A história do Brasil começa oficialmente em 22 de
abril de 1500, quando a esquadra de Pedro Álvares Cabral ancorou na baía de
Cabrália tomando posse destas terras em nome da Coroa Portuguesa.
Oficiosamente, entretanto, o primeiro a descobrir o Brasil foi o navegador
Vicente Yanes Pizon no ano de 1499. E como a história depende de documentos
escritos, é também em 1500 que começa oficialmente a história dos índios que
vivem no Brasil. História esta que já começa sendo contada pelos portugueses,
pois os índios eram ágrafos.
O primeiro documento escrito relatando a existência
dos nativos é a Carta de Pero Vaz Caminha a El Rey D. Manuel. A primeira
referência de Caminha ao gentio da terra é a seguinte: “E dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, obra de sete
ou oito, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro”. O
documento revela que antes mesmo de desembarcarem os navegantes tomaram
conhecimento de que a terra era habitada. Em seguida, a Carta relata
detalhadamente o desembarque e o primeiro contato entre e o europeu e o
ameríndio.
O primeiro ato português constituiu-se, portanto,
na primeira violência contra os povos que habitavam a terra. É claro que as
nações indígenas não conheciam o conceito de posse legado aos portugueses pelos
romanos, mas estavam há séculos ligados à terra de seus ancestrais. Niéde
Guidon informa que a ocupação humana do Brasil data de mais de 12.000 anos, a
população densa no nordeste de 8.000 anos. Depois de tanto tempo de ocupação do
solo, pode-se concluir que os índios tinham direito natural à posse terra que
habitavam.
Mas se os nativos desconheciam semelhantes
sutilezas teóricas, os portugueses conheciam-nas muito bem. Logo, ao avistá-los
poderiam concluir que aqueles homens tinham a posse da terra. Apesar disso
desembarcaram sem pedir autorização e se assenhoraram do alheio. Como o ato de
Cabral e seus marinheiros não encontra legitimação no direito natural pode ser
equiparado a uma verdadeira declaração de guerra. No entanto, como a história
foi contada pelos invasores segue-se que acreditamos que as coisas se deram de
maneira muito diferente. Na verdade a história do Brasil é a um só tempo a
história da guerra de conquista movida pelos portugueses contra o gentio da
terra e da reação deste ao avanço do invasor ultramarino.
Na guerra vale tudo, principalmente a mentira. E os
portugueses souberam empregá-la desde o início. Na sua Carta, Caminha informa
El Rey que os índios “não lavram, nem
criam”. Niéde Guidon relata que a agricultura é praticada no Brasil há
4.000 anos; em todo território nacional há pelo menos 2.000 anos. Portanto, ao
contrário do que escreveu o cronista, os índios lavravam sim e há muito tempo.
Através de inverdades como a registrada pela pena de Caminha os portugueses
criaram a imagem do índio preguiçoso, indolente, desleixado, que ainda hoje combatemos.
Foi assim que o europeu conferiu à sua guerra de conquista um caráter diferente:
civilizatório. E agora que completamos mais de meio milênio de história desta
guerra movida aos índios, chegou a hora de desmascararmos sua versão ideológica
mostrando o que realmente ocorreu.
Além da mentira, os portugueses recorreram
sistematicamente ao uso da força. Já em 24/02/1587 foi promulgada uma Lei
tornando obrigatória a presença de missionários junto às [tropas] de
descimentos. Tropas como? Se não estavam em guerra com os índios, porque os
portugueses precisavam de tropas?
Os descimentos constituem um episódio importante da
história desta guerra de conquista. Consistiam no deslocamento dos povos
indígenas do sertão para aldeamentos junto aos portugueses. Aqueles que
resistissem ao convencimento pacífico acabavam sendo conduzidos (descidos) a
força. Segundo a legislação da época, as tropas só poderiam usar a violência em
caso de guerra justa. Beatriz
Perrone-Moisés informa que a recusa à conversão ao catolicismo, a prática de
hostilidades aos vassalos de El Rey e quebra dos pactos eram motivos suficientes
para a declaração de uma guerra justa.
Do exposto, pode-se concluir que a violência
praticada pelos portugueses tinha duas faces. Uma pacífica, outra terrível.
O descimento e a conversão ao catolicismo eram
quase compulsórios. Os índios deviam abandonar suas terras e tradições ou estas
em virtude de abandonar aquelas. Assim, sob o epíteto de convencimento pacífico
esconde-se a verdadeira face dos atos praticados pelos invasores. O descimento
e a conversão privava os índios a um só tempo do seu espaço físico e da sua
liberdade de consciência. E isto é sem dúvida alguma uma violência. Pacífica,
mas sempre violência.
Os regulamentos determinavam que os aldeamentos
deveriam preservar a unidade étnica. Tribos com línguas e culturas diferentes
deveriam ficar em aldeamentos distintos. Como várias outras, esta norma nasceu
morta. Desde o início os portugueses promoveram aldeamentos pluriétnicos,
forçando tribos com diferentes línguas e culturas a conviverem num mesmo espaço
territorial. Miguel Menéndez assevera que em 1716 uma parte dos índios Tora foi
aldeada no Rio Abacaxis junto com contingentes de diversos grupos; em 1827 foi
fundada uma missão na margem esquerda do Rio Madeira com índios Mura,
Munduruku, Arara e Arupa. O aldeamento pluriétnico foi uma das maneiras mais
eficientes que os portugueses – e depois os brasileiros – empregaram para
destruir a identidade cultural dos povos indígenas a fim de dominá-los mais
facilmente.
Caso reagissem, os índios teriam que enfrentar as
tropas de El Rey. Neste ponto, devemos ressaltar a desequilíbrio militar que
existia entre o invasor e o nativo. Quando aportaram em Cabrália, os
portugueses já dominavam o aço e a pólvora. Os índios, por sua vez, empregavam
armas de madeira e pedra. Assim, a superioridade bélica garantia a pacificidade
dos descimentos ou a vitória esmagadora em caso de conflito.
A rapidez com que se deu o processo de colonização
no Brasil demonstra como os portugueses foram eficientes ao eliminar seus
inimigos. Aliás, como assinala Beatriz Perrone-Moisés: “Tudo leva a crer que muitos desses inimigos foram construídos pelos
colonizadores cobiçosos de obter braços escravos para suas fazendas e
indústrias”.
Os índios descidos pacificamente podiam trabalhar
livremente para os portugueses e para as missões. Os índios aprisionados nas
guerra justa eram reduzidos à condição de escravos e obrigados a servir os
colonizadores. Mas as coisas não se deram exatamente como previsto nos
regulamentos.
Beatriz Perrone-Moisés cita diversos textos legais
promulgados para regulamentar o trabalho dos índios livres. Eles tinham direito
a remuneração e a retornar aos aldeamentos após certo tempo de trabalho. Todavia,
a autora esclarece que “a liberdade é
violada, o prazo estipulado desobedecido e os salários não são pagos; há vários
indícios de que os índios das aldeias acabavam ficando em situação pior do que
os escravos: sobrecarregados, explorados, mandados de um lado para outro sem
que sua vontade exigida pelas leis, fosse considerada”.
E por falar em missões, um dos maiores engodos da
história do Brasil é o propósito religioso da colonização. As missões
religiosas tiveram duas finalidades bem claras no processo de colonização. A
primeira foi privar os índios de sua identidade cultural através da conversão
facilitando o trabalho do colonizador. A segunda foi meramente econômica.
Philippe Erikson esclarece que o quinhão das missões era estabelecido a partir
do índice de fiéis convertidos e isto acarretava conflito entre as diversas ordens
religiosas. Ao estabelecerem-se no Brasil elas tinham interesses claramente
financeiros.
A economia foi a mola mestra de todo o sistema
colonial, inclusive no que se refere à penetração religiosa. O sistema todo era
muito simples. As tropas realizavam os descimentos liberando as terras para os
colonizadores e fornecendo mão de obra livre e escrava para os interessados
(leigos e clérigos). Os religiosos ajudavam a pacificar os índios através da
conversão e ganhavam em decorrência desta e do trabalho dos indígenas nas
missões. Os índios, estes sempre perdiam. Perdiam a terra, a cultura, a língua,
a força de trabalho e a capacidade de reagir. E se reagissem perdiam a
liberdade e a vida nas "guerras justas".
A propósito devemos desfazer um mal entendido. Como
vimos, o colonizador considerava justas a guerras movidas às tribos hostis aos
vassalos de El Rey. Entretanto, foram os portugueses que invadiram o Brasil e
violaram o direito natural dos índios à posse da terra de seus ancestrais. Ao
defender a integridade de seus territórios, os índios defendiam apenas o que
lhes pertencia. Assim, as hostilidades que praticavam é que eram justas e não
as guerras lhes movidas pelas tropas de El Rey. Mas o agressor é que definiu a
guerra e escreveu a história de sorte que aprendemos o conceito de "guerra
justa" tal como ele legou-nos.
Além da violência cultural e militar, a partir da
chegada do europeu o gentio da terra teve que combater outros inimigos mais
insidiosos: as doenças trazidas do Velho Mundo pelo colonizador. Manuela
Carneiro da Cunha relata que. As epidemias são normalmente tidas como a
principal agente da depopulação indígena. A barreira epidemiológica era, com
efeito, favorável aos europeus na América e era-lhes desfavorável na África. Na
África os europeus morriam como moscas; aqui os índios é que morriam: agentes
patogênicos da varíola, do sarampo, da coqueluche, da catapora, do tifo, da
difteria, da gripe, da peste bubônica, possivelmente da malária, provocaram no
Novo Mundo o que Bobyns chamou de “um dos
maiores cataclismos biológicos da humanidade”. Nem mesmo neste caso devemos
minimizar a culpa dos colonizadores. Com efeito, o que possibilitou a alta taxa
de mortandade indígena foram os aldeamentos superpopulosos construídos pelos
portugueses através dos descimentos. Diversos autores assinalam que os índios
morriam como insetos nestes aldeamentos, que os descimentos eram contínuos e
foram praticados até o final do período colonial. Assim, os portugueses foram
sem dúvida alguma responsáveis diretos pela hecatombe dos índios através da
contagio por doenças para as quais eles não tinham defesas naturais.
Os ecos desta política ainda se fazem sentir nos
dias de hoje. Assim como o processo de aculturação. Só que agora ele é uma
conseqüência da exposição das comunidades indígenas à nossa cultura de massa. A
dependência dos produtos industrializados se tornou a maior fonte de
desagregação das tradições tribais. Foi o que ocorreu no caso dos Kaiapós.
Terence Turner relata que os Kaiapós abandonaram
suas tradições tribais em razão do aumento dos conflitos intra e intergrupais
motivados pela necessidade de objetos industrializados. Originalmente hostis, a
partir de 1950 os contingentes Kaiapós foram sendo pacificados. Entretanto,
antes mesmo da pacificação já haviam modificado sua forma de organização social
para fazer face à nova realidade imposta pelos conflitos desencadeados para a
obtenção de armas e outros utensílios. Como frisa “a pacificação” não marcou, portanto, o início da dependência
político-econômica dos Kaiapós em relação aos brasileiros, mas uma modificação
na forma política desta dependência.
Quanto à terras, as comunidades remanescentes
continuam perdendo-as. A única diferença é que o processo de espoliação e a
guerra de conquista territorial sofisticaram-se. A demarcação não ocorre ou
ocorre com uma lentidão exemplar. Enquanto isto, as terras dos índios são
sistematicamente ocupadas por madeireiros, fazendeiros e empresas de mineração.
Sempre com a conivência das autoridades. As quais, diante do fato consumado,
alegam que não podem fazer nada. O Ministério Público e o Poder Judiciário se
calam... e os índios continuam perdendo uma batalha após a outra.
Nesta guerra suja, feita sob o estandarte da
cristandade e com o auxílio militante da Igreja Católica, nem mesmo o número de
vítimas indígenas é conhecido. Mas elas foram muitas. Provavelmente alguns
milhões de índios tombaram nestes cinco séculos de conquista do território pelo
europeu e seus descendentes. Manuela Carneiro Cunha estima a população indígena
em 1.500 na casa dos milhões de habitantes e em 200 mil na atualidade. Sem
dúvida alguma estamos diante de um dos maiores genocídios da história da
humanidade.
Até mesmo a 8ª arte entrou na guerra contra os
índios da América Latina. Há alguns anos foi lançado um filme tratando da vida
de Fitzcarraldo. Nas telas do cinema ele apareceu como um louco que conseguiu a
cooperação dos índios para transportar um barco de um rio para outro através da
selva. Klaus Kinsky esteve soberbo no papel do herói... Herói? O Fitzcarraldo
que perambulou pela Floresta Amazônica no final do século XIX foi um
aventureiro violento e inescrupuloso. O texto de France-Marie Renard-Casevitz
registra que Fitzcarraldo dava armas aos Cunibo que deviam pagar em escravos
Kampa, depois armava os Kampa para que estes pagassem em escravos Cunibo (ou
outros). Usando esta técnica, ele conseguiu uma verdadeira milícia armada e um
contingente muito grande de escravos para tentar romper o istmo entre o Ucayali
e o Madre de Diós transportando barcos através de trilhos de trem. Os relatos
registram torturas, mutilação de mulheres que se recusavam à concubinagem e
tinham as feridas cobertas de pimenta, seres humanos incendiados vivos para
iluminar os banquetes campestres de Fitzcarraldo. Mas nada disso foi objeto de
preocupação dos cineastas que realizaram o filme. Acabamos ficando com a imagem
do herói louco, do visionário.
A partir do momento em que a sociedade envolvente
se tornou esmagadoramente maior (200 milhões de brasileiros para 200 mil
índios), já não há necessidade de tropas, descimentos ou missões. O simples
contato se encarrega de fazer os índios progressivamente perderem sua
identidade. Mas somos otimistas. Nos próximos 500 anos certamente o problema
será resolvido. As demarcações não serão mais necessárias, porque não haverá
mais aldeamentos indígenas, nem índios. Enfim a guerra do Brasil aos legítimos
possuidores desta terra terá chegado ao fim e o país será finalmente
pacificado. Só então talvez olharemos para trás e lamentaremos nossa própria
barbárie.
Texto de Fábio de
Oliveira Ribeiro