniosa) entre os princípios ético-morais da sociedade plural (artigo 7º da Constituição boliviana) ou mesmo o reconhecimento de que a natureza (“pacha mama”) tem direito “a que se respeite integralmente sua existência, manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos" (art. 71 da constituição do Equador).

Terceiro, porque o reconhecimento da diversidade étnica vem, simultaneamente, ao status constitucional da “jurisdição indígena”, ressaltado nas novas Constituições da Bolívia e do Equador, mas já esboçada, em termos distintos, na constituição colombiana de 1991 e objeto da Convenção 169-OIT. A teoria constitucional clássica ainda reluta no reconhecimento do pluralismo jurídico e da possibilidade de autodeterminação jurisdicional das comunidades indígenas (vide, no Brasil, a discussão, envolvendo a Terra Indígena Raposa Serra do Sol e as alegações de que constituiria verdadeiro “Estado” fora do “Estado nacional ou mesmo quanto ao risco do ”separatismo” ).

Quarto, porque os ventos da interculturalidade acabam por reconhecer a diversidade étnica, cultural, religiosa, lingüística e social, de que são exemplos a co-oficialidade de 36 idiomas indígenas ao lado do espanhol (artigo 5.1 da constituição boliviana), a necessidade da educação em termos interculturais, as afirmações constitucionais de “Estado plurinacional” (caso da Nicarágua) e a própria existência de etnoeducadores, para formação dos jovens nas contribuições das comunidades afrocolombianas. Isto acarreta, portanto, a inclusão de saberes indígenas e negros, até então marginalizados (a “descolonização do saber”).

Quinto, porque isto implica repensar as soluções institucionais uniformes, descentralizar o Estado e repensar as juridicidades. Afinal, é o reconhecimento da demodiversidade (diferentes instituições com distintos graus democráticos), da sociodiversidade (distintos grupos sociais) e cosmodiversidade (diferentes cosmologias).

Sexto, porque a territorialidade passa a ser pensada de forma distinta. Por exemplo, indígenas de vários países não querem a separação do Estado nacional para criação de um novo, mas sim um reconhecimento de seu território simbólico, que muitas vezes também ultrapassa a fronteira de um Estado, mas que, por outro lado, não se resume à luta por terras, no sentido clássico. A situação dos indígenas bolivianos não é a mesma da Catalunha/Espanha, Chechênia/Rússia e, talvez, Tibete/China.

Sétimo, porque os textos constitucionais reforçam a dimensão dos direitos econômicos, sociais e culturais, ao passo que as constituições européias sempre tiveram uma forte ênfase nos direitos civis e políticos. O que implica, por outro lado, redimensionar a teoria dos direitos humanos, nos seus tradicionais termos de universalidade e interdependência.

Resta saber se este processo rico, criador de textos constitucionais inovadores, é suficientemente forte para a transformação da realidade ou servirá apenas para o diagnóstico de uma realidade pós-colonial que necessita ser vencida. Por enquanto, o certo é que o mapa constitucional, tal como o de Al-Idrisi no século XII, gira, nos últimos tempos, com o sul na parte de cima, e o norte, abaixo. Não deve ser fácil para as ex-metrópoles tomarem lições de democracia, constitucionalismo e direitos humanos das ex-colônias.

Texto de César Augusto Baldi.

PRINCÍPIOS...


YACHAY
Se aprendes alguma coisa, aprenda bem.
E depois a ensine com alegria e honestidade, dialogando e escutando.

MUNAY
Se amas, ama bem.
Compartilha com carinho e humildade

LLANK'AY
Se faz, faça bem.
Com sabedoria, alegria e energia.
Trabalha por tua família, tua comunidade,
pela humanidade e pela Terra.
Se errares, corriga-te e siga diante com firmeza.

KAWSAY
Ama, respeita e protege a vida com a tua vida.
Honre e agredeça a nossos antepassados
que te deixaram como herança o que agora podes desfrutar.
Lega aos nossos descendentes um mundo harmonioso,
com bem-estar e abundância para todos.

AYLLU
Reconheça-te nos demais, que são você mesmo.
Cria e deixe-se criar.
Respeite as diferenças com tolerância,
em integração e complementaridade.

AYNI
Partilhe com todos os seres que te rodeiam.
Lembre-se que para receber, primeiro tens que dar.

K'INTU
Ofereça o melhor de ti mesmo, de teu entendimento,
de teu sentimento, de teus antos, de teus conselhos.

CHEQA
Reconheça a realidade para além da tua verdade
e entenda a verdade dos outros sem pretender impor a tua.


Esses são os princípios pelos quais os povos originários andinos pautam sua vida!

segunda-feira, 20 de julho de 2009

O CÉU EM ATACAMA

Há muito tempo atrás, em um lugar deserto do norte do Chile, chamado ATACAMA, apareceram os animais. Este lugar era árido e seco, praticamente sem vegetação. A água era escassa, só com alguns poucos mananciais... e exatamente nesses mananciais estavam os animais, mergulhados.

Um dia, quando estavam começando o tempo das chuva, logo ao amanhecer, todos os animais saíram de dentro da água. Nesses meses, todas as noites eles vão para o céu e durante o dia voltavam para a terra, para realizar certas tarefas.

Os primeiros a emergirem da água foram a serpente e o sapo.

- Olá – disse a Serpente -, meu nome é AMARU. E você, quem é?

- Eu sou HAMPATU – respondeu o sapo. – Só apareço quando começam os meses de chuva. Também me chamam “demônio” porque dou má sorte a quem me vê.

- Então você me deu má sorte – sussurrou a serpente um tanto assustada.

- Não te preocupes, estou recém despertando e meus poderes ainda não estão ativos – contestou o sapo Hampatu. – Além disso, eu adivinho o tempo. Croac... Croac... Croac... Estes vão ser meses chuvosos, terei que cantar dia e noite para anunciar as chuvas.

- Muito bem – disse a serpente Amaru. – Isso quer dizer que durante o dia terei muito trabalho, como o Arco-Íris.

- E como fará isso? – perguntou o sapo Hampatu, surpreso.

- Muito fácil – disse a serpente. – Me estiro e me estico até que vou de um lado ao outro da terra... Ponho uma ponta em cada parte da terra e então aparecem as cores.

Então eles ouviram um rebuliço na água e um grito pedindo ajuda:

- Socorro... Alguém me ajude.... Não consigo sair – gritou a perdiz.

A serpente Amaru e o sapo Hampatu correram para ajudá-la. Usaram toda a sua força para tirarem da água a ave que estava em perigo.

- Obrigada... Muito obrigada... Sou YUTU – disse a perdiz. – Me atrapalhei um pouco com umas pedras. Sou um pouco estapanada.

- E o que você faz aqui? – perguntou Amaru.

- Bem, se vocês não sabem, meus ovos são muito coloridos, e por isso gostaria de ajudá-los a formar o arco-íris. Posso? – perguntou Yutu.

- Não sei... Você é muito pequena. Não creio que possas me ajudar muito – contestou a serpente Amaru.

- Por favor... deixa. Te prometo que não vou atrapalhar – insistiu Yutu.

- Está bem, está bem... Vamos fazer uma experiência – disse Amaru.

Enquanto estavam nessa discussão, do fundo do manancial emergiu uma Lhama com seu filhote.

- Bom dia para todos. Meu nome é YAKANA. Sou a Lhama Celestial, e este é meu filhote – se apresentou ela.

Sigilosamente, tratando de passar desapercebido, ATOQ, a raposa, saiu do manancial. Yakana, preocupada em apresentar-se aos outros habitantes da cordilheira, nem percebeu que Atoq se aproximava de seu filhote para atacá-lo. A pequena lhama, assustada, percebendo o perigo, tratou de avisar sua mãe, que ainda estava saudando os outros animais. Por sorte, exatamente no momento em que Atoq se preparava para saltar sobre a lhama, Hampatu, o sapo, dando-se conta do que acontecia, lhe lançou um malefício que o deixou petrificado.

Yakana, depois do susto, abraçou e consolou seu filhotinho. E logo disse:

- Obrigada, Hampatu. Nos salvou a vida. Atoq ficará para sempre petrificado e nós estaremos salvos.

- Chega de agradecimentos. Está na hora de irmos para o céu. Os meses de chuva vão começar e temos que realizar nosso trabalho – exclamou Hampatu.

Durante os meses de chuva, a serpente Amaru, o sapo Hampatu, a perdiz Yutu, a lhama Yakana e seu filhote, e Atoq, a raposa petrificada, moram entre as estrelas, formando constelações. Só vêm à terra para fazer seus trabalhos.

Ao chegar no céu, cada um tomou sua posição. O sapo Hampatu e a perdiz Yutu, para não se aborrecerem, decidiram fazer uma corrida. A serpente Amaru se postou em um lugar onde podia descer rapidamente à terra e ser o arco-íris. A lhama Yakana, cujos olhos se destacam e tem um longo pescoço, se postou para amamentar seu filhote. E Atoq, a raposa, tomou a posição de quem a persegue... mas sem nunca alcançá-la, porque estava petrificada.



- Muito bem – disse o sapo. – As chuvas podem começar.

- Yakana, e o que você vai fazer? – perguntou Amaru.

- Eu tenho que realizar uma tarefa muito importante nesses meses de chuva. Durante a noite devo viajar à terra, até Atacama, para dar aos homens muita lã azul, branca, negra e de outras cores. Essas pessoas trocaram a lã por lhamas, que se reproduzirão até sermos três mil lhamas – respondeu Yakana.

Todos os outros animais ficaram surpresos. Não sabiam que a lhama teria esta tarefa tão importante para os habitantes de Atacama.

- Você realmente é uma Lhama Celestial – disse Yutu, assombrada.

E assim, quando os animais aparecem no céu, toda noite, na terra sabemos que começaram os meses de chuva. Nesse período, se as constelações se obscurecem um pouco e o canto de Hampatu, o sapo, fica mais forte, é indicação de que haverá muita chuva. Será um bom ano para as batatas, o milho e para os pastos que alimentam as lhamas.

Conto de Ana Maria Pavez Recart

sábado, 18 de julho de 2009

ACLLAS, as Sacerdotisas do Sol

Por volta de 1532, quando os espanhóis desembarcaram nos domínios inca, se defrontaram com uma sólida organização por todo o planalto andino, da Colômbia até o Chile e a Argentina, da costa do Pacífico até a floresta amazônica, tendo o Peru como o centro político, econômico e demográfico.

Nas descrições do mundo religioso incaico, os cronistas espanhóis falam, impressionados, de um grupo de mulheres chamadas ACLLAS - MULHERES ESCOLHIDAS como esposas e sacerdotisas do Sol. Segundo eles, só em Cuzco existiam de três a quatro mil dessas sacerdotisas, que eram recrutadas entre as donzelas mais belas e nobres do Império, excetuando-se as filhas e as irmãs dos Incas. Tal escolha era efetuada por funcionários especiais que, por mandato do Inca, percorriam todas as comunidades escolhendo jovens moças para viverem em recolhimentos femininos, dedicados ao Inca e ao Sol, denominados ACLLAWASI – CASA DAS ESCOLHIDAS. As "escolhidas" como acllas eram nomeadas esposas do Sol e do Inca, sendo investidas de qualidades sagradas, exercendo, em razão disso, papel importantíssimo nos cerimoniais e rituais oficiais do Império. O cronista Martín de Murúa informou que, no Reino do Peru “havia maior primor nesse negócio de Virgens que serviam nos templos, e era coisa muito antiga, porque desde que se começou a adorar o Sol e construir templos para ele, o primeiro Rei dos Incas, chamado Pachacuti Inca, ordenou que entre os outros sacerdotes, houvesse mulheres donzelas, filhas de grandes senhores, das quais umas serviam de Mulheres do Sol, outras de criadas e servas dessas, outras de fazer roupas muito delicadas com muito cuidado e diversas cores, de maneira que eram ricas e formosas à vista de todos; faziam também os mais delicados vinhos, que eram usados para oferecer sacrifícios a seu Deus; serviam de dia e de noite nos Templos do Sol, com grande cuidado”.

Entre elas há uma hierarquia baseada nos atributos de beleza, honradez e castidade. As que eram consideradas encarnação da perfeição física e moral, bem educadas e mais habilidosas eram escolhidas como SACERDOTISAS DO SOL, e deviam permanecer em perpetua virgindade. Eram investidas de características sagradas, detinham poderes e privilégios, sendo, por isso, freqüentemente reverenciadas por toda a sociedade. Essas viviam em Acllawasi dedicadas a Inti, o Sol: ricos palácios espalhados por todo o império, onde nem mesmo o Inca podia entrar. As demais, viviam em Acllawasi dedicadas ao Inca e ligadas aos cultos de adoração a Lua e a Terra – cerimônias religiosas que apenas as acllas participavam.


As Sacerdotisas do Sol eram consideradas MULHERES SAGRADAS, e por isso eram veneradas e homenageadas por onde passassem. Até mesmo a sua alimentação era diferenciada, não podendo ser como a das outras pessoas. Também eram chamadas de MAMACONAS Grandes Mães – podiam falar em nome dos deuses e interpretar suas predisposições. Além disso, juntamente com os sacerdotes, tinham a responsabilidade de defender a moralidade e a ordem no Império. Como oficiantes do ritual inca, elas presidiam cerimônias nas quais os laços entre Cuzco e as províncias eram reforçados e acentuados. Eram as principais oficiantes da FESTA CITUA, entre outras, em que sacerdotes e guerreiros da dinastia incaica purificavam Cuzco ritualmente. Durante todo o mês em que se celebrava a Citua, as mamaconas distribuíam pedaços de pão sagrado - pequenos bolos de farinha de milho misturados com sangue de lhamas sacrificados - aos representantes de cada província e aos sacerdotes, simbolizando a "comunhão sagrada", a renovação das alianças, a reiteração das tradições e a reiteração da indissociabilidade entre religião e Estado, entre imperador e súditos, entre o Império e seus Deuses:

Nesse sentido, as acllas, como Filhas do Sol, representavam também símbolos divinos do Império Inca. Enquanto sacerdotisas, participavam do conjunto de relações constitutivas da organização social do Império em sua dimensão simbólica e funcional. Dessa forma, a instituição das acllas era intrínseca e imprescindível à estruturação, funcionamento e manutenção da ordem imperial.


Baseado no texto de Susane Rodrigues de Oliveira

PACHAMAMA

sábado, 11 de julho de 2009

ENTRE AMÉRICA E ABYA YALA


ABYA YALA, na língua do povo Kuna, significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento e é sinônimo de América. O povo Kuna é originário da Serra Nevada, no norte da Colômbia, tendo habitado a região do Golfo de Urabá e das montanhas de Darien e vive atualmente na costa caribenha do Panamá na Comarca de Kuna Yala (San Blas).

Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América. A expressão foi usada pela primeira vez em 1507, mas só se consagra a partir do finaol do século XVIII e início do século XIX, por meio das elites crioulas, para se afirmarem no processo de independência, em contraponto aos conquistadores europeus . Muito embora os diferentes povos originários que habitam o continente atribuíssem nomes próprios às regiões que ocupavam – Tawantinsuyu, Anahuac, Pindorama – a expressão Abya Yala vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do continente objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento.

A primeira vez que a expressão foi explicitamente usada com esse sentido político foi na II Cumbre Continental de los Pueblos y Nacionalidades Indígenas de Abya Yala, realizada em Quito, em 2004. Em 2007, a III Cumbre Continental de los Pueblos y Nacionalidades Indígenas de Abya Yala resolvem constituir uma Coordenação Continental das Nacionalidades e Povos Indígenas de Abya Yala, “como espaço permanente de enlace e intercâmbio, onde possam convergir experiências e propostas, para que juntos enfrentemos as políticas de globalização neoliberal e lutemos pela liberação definitiva de nossos povos irmãos, da mãe terra, do território, da água e de todo patrimônio natural para viver bem”. Pouco a pouco, nos diferentes encontros do movimento dos povos originários, o nome América vem sendo substituído por Abya Yala, indicando assim a presença de outro sujeito enunciador de discurso até aqui calado e subalternizado em termos políticos: os povos originários.

A idéia de um nome próprio que abarcasse todo o continente se impôs a esses diferentes povos e nacionalidades no momento em que começaram a superar o longo processo de isolamento político a que se viram submetidos depois da invasão européia de seus territórios em 1492. Junto com Abya Yala, há todo um novo léxico político que também vem sendo construído onde a própria expressão povos originários ganha sentido. Essa expressão foi a que esses povos em luta encontraram para se auto-designarem e superarem a generalização eurocêntrica de povos indígenas. Afinal, antes da chegada dos invasores europeus havia no continente uma população estimada entre 57 e 90 milhões de habitantes que se distinguiam como maia, kuna, chibcha, mixteca, zapoteca, ashuar, huaraoni, guarani, tupinikin, kaiapó, aymara, ashaninka, kaxinawa, tikuna, terena, quéchua, karajás, krenak, araucanos/mapuche, yanomami, xavante entre tantos e tantas nacionalidades e povos originários desse continente.

Apesar de a expressão indígena significar, em latim, aquele que é “nascido em casa”, a designação entre nós ficou marcada por indicar aqueles que habitavam as Índias Ocidentais, nome que os espanhóis atribuíam não só ao “novo” continente, como também às Filipinas. A expressão indígena é, nesse sentido, uma das maiores violências simbólicas cometidas contra os povos originários de Abya Yala na medida em que é uma designação que faz referência às Índias. A expressão indígena ignora, assim, que esses outros povos tinham seus nomes próprios e designação própria para os seus territórios. A expressão povos indígenas ignora a differentia specifica desses povos, contribuiu para unificá-los do ponto de vista dos conquistadores/invasores. Mas também foi a partir dessa designação que, a princípio, se constituiu a unidade política desses povos, por si mesmos, quando começam a perceber a história comum de humilhação, opressão e exploração de sua população e a dilapidação e devastação de seus recursos naturais.

Abya Yala configura-se, portanto, como parte de um processo de construção político-identitário relevante de descolonização do pensamento e que tem caracterizado o novo ciclo do movimento dos povos originários. A compreensão da riqueza dos povos que aqui vivem há milhares de anos e do papel que tiveram e têm na constituição do sistema-mundo tem alimentado a construção desse processo político-identitário. Considere-se, por exemplo, que até a invasão de Abya Yala (América), a Europa tinha um papel marginal nos grandes circuitos mercantis que tinham em Constantinopla o seu principal centro mundial.

A tomada dessa cidade pelos turcos, em 1453, engendrou a busca de caminhos alternativos, sobretudo por parte dos grandes negociantes genoveses e que encontraram apoio político entre as monarquias ibéricas e na Igreja Católica Romana. Desde então, circuitos mercantis relativamente independentes no mundo passam a serem integrados, inclusive constituindo o circuito Atlântico com a incorporação do Tawantinsuyu (região do atual Peru, Equador e Bolívia, principalmente), do Anahuac (região do atual México e Guatemala, principalmente), das terras guarani (envolvendo parte da Argentina, do Paraguai, sul do Brasil e Bolívia, principalmente) e Pindorama (nome com que os tupis designavam o Brasil).

O caráter periférico e marginal da Europa era tal que a expressão orientar-se - ir para o Oriente - indicava a relevância do Oriente à época. Assim, é com a incorporação dos povos de Abya Yala e o seu subjugo político, juntamente com o tráfico e a escravidão dos negros africanos trazidos para este continente, que se ensejará a centralidade da Europa. Enfim, o surgimento do mundo moderno se dá junto com a construção da colonialidade. É de um sistema colonial que se trata, portanto. E é esse caráter contraditório inscrito no sistema mundo moderno, que procura olvidar o seu caráter também colonial, que os povos originários de Abya Yala vêm procurando explicitar na luta “pela liberação definitiva de nossos povos irmãos, da mãe terra, do território, da água e de todo patrimônio natural para viver bem”.

Deste modo, a descolonização do pensamento se coloca como central para os povos originários de Abya Yala. Vários intelectuais têm assinalado o caráter etnocêntrico inscrito nas próprias instituições, inclusive no Estado Territorial, cujo eixo estruturante está na propriedade privada e que encontra no Direito Romano seu fundamento. Apesar de sua origem regional européia, os fundamentos do Estado Territorial, inclusive a idéia de espaços mutuamente excludentes, como a propriedade privada, têm sido impostos ao resto do mundo como se fossem universais, ignorando as diferentes formas de apropriação dos recursos naturais que predominavam na maior parte do mundo, quase sempre comunitárias e não mutuamente excludentes.

Na América Latina, o fim do colonialismo não significou o fim da colonialidade. O caráter colonial das instituições que sobreviveram após a independência, ilumina a declaração de Evo Morales Ayma quando de sua posse na Presidência da República da Bolívia, em 2006, quando afirmara que “é preciso descolonizar o estado”. Para que não se pense que se trata de uma afirmação abstrata, registre-se que os concursos para servidores públicos naquele país eram feitos exclusivamente em língua espanhola, quando aproximadamente 62% da população pensam em quechua, aymara e guarani línguas que falam predominantemente no seu cotidiano. Em países como a Guatemala, Bolívia, Peru, México, Equador e Paraguai, assim como em certas regiões do Chile (no sul, onde vivem aproximadamente um milhão de Araucanos/Mapuches), da Argentina (Chaco norteño) e da Amazônia (brasileira, colombiana e venezuelana) o caráter colonial do Estado se faz presente com todo seu peso. O “colonialismo interno”, se mostra atual. Não raro essas regiões são objeto de programas de desenvolvimento, quase sempre de (des) envolvimento, de modernização, quase sempre de colonização (aliás, essas expressões, quase sempre, são sinônimas).

A escolha do nome Abya Yala, dos kuna, recupera a luta por afirmação dos seus territórios de que os Kuna foram pioneiros com sua revolução de 1925, consagrada em 1930 no direito de autonomia da Comarca de Kuna Yala com seus 320 mil e 600 hectares de terras mais as águas vizinhas do arquipélago de San Blas. A luta pelo território configura-se como uma das mais relevantes no novo ciclo de movimento dos povos originários que se delineia a partir dos anos oitenta do século passado (posição dos Miskitos com/contra a Revolução Sandinista na Nicarágua) e que ganha sua maior expressão nos anos noventa e inícios do novo século (Marcha pela Dignidade e pelo Território na Bolívia e no Equador, em 1990, e Levante Zapatista, em 1994), revelando mudanças profundas do ponto de vista político.

Nesse novo ciclo, ocorre um deslocamento da luta pela terra enquanto um meio de produção, para uma luta em torno do território. As grandes Marchas pela Dignidade e pelo Território de 1990 que foram mobilizadas na Bolívia e no Equador são marcos desse novo momento: “Não queremos terra, queremos território”, eis a síntese expressa num cartaz boliviano. Assim, mais do que uma classe social, o que se vê em construção é uma comunidade etnopolítica se constituindo como sujeito político.

No levantamento zapatista de 1º de janeiro de 1994, pela primeira vez na história, os povos originários começam a dar respostas mais locais/regionais a suas demandas. O protagonismo desse movimento tem sido importante na reapropriação dos seus recursos naturais como se pode ver em 2000, em Cochabamba, na Guerra del Água e, em 2005, na Guerra do Gás, ambas na Bolívia, mas também entre os araucanos/mapuche, no Chile, na reapropriação do rio Bio Bio ameaçado pela construção de hidrelétricas, ou ainda na luta contra a exploração petroleira no Parque Nacional de Yasuny, na Amazônia equatoriana, ou na fronteira colombio-venezuelana também na luta contra a exploração petroleira, entre tantos outros exemplos.

Esse movimento tem sido fundamental ainda na luta pela preservação da diversidade biológica, em grande parte associada à diversidade cultural e lingüística. A dimensão territorial desse movimento se mostra no seu protagonismo diante das novas estratégias supranacionais de territorialização do capital, como no caso do NAFTA, da ALCA e dos TLC (Tratados de Livre Comércio). O movimento zapatista explicitou melhor que qualquer outro esse sentido, ao fazer emergir o México Profundo, poder-se-ia dizer a América Profunda, exatamente no dia em que se assinava o NAFTA. O protagonismo do movimento dos povos originários também foi importante na luta contra a Alca e aos TLC que se seguiu à derrota da Alca. Como se vê, a luta pelo território assume um caráter central e numa perspectiva teórico-política inovadora na medida em que a dimensão subjetiva, cultural, se vê aliada à dimensão material – água, biodiversidade, terra.

TERRITORIO É NATUREZA + CULTURA. E a luta pelo território se mostra com todas as suas implicações epistêmicas e políticas. Quando observamos as regiões de nosso continente que abrigam a maior riqueza em biodiversidade e em água podemos ver o quão estratégicos esses povos são e tendem cada vez mais a ser diante das novas fronteiras de expansão do capital (Diaz-Polanco, Ceceña e Ornelas).

Abya Yala se coloca assim como um atrator em torno do que outro sistema pode se configurar. É isso que os povos originários estão propondo com esse outro léxico político. Não olvidemos que dar nome próprio é se apropriar. É tornar próprio um espaço pelo nome que se atribui aos rios, às montanhas, aos bosques, aos lagos, aos animais, às plantas e por esse meio um grupo social se constitui como tal constituindo seus mundos de vida, seus mundos de significação e tornando um espaço seu espaço – um território. A linguagem territorializa e, assim, entre América e Abya Yala se revela uma tensão de territorialidades.


Texto de Carlos Walter Porto-Gonçalves

domingo, 5 de julho de 2009

EL DESPERTAR DEL PUMARUNA

Em Chavin, um povo da América do Sul, vivia um menino chamado Tukano... Ele gostava de correr pelos templos e praças de seu povo, que eram adornados com esculturas de pedras com forma de animais e seres fantásticos. Habituou-se a “conversar” com as esculturas de felinos, águias, falcões e serpentes, como quem inventa histórias e contos. O menino sentia uma grande atração por aquelas figuras, embora algumas lhe causasse medo.

Um dia, Tukano foi muito cedo para o templo e passou o dia todo brincando com as esculturas. Pela primeira vez sentiu como se os animais tivessem vida, “ouviu” vozes e “sentiu” movimentos. Naquela noite, impressionado pelo que havia visto e ouvido no tempo, o menino teve um sonho... Apareceram as figuras da águia e do falcão e lhe disseram:

- Tukano, teu povo está em perigo. Será atacado por gente do norte. Têm que estar preparados.

No dia seguinte, acordou sentindo-se muito intranqüilo. De imediato foi ver o Xamã, que tinha grande sabedoria, se comunicava com os espíritos e curava as pessoas. O menino sabia que o Xamã podia ajudá-lo.

- Xamã – disse Tukano –, de noite sonhei que nosso povo vai ser atacado por homens de outros lugares, que provocarão uma grande guerra. Que devemos fazer?

- Não te preocupes – contestou o Xamã –, essa é o sinal dos espíritos que eu estava esperando.

- Mas, Xamã – insistiu Tukano, ainda muito inquieto –, como vamos nos defender?

- Mantenha a calma, Tukano – respondeu o Xamã –, tranqüiliza teu coração. Deixa isso em minhas mãos.

Então o Xamã reuniu todo o povo; fizeram um grande fogo e começaram a tocar tambores e outros instrumentos. O Xamã bebeu uma poção mágica e, usando uma máscara de jaguar, foi para o centro do grupo e começou a mover-se no compasso da música. De repente, jogou a cabeça prá trás, estufou o peito... e começou a dançar.

Tukano, com os olhos muito abertos, estava assustado. Era a primeira vez que assistia a essa cerimônia.

Enquanto isso, o Xamã continuava a mover-se, curvando os ombros para trás e o ventre para cima. Pouco a pouco sua pele foi mudando de cor, tornando-se amarelada e com manchas negras. Seu rosto começou a alterar-se: os dentes cresceram e sua mandíbula ficou mais protuberante, assim como sua musculatura tomou características ferozes. Os pés e as mãos tornaram-se patas de jaguar, com aquelas temíveis e afiadas guarras.

Tukano já não cabia em si de assombro. Finalmente o Xamã se transformou completamente em jaguar.

Quando Tukano viu o jaguar compreendeu que já não corriam nenhum perigo, porque agora era este felino quem os defenderia. Tukano, muito tranqüilo, entendeu que estavam a salvo. Nada nem ninguém poderia vencer o jaguar. Este era o animal mais forte, poderoso e feroz da Terra. Com sua velocidade e força poderia combater quem quisesse atacá-los.

O rugido do jaguar era a voz do trovão, e sua cor representava o poder do Sol na Terra. E foi o próprio Sol que lhe confiou que cuidasse e protegesse sua criação. Além disso, o jaguar tinha a habilidade de ver de noite, o poder de mover-se pelas cavernas, por baixo da terra e sobre sua superfície, e em árvores. Com esses poderes podia atuar como intermediário entre os Espíritos da terra e do céu, e vencer qualquer inimigo.

Mas Tukano também entendeu que seu sonho significava que ele seria o sucessor do Xamã. Compreendeu que a atração que sentia pelas esculturas do templo era um sinal de que os Espíritos o haviam escolhido e estavam se comunicando com ele. Que assim ele estava adquirindo poderes e sabedoria para comunicar-se com os Espíritos. E um dia, quando fosse grande, poderia ser ele o próximo xamã e transformar-se em jaguar.

Conto de Ana María Pavez Recart

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A cidade-templo de Chavín de Huántar é considerado o centro cerimonial mais antigo dos Andes, datando de 1.000 a.C. Ao que se sabe, foi onde começou o culto ao DEUS JAGUAR ou o PUMA SOLAR, que se espalhou por toda a América do Sul, inclusive no Brasil. Associado ao trovão e à chuva, é a divindade mais tradicional e popular em toda a Abya Yala.

Séculos mais tarde, a Cuzco foi construída na forma de um jaguar. No solsctício de inverno, pela posição geográfica da cidade em relação às montanhas que a cercam, sabiamente aproveitadas pelos Incas, o Sol ilumina gratativamente a cidade, começando pela "cauda" do Jaguar (noroeste da cidade) e percorrendo toda a "coluna vertebral" (chamada de PUMAKURKU) até chegar à "cabeça" - na fortaleza de Sacsayaman. Esse fenômeno era chamado pelos incas de EL DESPERTAR DEL HATUN PUMA!

Cuzco é, então, a CIDADE PUMA, representando o Puma Solar na Terra. Na época dos incas, o Solstício de Inverno era comemorado em Huacaypata - a praça principal de Cuzco que ficava exatamente no CORAÇÃO DO PUMA. Dessa praça - do coração do Hatun Puma - partiam quatro estradas que levavam aos "quatro cantos do mundo" ou Tawantinsuyo, como os incas chamavam seu país. Tudo nascia desse coração! Por isso, no dia do solstício, os senhores dos quatro cantos percorriam a estrada de volta à sua origem: Cuzco, o Umbigo do Mundo... a Cidade-Puma.

PUMARUNA - "HOMEM-PUMA"

quinta-feira, 2 de julho de 2009

AYNI KARPAY

RECONHEÇA-TE NOS DEMAIS
QUE SÃO VOCÊ MESMO.
RESPEITE AS DIFERENÇAS
EM INTEGRAÇÃO
E RECIPROCIDADE


O lugar foge a qualquer conceito e é chamado de Pórtico dos Andes. Fica bem no pé da Cordilheira, na puna argentina. Uma pequena comunidade de 800 pessoas, última parada antes de avançar pelas montanhas, no rumo da fronteira com o Chile. Tudo ali tem a cor da terra, até as gentes, de um marrom indescritível. Quase não há árvores. Encravado entre montes pedregosos, o povoado de Susques desafia a vida. O ar é rarefeito, afinal, está-se a 3.675 metros acima do nível do mar.

Susques não está nos roteiros turísticos. É conhecido apenas pelos caminhoneiros que precisam entrar na aduana, instalada ali, para acertar os papéis com os quais cruzarão o Paso de Jama, posto da fronteira. Passou quase a sua vida inteira - e é um povo antigo, milenar - sem luz elétrica. Essa novidade só chegou ao povoado - por 24 horas seguidas - há três anos. Mas, é ali que vive uma professora primária, que levou a sério essa “tal idéia” de integração latino-americana. Parece que na nossa América só os "pueblos chicos" compreendem a necessidade de um encontro verdadeiramente humano entre as gentes dos mais diversos países.

Gladis Contreras, que já passou dos 60 anos, deu aulas para a criançada de Susques até bem pouco tempo. Chegou ali jovenzinha, vinda de um povoado vizinho. Apaixonou-se, casou e nunca mais saiu. Agora está aposentada e cuida de uma pequena hospedaria, chamada de "La Vicuñita". Ela conta que, tão logo começou "essa onda" do Mercosul, decidiu aprender o português para, depois, poder ensinar aos alunos. Estudou por cinco anos a língua do maior país da América Latina. Confessa que tem dificuldades, pois não tem com quem praticar. Daí a alegria com que recebeu três brasileiras perdidas em busca do caminho dos Andes.

Gladis fez a sua parte na tentativa de compreender o “brasileiro”. Fala devagar, pronunciando bem as palavras. Tem um bom vocabulário e consegue compreender tudo. Mas, isso não é coisa comum. No mais das vezes, as gentes de fala espanhola têm bastante dificuldade de entender o português, assim como os brasileiros também patinam no entendimento do espanhol, embora, muitos, façam o esforço supremo de falar o que chamam de “portunhol”, buscando maior aproximação com os “hermanos”.

O certo é que, nas ruas, na vida dura das pessoas comuns, a integração se dá de forma natural. No jeito simples de cada um, inscreve-se o desejo de aprender sobre a vida do outro, uma ou outra palavra, busca-se o conhecimento sobre a geografia, os costumes. A comunicação vai fluindo, natural, dos mais variados jeitos. O encontro humano se faz. E, quando a gente parte, fica um pouco do Brasil. Assim como, na bagagem, levamos também algo do lugar, das gentes.

Já na vida acadêmica ou política tudo parece tão difícil. A integração que se pensa é só econômica, abertura para o comércio. A língua é banida, sendo sempre imposta a da maioria, sem qualquer respeito à diferença. Para se ter idéia, mesmo nos círculos ditos “progressistas”, as línguas “menores” são extirpadas, impedidas, barradas. A página da internet, Rebelión, por exemplo, muito conhecida por seu conteúdo de esquerda, deixou de publicar textos em português, sem que se saiba por quê. “Decisão do comitê de organização”, diz a página. No mundo do comércio há o império do inglês e até os líderes governamentais acabam falando o idioma gringo quando visitam países estrangeiros.

Poucos na América Latina fazem o que fez a Gladis Contreras, aparentemente perdida no povoado de Susques. Ela percebeu que uma integração não acontece por cima, deve, isto sim, começar na tentativa de compreender o outro, dando o devido espaço ao outro. Deve permitir que o outro apareça na sua diferença, que se explicite, que se diga na sua língua. Um e outro, tentando se entender. Um e outro aprendendo um do outro.

Naquele dia passado em Susques, aprendemos que a vida naquelas alturas é difícil. Que Gustavo, o filho de Gladis, insiste numa velha tradição plantando no quintal de casa a quínua – um cereal típico das culturas autóctones, quase em extinção – e, com ele, faz deliciosas receitas que comparte com sua gente. Aprendemos ainda que os homens do lugar ganham a vida nas salinas, no trabalho duro, na extração manual que extingue a saúde, que fere os olhos. Aprendemos que a palavra Susques (portal dos Andes) deriva do idioma quéchua, que o povo dali vivia do pastoreio e da agricultura e que, agora, já anda perdido de sua antiga forma de viver.

E foi ali, na entrada para a cordilheira, que, numa noite de chuva, premiadas com uma dor de dente e o mal das alturas, compartilhamos a vida, falando um pouco em português, um pouco em espanhol, trocando receitas, contando histórias. No meio da noite argentina, integrados, sem que para isso fosse necessária qualquer lei. Só o desejo, infinito desejo de compartir e compreender...


Texto de Elaine Tavares
Instituto de Estudos Latino-Americanos - UFSC