segunda-feira, 14 de novembro de 2011

WAJÃPI


Os Wajãpi são um povo originário, da família Tupi, que vivem atualmente na região entre os rios Oiapoque, Jari e Araguari, no Amapá.

Nos mitos de origem, os Wajãpi situam-se como uma etnia diferenciada dos outros povos por eles conhecidos: os brasileiros (karai-ku), os franceses (parainsi-ku) e os grupos indígenas vizinhos (Wayana-Aparai, Tiriyó, Karipuna, Galibi e Palikur). A tradição estabelece que, no tempo mítico, todos os povos viviam juntos e teriam sido separados pela intervenção do herói criador, Ianejar ("nosso dono"). Após esta separação, as outras etnias se distanciaram e, desde então, os Wajãpi consideram que habitam o "centro da terra". Ali, eles se dividiram em diferentes grupos que se reconhecem como "parentes".

A história dos Wajãpi nos últimos 250 anos corresponde à movimentação desse povo rumo ao norte, a partir do baixo rio Xingu, sua origem. Nos últimos 100 anos, essa migração os levou a abandonar os grandes eixos, como o rio Jari, para se instalar nas cabeceiras e nos afluentes dos rios Jari, Amapari e Oiapoque.

Em 1973, os Wajãpi do Amapari foram "contatados" por uma equipe de atração da Funai que preparava, naquela região, os trabalhos de abertura da rodovia Perimetral Norte (BR 210). Quando os trabalhos de construção da estrada foram interrompidos em 1976, o trecho final já penetrava por mais de 30 km a área indígena. A estrada, aliada a uma fiscalização inadequada, abriu as terras dos Wajãpi aos invasores: inicialmente caçadores de peles, depois garimpeiros e, mais recentemente, interesses de empresas de mineração, atraídas pelas importantes jazidas de ouro, cassiterita, manganês e tântalo da região. Ao mesmo tempo, crescia a pressão nos limites da área, na medida em que as margens da Perimetral Norte vinham sendo ocupadas por serrarias, fazendas e garimpos, alimentados pelos centros urbanos próximos (Serra do Navio, a 90 km da área indígena, e Macapá, a 370 km).



A partir dos anos 80, os Wajãpi assumiram expulsar, sozinhos, os invasores de seu território. Ao mesmo tempo, deram início a várias atividades de controle territorial e de diversificação do extrativismo na área tradicionalmente ocupada.

As dificuldades de subsistência nas aldeias super povoadas e as mais atingidas pela proximidade da rodovia Perimetral Norte e, consequentemente, pelo esgotamento dos recursos naturais, fez com que muitas famílias voltassem aos sítios de ocupação tradicional, em zonas distantes dos Postos da Funai, ou se dispersassem em pequenas aldeias situadas num raio de 5 a 20 km dos Postos. Atualmente, há 13 aldeias permanentes além de numerosos acampamentos dispersos em toda a extensão da área indígena.

Em 1990, o presidente da Funai interditou a Área Indígena Wajãpi, com 543.000 ha, nos municípios de Almerim, Mazagão e Macapá, no Amapá. Em 1994, iniciou-se, com apoio do governo alemão, no contexto do PPG-7, a autodemarcação da área indígena Wajãpi. Neste mesmo ano, foi fundado o Conselho das Aldeias Wajãpi, reunindo todos os chefes de famílias extensas, que escolheram sua diretoria . Esta associação é também denominada Apina, nome de um subgrupo da etnia lembrado pela sua valentia na guerra: eram os Wajãpi que "flechavam longe". Seus objetivos principais são garantir uma representação mais direta da comunidade junto às autoridades e buscar soluções para reorientar o relacionamento com as agências que atuam na área.

A vida cerimonial dos Wajãpi é intensa, marcada por grandes ciclos de rituais como a festa do milho (no inverno), a festa do mel e as danças dos peixes. Esses ciclos constituem-se em cantos ordenados, que nem sempre são conhecidos por todos, dando lugar a reuniões entre comunidades para participação na festa, com danças e cantos das músicas coletivas, acompanhadas de flautas de diversos tipos. Durante essas reuniões são distribuídas grandes quantidades de caxiri preparadas por uma ou duas mulheres, cujos maridos são os "donos" da festa.


Certas danças, como as do milho, a dos peixes e o ciclo do turé, contêm elementos rituais mais preeminentes. Dançam mais em momentos de crise, para agradar Ianejar, herói criador. Por outro lado, os rituais associados à maioridade das meninas são realizados no âmbito familiar e raramente dão lugar a festas coletivas.

A agricultura é uma atividade central na vida dos Wajãpi. A abertura das clareiras condiciona a localização das habitações permanentes e o ritmo dos deslocamentos sazonais; o produto das plantações, de curto, médio e longo ciclo, contribuem em praticamente 50% dos alimentos consumidos pelo grupo.

Os trabalhos agrícolas são realizados segundo técnicas tradicionais de queima e coivara; o uso de machados de ferro, aos quais os Wajãpi do Amapari têm acesso regular há apenas 30 anos, modificou, segundo eles, o tamanho das clareiras, sem alterar, porém, o ritmo dos trabalhos agrícolas. Queimar e limpar as roças são atividades coletivas, nas quais um chefe de família é ajudado por outros membros da comunidade, num sistema de mutirão denominado pusirõ. Na roça, as espécies cultivadas são plantadas sem ordem aparente. Há uma nítida ênfase para a mandioca brava, cujos sub-produtos – farinha, beiju, tapioca, tucupi e caxiri – constituem a base da alimentação.

Os outros produtos cultivados são o milho, a banana, o cará e a batata doce, cana de açúcar e frutas como caju, mamão, abacaxi, além da pimenta, amendoim e feijão. Os Wajãpi cultivam, ainda, o urucu, a cana para as flechas, o curauá, do qual obtêm fibras para cordas, o veneno de pesca, o algodão, cuias e cabaças. Para cada espécie, os Wajãpi possuem um número elevado de variedades: conhecem mais de quinze tipos de mandioca brava, dez tipos de batata, outros dez de cará, cinco de milho, etc.

A composição da aldeia Wajãpi não é constante: os membros do grupo local estão sempre em movimento entre as aldeias e as casas provisórias construídas junto às roças. Cisões políticas e reunião de membros de grupos distintos contribuem para a recomposição constante da população das aldeias, assim como surtos de doenças, mortes e problemas de invasões intermitentes do território por garimpeiros. O ciclo agrícola e o esgotamento da caça também influenciam o deslocamento dos Wajãpi por seu território.

A aldeia Wajãpi não apresenta formato característico, as casas estão dispersas no espaço limitado pelo igarapé ou pelo rio e pelas roças, deixando livre uma praça (okara) onde se realizam as atividades sociais e rituais.

Cada casa corresponde a uma família nuclear ou, em raros casos, a uma família extensa, abrigando em média 4 a 7 pessoas.

As casas do tipo tradicional são casas palafíticas construídas sobre estacas que podem chegar à altura de dois metros: tem-se acesso ao estrado por uma escada esculpida num tronco de árvore. A cobertura, em duas águas, é feita de folhas de ubim e palha preta. Atualmente elas vêm sendo substituídas por grandes construções baixas, sem paredes, ou ainda por simples tapiris de construção rudimentar e provisória. Além das casas de habitação, há também em todas as aldeias, na proporção de uma para duas ou três casas, construções que servem de cozinha, com jiraus, os pontos para o fogo e todos os instrumentos para o processamento da mandioca. Estas construções servem para várias famílias nucleares e nela se reúnem mães e filhas para a preparação dos alimentos.

Dados demográficos dos últimos 25 anos demonstram que os Wajãpi têm tido um crescimento populacional constante, sendo que a taxa de natalidade cresceu muito nos anos que se seguiram ao contato com a Funai, ocorrido em 1973. Nessa época, eles contavam, no Brasil, com 151 indivíduos. Quinze anos depois, somavam 310 indivíduos. Eram 498 indivíduos no Brasil (censo de 1994) e 412 na Guiana Francesa (censo de 1992), totalizando uma população de aproximadamente 910 pessoas.

Baseado em texto de Dominique T. Gallois, Antropóloga/USP

domingo, 13 de novembro de 2011

ESPIRITUALIDADE TUPI


No levantamento das religiões existentes no mundo não é comum a inclusão das religiões das sociedades indígenas, apesar de Emile Durkheim considerar a importância das mesmas: “[…] não são menos respeitáveis do que as outras. Elas respondem às mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel, dependem das mesmas causas; portanto podem perfeitamente servir para manifestar a natureza da vida religiosa”. Judaísmo, cristianismo, islamismo, budismo e hinduísmo são exemplos de grandes religiões, que possuem muitos adeptos, porque passaram por um longo processo de globalização. Existem, porém, numerosas outras religiões que ficaram à margem desse processo. É o caso das religiões das chamadas sociedades indígenas. No Brasil são muito numerosas e pouco estudadas. Capítulos ou informações esparsas sobre as crenças religiosas podem, também, ser encontrados nas diversas monografias sobre os índios brasileiros.

Não é nossa intenção, neste breve tra­balho, fazer um inventário das diferentes religiões indígenas do Brasil. O que pre­tendemos é utilizar, como exemplo, uma determinada religião que possibilite ao leitor entender algumas das características dos sistemas de crenças existentes entre os índios do Brasil. Utilizaremos, ainda que de maneira parcial, o exemplo tupi-guarani, entre outras razões pelo fato de que três dessas sociedades foram objetos de nossos estudos.

Quando Durkheim procurou descrever as formas elementares da vida religiosa das “sociedades primitivas”, encontrou o seu modelo nas religiões totêmicas do conti­nente australiano. No Brasil, a equivalência encontra-se nas religiões xamanísticas. Segundo Mircea Eliade (1994), desde o princípio do século XX, “os etnólogos adotaram o costume de empregar indistin­tamente os termos xamã, homem-médico, feiticeiro ou mago, para designar deter­minados indivíduos dotados de prestígio mágico-religioso e reconhecidos em todas as ‘sociedades primitivas’ ’’.
A palavra xamã é originária de um povo siberiano, os tungus. Eliade restringiu o uso do termo aos especialistas do religioso que acreditam, através do estado de transe, entrar em contato com seres sobrenaturais, sejam eles as almas dos seus antepassados ou diferentes tipos de espíritos. Este é o caso da maioria dos líderes espirituais in­dígenas. A palavra tupi-guarani que, entre nós, designa o xamã é pai’é, grafada em português como pajé.

Embora exista uma surpreendente uniformidade nos procedimentos dos xamãs, ocorre uma grande diversidade de expli­cações para o surgimento dos mesmos. Em alguns casos, a explicação é a here­ditariedade, ou seja, somente podem ser xamãs os descendentes de um outro. No caso tupi-guarani, o fator hereditário não é necessário. Acredita-se que se trata de um dom que deve ser descoberto e desenvolvido através do aprendizado. Entre os assurinis, do Rio Tocantins, constatamos a existência de um ritual denominado opetimo (literalmente: comer fumo) que tem como objetivo identificar, entre os jovens, aqueles que têm o potencial de se transformar em um pai’é. Entre cantos e danças, os candidatos fumam um grande charuto de tabaco, engolindo a fumaça. Os que se sentem mal, ou seja, têm ânsia de vômitos, são descartados. Os que desmaiam são os escolhidos. “Omano”, grita o pai’é oficiante do ritual, ou seja: “ele morreu”. É “morrendo” que se faz a viagem para o outro mundo, o que torna possível o contato com os antepassados.

A maior parte do trabalho dos xamãs consiste em efetuar curas através do controle dos espíritos que provocam as doenças e, até mesmo, a morte. O texto seguinte descreve como uma cura é efetuada:

“Os pajés preferem curar à noite, uma das razões é que assim garantem uma audiência, o que seria difícil durante o dia, quando muitos estão para as roças. O pajé inicia a cura cantando as canções daquele sobrena­tural que o seu inquérito leva a considerar como provável. Acompanha a si mesmo, marcando o ritmo da canção como uma batida forte de pé chacoalhando o maracá. Dança em volta do paciente; em geral, a família deste e alguns dos circunstantes o acompanham. A esposa ou um ajudante preparam-lhe os cigarros feitos de folhas de fumo enroladas em fibra de tawari. Um ajudante toma o maracá e o pajé preocupa-se daí por diante com a cura propriamente dita. Chupa repetidas vezes no cigarro para soprar a fumaça em suas mãos ou no corpo do paciente. Afasta-se para um lado e chupa no cigarro até que, meio tonto, recua de súbito e leva as mãos ao peito, o que indica ter recebido o espírito em seu corpo. Sob a influência do espírito o pajé comporta-se de maneira peculiar. Se é es­pírito de macaco, por exemplo, dança aos saltos, gesticula e grita como esse animal. O transe se prolonga enquanto o espírito está forte. Algumas vezes o espírito ‘vem forte demais’ e ele cai ao chão inconsciente. É durante o transe, enquanto está possuído pelo espírito, que o pajé cura” (cf. Wagley & Galvão, 1961).

É comum que o xamã chupe uma parte do corpo do paciente e, em seguida, mostre um pequeno objeto, que teria retirado de dentro do mesmo. No caso tenetehara, relatado acima, o pajé escondia esse objeto dentro da mão para fazê-lo desaparecer depois.

É na direção dos rituais coletivos que o xamã demonstra o seu prestígio junto ao grupo. Gostaríamos de descrever um ritual a que assistimos entre os suruís, do sudeste do Pará. O Ahiohaia ocorre na primeira lua cheia, depois da queimada da roça. A providência inicial para a sua celebração é o erguimento de uma casa cerimonial no centro do pátio da aldeia. Ela é toda fechada com folhas de palmeira tendo apenas uma pequena porta. Essa casa, que recebe o nome de tokasa (esta mesma palavra significa “tocaia”), é a representação da itakuara (literalmente “buraco na pedra”, caverna onde vivem os karuara). Enquanto durar a lua cheia, os homens, devidamente pintados com tinta de jenipapo, participam de uma dança que se realiza desde o nascer do sol até cerca de duas horas mais tarde. Recomeçam ao entardecer, com a mesma duração, até o pôr-do-sol. Nesse período é interditado aos participantes deixar a aldeia, por qualquer motivo, não podendo banhar-se nos ria­chos e principalmente entrar na floresta. Somente determinadas pessoas podem participar da caça e ir ao igarapé buscar a água necessária, inclusive, para o banho dos participantes. Acredita-se que o xamã, além de atrair os karuarauma variedade de seres sobrenaturais –, atrai também as almas dos antepassados das pessoas pre­sentes no ritual. De fato, uma das canções entoadas no início do ritual possuía um estribilho que era precedido pelos nomes de todos os antepassados que ainda constam da memória do grupo. No final do ritual, a casa é desmanchada e o material jogado bem longe no mato.

A enorme dispersão dos povos tupi-guaranis por uma imensa área geográfica, conjugada com um longo isolamento, pro­vocou diferentes transformações em seus sistemas de crenças. Procuramos, neste trabalho, acentuar mais as semelhanças do que o contrário. Mas é preciso alertar o leitor que em muitos pontos ainda existe, por parte dos diversos pesquisadores, uma incompre­ensão do sistema religioso, o que demanda mais pesquisas. Um desses pontos refere-se à noção de alma. Em sua denominação mais usual, provavelmente referindo-se apenas à alma de um homem vivo, o termo utilizado é owera. Uma outra denominação refere-se aos espíritos dos mortos, asonga. Entre os kaapor, a palavra utilizada para este caso é anhang, que freqüentemente é traduzida como “diabo”. Diferentemente dos karoara, que são espíritos independentes dos homens, os asonga interferem nos sonhos dos vivos, perambulam pela floresta, podem ser vistos, tornando doente quem tiver a infelicidade de encontrá-los. Mas não vagam eternamente pelo mundo: ao contrário, a sua permanência é curta e um dia atingem o “céu”, através da itakuara. Lúcia Andrade (1992), que trabalhou entre os assurinis do Tocantins, obteve as informações que esclarecem a confusão entre owera e asonga: “[o pajé] aprende as canções nos sonhos com os mortos, com seus espectro-terrestres, denominados asonga. Ao morrer, o ser hu­mano divide-se em espírito-celeste (que se dirige à aldeia dos mortos e com o qual não se tem mais contato) e em espectro-terrestre, que vive na mata e ronda a aldeia […]. Há uma clara identificação entre o asonga e a personalidade do morto; não se trata de uma manifestação repetitiva e impessoal. Os laços de parentesco e amizade parecem inclusive perpetuar-se”.

Utilizamos a palavra “céu” para indicar o local onde vivem as almas dos antepassados e o herói mítico e principal ancestral, Mahyra. Existem divergências a respeito desse local: os suruís e os assurinis referem-se a uma região acima das nuvens, a que se chega através da itakuara. Os guaranis preferem se referir a uma “terra sem males”. Nimuendaju colheu uma descrição entre os apopokuvas: “Perto da casa de Mahyra está uma grande aldeia. Seus habitantes vivem magnifica­mente. Para seu sustento diário necessi­tam apenas de algumas pequenas frutas semelhantes à cuia: ela se planta e se colhe sozinha. Mahyra e seus companheiros no campo de ikawéra têm o nome de karoara. Quando envelhecem não morrem, mas tor­nam-se novamente jovens. Cantam, dançam e celebram festas sem cessar”.

É difícil definir o que sejam os karoara. Wagley e Galvão (1961) concordam em parte com Nimuendaju: “Os Tenetehara se referem aos sobrenatu­rais pela designação genérica de karoara, porém os distingue pelo menos em quatro categorias: criadores ou heróis culturais (Mahira, Mukwani, Tupã e Zurupari); os donos das florestas, das águas e dos rios (Ywan, Maranaywa); os azang, espíritos errantes dos mortos; e os espíritos de animais (piwara)”.

A nossa interpretação, resultante de tra­balhos entre suruís e assurinis, nos levou a considerar os karoara como espíritos espe­ciais que podem causar doenças ou mortes. Nas situações de cura, os pai’é os retiram do corpo do doente, podendo também fazer o mesmo com os asonga. Entretanto, outros pesquisadores chegaram a conclusões diferentes. Lúcia Andrade considera que o karoara é uma espécie de força através da qual o pai’é recebe a sua força, desde que ela lhe tenha sido transferida pelo espírito-onça. Segundo Andrade (1992), “possuir a força implica em responsabilidade e perigo. Caso uma série de cuidados não sejam observados o karoara pode matar o seu próprio dono, ou ainda outros indivíduos”. Compete aos pai’é retirar dos homens o karoara, quando este ameaça a sua integridade. É semelhante a explicação de Antônio Carlos Magalhães (1994), que estudou os parakanãs do Tocantins, com a diferença que, nesse caso, o karoara aparece mais como uma força negativa. Em todo caso, torna-se necessário um estudo comparativo mais aprofundado sobre o tema.

Pelo texto acima, o leitor tomou conhe­cimento da existência de um ser sobrenatu­ral superior: Mahyra. Ele é a personagem central de um equívoco que data de cinco séculos: no século XVI, os jesuítas procu­raram descobrir uma entidade sobrenatural que pudesse ser comparada ao Deus cristão a fim de facilitar a catequese. E tudo indi­ca que foi Nóbrega quem fez a escolha: “Esta gentilidade nenhuma coisa adora, nem conhece Deus, somente aos trovões chamam de Tupan; que é como quem diz coisa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pai Tupan”. Não há dúvida que a adoção dessa palavra, com esse sentido, constituiu em mais uma dificuldade para as missões jesuíticas. Em 1914, Nimuendaju criticou essa atitude dos missionários e demonstrou o pequeno papel ocupado por Tupã na cos­mogonia indígena.

De um modo geral, Tupã poderia ter sido melhor definido como um espirito temido por controlar o raio e o trovão e, assim, conseqüentemente, a morte e a destruição. Dessa maneira os sentimentos indígenas para com essa entidade são mais de medo do que veneração. Durante a nossa permanência entre os kaapor, por ocasião de uma tempestade, acompanhada de muitos trovões e raios, os índios abandonaram as suas casas, armados de arcos ou rifles, e fizeram vários disparos contra o céu, acom­panhando esses gestos com imprecações raivosas, numa tentativa de dissimular o medo que Tupã lhes inspira. Quando a natureza se acalmou, um deles voltou para casa para guardar o seu rifle, e me disse sorrindo: “Tupã zangado muito”.

Uma melhor comunicação entre os tupis e os jesuítas teria ocorrido se estes tivessem dado atenção às palavras de frei André Thevet (1941): “Os selvagens fazem menção a um grande senhor, chamando-lhe em sua língua de Tupã, o qual, dizem, lá no alto troveja e faz chover; mas de nenhum modo sabem orar ou venerar, nem tem lugar próprio para isto. E se alguém lhes fala de Deus, como o fiz, escutam admirados e atentos, perguntando se o Deus que se fala não seria talvez o profeta que lhes ensinou a plantar essas grossas raízes, chamadas por eles de hetich [mandioca]”.

Thevet referia-se a Mairemonan, o herói mítico dos tupinambás, que lhes ensinou a plantar, utilizar o fogo, fabricar instrumentos, além de fornecer-lhes as normas de seu comportamento social, sendo considerado como o grande ante passado dos tupis. Os tupis da Amazônia o chamam de Mahyra, Bahira, Maira ou Mair. Do ponto de vista antropológico ele pode ser definido como um herói civilizador, desde que os tupis não têm a idéia de um ser supremo, eterno e criador de todas as coisas, como o Deus cristão. Na mitologia kaapor, Mahyra saiu de um pé de jatobá, em um mundo calcinado por um grande incêndio, plantando novamente tudo o que o fogo queimou. O seu grande feito foi a criação do povo tupi. Tudo começou quando, recém-saído do pé de jatobá, sentiu o desejo sexual. Encontrou, então, uma fruta que lhe lembrou o órgão sexual feminino. Transformou a fruta em uma mulher, com quem teve relações sexuais e gerou dois gêmeos: Kwarahi, o Sol, e Yahy, Lua (para os tupis, Sol e Lua são do gênero masculino). Mahyra, como vimos, não é eterno, mas imortal. Quando envelhece, “faz como as cobras e as aranhas, troca de pele e fica novo novamente” (Ribeiro,1974).

Uma das funções de um sistema de crença é ser explicativo. Se Mahyra é imortal, por que não o são os seus descendentes? A resposta está contida na continuação do mito da criação. Após ter criado a primeira mulher – nenhuma variação do mito faz menção ao seu nome – ele construiu uma casa e plantou toda uma roça de milho. No dia seguinte, ordenou que a mulher fosse colher o milho. Esta retrucou que não havia tempo suficiente para o milho ter crescido, o que não era verdade. O herói ficou furioso com esse comportamento e partiu para o outro mundo, deixando na terra a sua mulher, grávida dos seus dois filhos. Coube a Kwarahi e Yahi continuar a obra civilizadora de seu pai, transformando os homens de seres da natureza em seres culturais.

Os primeiros homens misturavam-se com os animais, estes falavam como os homens, tinham casas e usavam arma. Uma variante xinguana fala de relações sexuais entre homens e animais. O próprio Mahyra, em uma variante tenetehara, desconfia que Yahi não é seu filho, mas de Mukura (gambá). Foi Mahyra o autor do primeiro ato civilizatório, ao roubar o fogo dos urubus e entregá-lo aos homens. Os gêmeos, seus filhos, tomaram as armas dos animais, destruíram suas casas e roças, dizendo-lhes: “Vocês não são mais gente agora” (cf. Schaden, 1947).

Em todas as religiões indígenas, não se pode esperar uma estrutura que funcione dentro de uma lógica que é nossa. Os tupi guaranis se consideram descendentes de Mahyra, mas não têm uma genealogia mítica para tornar clara essa descendência. Não se preocupam mesmo em explicar com quem os gêmeos, do sexo masculino, se casaram para dar continuidade à estirpe de Mahyra. Ao contrário do texto bíblico que explica que Caim teve que buscar uma esposa ao “leste do Éden”, o mito tupi omite essa informação. Em todo caso, imaginam que outras mulheres deveriam existir, porque o que Mahyra fez foi, apenas, criar os tupis. O mundo já existia antes dele, que saiu de um pé de jatobá em uma terra destruída por um grande incêndio. Mas não é importante saber quem são as mulheres em uma sociedade fortemente patrilineal, pois os filhos descendem apenas do pai. É por tudo isso que até hoje os kaapor exclamam ao verem uma estrela cadente deslocando pelo céu: “Lá vai Mahyra, o nosso avô!”.

Texto de ROQUE DE BARROS LARAIA - da UCG e da UnB.