segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

HANAQ PACHAP KUSIKIYNIN - canção andina colonial


O “HANAQ PACHAP KUSIKUYNIN” é um hino cristão. Embora seu texto seja originalmente em quéchua, estilisticamente é claramente calcado na tradição musical européia. Apareceu primeiro como apêndice ao manual de culto de um religioso, para ser cantado nos dias de festas litúrgicas que celebravam a Virgem Maria. Para os nativos, porém, passou a evocar também deidades andinas, o que pode ser chamado “ambigüidade estratégica”, fenômeno semelhante ao que se dá no “Llama Michiq”, só que deforma bem mais sofisticada.

O “Hanaq Pachap” está incluído no “Ritual, Formulario e Institución de Curas para Administrar a los Naturales com Advertenciasmuy Necesarias”, do sacerdote franciscano de Andahuaylillas, Juan Pérez Bocanegra, publicado por Geronymo de Contreras, no Convento de Santo Domingo, em 1631. Nessa edição, o hino traz a seguinte informação: “va compuesta en música a quatro vozes, para que la canten los cantores, al entrar a La Iglesia”. Como já se disse, estava escrito em quéchua. Não trazia qualquer tradução para o espanhol, vinha no final do Ritual Formulario, e foi definido por Pérez Bocanegra como para ser cantado durante a processional dos cantores. De acordo com Stevenson, essa é a mais antiga obra polifônica vocal publicada na América, composta num estilo que, excetuando-se a língua, não traz nenhum sinal de proveniência andina. Bocanegra, para alguns o provável autor do hino (embora haja grande controvérsia sobre esse fato), ensinava gramática latina na Universidade de San Marcos, em Lima, atuava como cantor na catedral de Cuzco, foi o revisor do livro do coro, e ainda era sacerdote numa das igrejas da cidade de Cuzco, antes de assumir a posição de consultor-geral de quéchua e aymara para a diocese de Cuzco, ou de pároco de Andahuaylillas (província de Quispicanchi), uma vila ao sul de Cuzco.

Pérez Bocanegra era um estudioso da cultura quéchua, e seu manual revela uma profunda familiaridade com a vida andina. Inclui informações sobre interpretação de sonhos e outras formas de adivinhação, de práticas de casamentos entre os nativos... Franciscano da Ordem Terceira, Bocanegra envolveu-se em longa disputa jurisdicional com os jesuítas que cobiçavam sua paróquia para torná-la centro de treinamento da língua quéchua para missionários, semelhante ao centro de treinamento da língua aymara que eles já haviam estabelecido em Juli. O Ritual Formulario foi publicado durante um período no qual os jesuítas tinham algum controle sobre sua paróquia, o que também se vê refletido em suas preocupações e recomendações práticas anotadas no Ritual.

Para compreendermos algo sobre a disputa entre Bocanegra e os jesuítas que dominaram o Concílio de Lima de 1583, basta observar que estes recomendavam que os sacerdotes ouvissem regularmente as confissões dos seus fiéis, e ordenavam veementemente que confessassem necessariamente toda a comunidade; Bocanegra explicitamente desencorajava tal prática. O III Concílio de Lima, embora recomendasse o uso do quéchua na prédica, temendo distorções do vocabulário religioso cristão em traduções para aquele idioma das partes fixas da liturgia, recomendou que o espanhol fosse utilizado durante a celebração litúrgica. Bocanegra, porém, queria adaptar os conceitos religiosos cristãos ao imaginário andino, aceitando até mesmo uma tradução do nome de Dios pelo nome da montanha Huanacauri.

Em seu Formulario não hesitou em usar texto sem espanhol e adaptações para o quéchua. No caso do “Hanaq Pachap Kusikuynin”, como se disse acima, Bocanegra não incluiu qualquer tradução para o espanhol. Se foi ele mesmo o autor do texto ou outro poeta qualquer, o fato de tê-lo publicado revela-nos sua preocupação em adaptar os conceitos cristãos à religião andina tradicional.

O hino tem vinte estrofes, a última delas é um “Gloria Patri”. Transcrevemos abaixo apenas as três primeiras, mais conhecida se mais comumente cantadas hoje:

“HANAQ PACHAP
1. Hanaq pachap kusikuynin
Waranqakta much’asqayki
Yupay ruru puquq mallki
Runakunap suyakuynin
Kallpannaqpa q’imikuynin
Waqyasqayta

2. Uyariway much’asqayta
Diospa rampan, Diospa maman
Yuraq tuqtu hamanq’ayman
Yupasqalla qullpasqayta
Wawaykiman suyusqayta
Rikuchillay

3. Chipchiykachaq qatachillay
P’unchaw pusaq qiyantupa
Qam waqyaqpaq, mana upa
Qizaykikta “hamuy” ñillay
Phiñasqayta qispichillay
Susurwana”

Uma possível tradução:

1. Alegria do céu
Mil vezes eu te adoro [eu te beijarei]
Árvore que amadurece fruto valioso
Da humanidade a esperança
Dá força e seu sustento
Ao meu chamado

2. Escuta minha adoração
Guia de Deus [pela mão], mãe de Deus
Branca pomba, alva flor de açucena
Considere meu pranto [valorize meu choro]
Ao teu filho, meu desejo [ânsia]
Faz saber

3. Que brilha, Plêiades
Guia da luz do dia e da aurora
O que a ti suplica sempre é ouvido
Ao desprezado dizes ‘vem’
Faze que Ele perdoe meu medo
Susurwana.

O hino tem óbvias ambigüidades, perceptíveis logo na primeira análise: a língua é inca, mas a música é absolutamente européia. A poesia é métrica, concebida em estrofes cujos versos rimam, recursos estilísticos desconhecidos dos quéchuas.

Mas há outras ambigüidades, mais sutis, não apenas no estilo poético: a essência do texto e as imagens criadas são passíveis de múltiplas leituras. À primeira vista, utiliza símbolos clássicos ou epítetos cristãos tradicionais da Virgem como “mãe de Deus”, “esperança da humanidade” ou “árvore que dá fruto”. Até mesmo a maior parte dos símbolos celestiais, dos quais o hino é repleto, está firmemente fundada em imagens poéticas e iconográficas bem conhecidas, como a associação de Maria com a Lua, presente em inúmeras pinturas medievais e figura próxima ao epíteto de Maria maris stella, “Maria estrela do mar”, freqüente na Idade Média.

Mas há passagens do hino obviamente estranhas à tradição cristã, como, por exemplo, a insistência na evocação da fertilidade da Virgem Maria, especialmente louvando-a como fonte de fecundidade agrícola. Logo na estrofe 1, a linha 3 traz “Yupay ruru puquqmallki”, que tanto pode ser traduzido por “árvore que amadurece fruto valioso” como também “árvore de incontáveis frutos”. Na estrofe 6, a linha 36 diz “Kawzaq pukyu”, algo como “primavera que faz germinar”. Na estrofe 7, linha 37, “miraq-suyu” quer dizer “domínio da fertilidade”; e a estrofe 13, linha 73 traz “Ñukñu ruruq chuntamallki”, “palmeira que dá frutos tenros”. Encontramos ainda, na estrofe 13, linha 74, “Runakunap munay kallcha”, algo como “bela colheita dos povos”; e na estrofe 19, linha 111, “Qhapaq mikuy aymuranqa”, “grande colheita de alimentos”. É verdade que podemos sempre encontrar uma explicação “cristã” para todos esses epítetos da Virgem. Mas também é verdade que não são tão comuns assim expressões como “primavera que faz germinar”, “domínio da fertilidade”, “bela colheita dos povos” e “grande colheita de alimentos”, que parecem muito mais atributos de Pachamama do que da Virgem Maria!

Da mesma forma, se, como dissemos acima, algumas analogias de Maria com corpos celestes presentes no hino são comuns na tradição cristã, outras são muito estranhas. Associar Maria à “bela lua”, como na estrofe 11, linha 61, “zuma killa”, ou como na estrofe 11, linha 65, “Mana yawyaq pampa killa”, “lua cheia que nunca diminui”, pode não surpreender ouvidos cristãos, como também não será estranho ouvirmos que a Virgem “transforma a noite em dia”, na estrofe 6, linha 32, “K’anchaq p’unchaw tutayachiq”.

Mas outros epítetos no hino identificam Maria sistematicamente com objetos celestes específicos da devoção feminina dos Andes pré-colombianos. A própria insistência em compará-la com a Lua pode parecer exagerada. Além disso, Maria é comparada à constelação das Plêiades e, na estrofe 7, linha 40, “aklla phuyu”, “nuvem seleta”, faz referência a outra constelação,objeto de adoração pré-colombiana. É surpreendente a insistência em comparar Maria às Plêiades. Logo na estrofe 3, a linha 13 traz “Chipchiykachaq qatachillay”, ou “que brilha, Plêiades”. A constelação das Plêiades era um dos principais ajuntamentos estelares para os incas, utilizada no seu calendário, assim como o Cruzeiro do Sul e as constelações de Alfa e Beta-Centauro. Os incas adoravam as Plêiades como deidade e sua ênfase no hino, associada à Maria, é surpreendente: ela ainda se repete na estrofe 10, linhas 59 e 60: “qam mamayta” (60) “Qatachilla[y]”, isto é, “a ti, mãe,“Qatachillay”.

Assim, a ambigüidade é constante no hino a ponto de nos permitir afirmar “Hanaq Pachap Kusikuynin” é, ao mesmo tempo, um hino a Maria e um hino às Plêiades, a outros corpos celestes, objetos da adoração dos nativos dos Andes e, aparentemente, às divindades femininas associadas à fecundidade da terra. Fica claro que uma interpretação unilateral do texto do hino não será correta ou suficiente. Enquanto os sacerdotes católicos colonizadores podem ter compreendido o hino como um veículo aceitável para a devoção a Maria, os nativos falantes da língua quéchua podem ter encontrado nele uma reconfortante continuação da velha prática religiosa, sem que uma interpretação dominasse a outra.

Texto de Parcival Módolo


SIWARSITUY e LLAMA MICHIQ - canções andinas de Natal


Quando se estudam os textos da música do período colonial andino, escritos em espanhol, em quéchua ou latim, fica claro que foram adaptados pelos que produziram esses textos, preponderantemente os próprios sacerdotes espanhóis, e interpretados por aqueles que passaram a cantá-los, os camponeses e índios que falavam quéchua.

Mas há outro acervo musical importante, as muitas canções religiosas anteriores à colonização, compostas nas diversas línguas andinas e que foram preservadas. Vários desses antigos hinos incas tiveram seus textos trocados, adaptando-se neles textos cristãos. Muitos destes são cantados até os dias atuais. Em Cuzco, por exemplo, celebra-se um dia santo especial, o dia do Señor de los Temblores, e durante o dia todo se cantam pela cidade as antigas canções incas, anteriores à colonização européia.

É nesse contexto que ganham importância dois villancicos tradicionais – “SIWARSITUY” e “LLAMA MICHIQ” – e o texto do “HANAQ PACHAP”. Villancicos são canções corais do século XVI, freqüentemente para o período do Natal, mas também para outras datas festivas. Nos mais conhecidos villancicos andinos cujas músicas têm forte influência espanhola, as letras são frequentemente mistas, partes andinas, partes espanholas. Alguns deles, mesmo que reinterpretados pela ótica cristã, pertencem, estilisticamente, a uma arcaica tradição inca. Esses dois villancicos são a interpretação popular, anônima, de criação coletiva que os povos andinos fizeram da cultura cristã espanhola, que tipificam substancialmente diferentes estratégicas retóricas, aproximando o cristianismo europeu e o mundo andino por dois caminhos diferentes.

O SIWARSITUY, a canção do beija-flor azul, é canção tradicional inca e o texto, naturalmente escrito em quéchua, conta de um beija-flor azul que sai a voar alegremente depois de noite escura e chuvosa. Sua estrofe diz:

“Ima kusin paqarimun, siwarsituy,
k’ancharikunmi tutapas, siwarsituy.
Para tukuykuy q’uchukuyri, siwarsituy,
sullari Hanaqpachamanta, siwarsituy”.

(“Que alegre amanhecer, meu beija-florzinho azul,
Ilumina também a noite, meu beija-florzinho azul.
Depois da chuva, alegria, meu beija-florzinho azul,
Neblina do céu, meu beija-florzinho azul”).

Os missionários cristãos, porém, apropriaram-se do Siwarsituy, que passou a ser cantado como canção de Natal para crianças. Para isso foi necessário dar ao texto uma conotação que ele nunca tivera na origem, atribuindo às frases sentido figurado, valor metafórico. O “alegre amanhecer”, então, passou a significar o novo tempo após o advento de Jesus. “Iluminar a noite” e “depois da chuva” descreveriam a chegada desse novo tempo, radiante, iluminado, após a era de escuridão que cobriu a terra e os povos, referência ao nascimento do Cristo como a chegada da luz, segundo a profecia bíblica: “O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam na região da sombra e da morte, resplandeceu-lhes a luz” (Isaias, 12.2). O beija-flor, por sua vez, vivo, alegre, passou a ser comparado ao próprio Menino Jesus!

Curiosa essa forma de apropriação do texto, integral, direta, alterando-lhe, porém, o sentido, atribuindo-lhe novo significado, simbólico, emblemático e apropriado ao novo ensino religioso.

Em LLAMA MICHIQ, porém, a situação é outra. O texto, embora originalmente em quéchua, foi escrito, já, evidentemente de uma ótica cristã: o tema central é a viagem até Belém, local do nascimento de Jesus:

“Llama michiq, samiyuq runa,
hakuchu Belen portalman.
Belen portalman chayaykuspa
kamaqninchista kusichisun”.

(“Pastor de lhamas, homem que dá alento [fôlego],
vamos ao portal de Belém.
Quando chegarmos ao portal de Belém
alegraremos o nosso Criador.”)

O que temos aqui é a figura do pastor de lhamas, personagem tradicional da cultura inca, que, na canção, é convidado a ir até Belém alegrar o Criador. Os costumes e crenças da região, porém, foram enfatizados de forma discreta mas poderosa: o pastor de lhamas é chamado de “homem que dá o alento”, o fôlego. Ora, “dar alento”, no mundo andino, samiy em quéchua, quer dizer “fazer oferendas à mãe terra”, atribuição dos sacerdotes do culto a Pachamama, a Mãe Terra, a quem “dão o pago” com folhas da coca. No villancico do Llama Michiq, estaria o pastor de lhamas simbolizando o sacerdote inca, convidado, ele também, a visitar o Menino Jesus para alegrá-lo, prestar-lhe sua homenagem, fazer-lhe oferendas, como fazia a Pachamama? Ou o pastor seria apenas um camponês humilde, sem maiores atribuições além de cuidar bem de seus animais, dando-lhes bom alimento, não havendo aí qualquer outro significado simbólico?

O fato indiscutível é que, até nos dias atuais, inúmeros camponeses de fala quéchua ou aymara, que evidentemente conservam tradições centenárias tanto em sua vida cotidiana quanto em sua vida religiosa – se é que para os incas exista divisão assim tão nítida entre cotidiano e religião –, não hesitam em frequentar igrejas cristãs, participar de todas as festas religiosas cristãs das cidades próximas da montanha onde vivem. Em seu “¿Puede un Campesino Cristiano Ofrecer un ‘Pago ala Tierra’?”, Manuel María Marzal discute exatamente esse tipo de sincretismo, que permite ao camponês, mesmo que se admita cristão, estando entre os seus iguais respeitar as tradições e cumprir os ritos ancestrais do culto praticado por seu povo. Freqüentemente vemos quéchuas e aymaras carregando cruzes cristãs em alguma procissão católica, gente que orgulhosamente informa manter as milenares tradições do seu povo, mesmo que não explique exatamente o que isso significa. Oficialmente, afinal, 97,2% da população peruana se definem “de religião cristã” e, dentre esses, 95,7% católico-romana. Somente 6,3% se admitem de dupla filiação e – ainda mais interessante – apenas 1,3% diz pertencer a “outras” religiões, onde, supomos, deve estar incluída a religião inca.

Antes de pensar em corrupção de antigas tradições, porém, devemos nos lembrar que esses povos vivem num mundo de dualidades e sincretismos. Conseguem de forma absolutamente natural participar de uma missa e, no momento seguinte, prestar culto à sua entidade familiar, representada por uma montanha. Muitas comunidades de camponeses e indígenas, após celebrarem, por exemplo, um casamento na cidade, numa igreja cristã, oficiado pelo pároco local, partem para seus vilarejos, onde repetem a cerimônia, dessa vez sob a bênção de um líder social e religioso do povo e segundo seus próprios costumes. Entre a bênção do Deus católico e as antigas tradições, eles ficam com as duas. Alguns sacerdotes cristãos aprenderam logo, desde o início da colonização, a aceitar essa postura nativa.

Aqui se verifica a possibilidade de uma dupla interpretação do texto, uma acomodação conveniente, satisfazendo tanto os sacerdotes cristãos quanto os nativos falantes da língua quéchua, que podiam cantá-lo imaginando a continuação de suas velhas práticas religiosas. Defendemos que essa foi uma curiosa estratégia para salvaguardar seus cultos nativos ancestrais: obrigados a aceitar à força a religião do colonizador, os nativos esconderam seus cultos e deidades.

Texto de Parcival Módolo






quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

BOTOCUDOS - A CONSTRUÇÃO DE UM INIMIGO


Uma das questões mais discutidas na historiografia brasileira em relação aos índios é a idéia da “oscilação” e “ambiguidade” da legislação indigenista colonial, visto que ora ela pendia para os interesses dos colonos pela escravização, ora para os interesses dos jesuítas pela catequização e manutenção da “liberdade” dos nativos. Caio Prado Jr., por exemplo, considerou que o projeto fundamental da Coroa Portuguesa de transformar os nativos em “colonizadores” – ou, nas palavras do próprio autor, em “elemento participante da colonização” – não foi alcançado em função de sua incapacidade de se posicionar e lidar com os interesses divergentes dos padres e colonos.

Embasado por uma percepção disjuntiva do universo indígena, o Império Português cunhou uma política que procurava regulamentar e legitimar a escravidão. Enquanto a atuação dos missionários era protegida, fomentava-se a conquista e extermínio dos grupos autóctones considerados “bravos” e “irredutíveis”, formando-se assim o todo de um projeto de colonização. Portanto, longe de basear-se em “uma luta pela justiça”, a legislação indigenista colonial estava abalizada por uma busca de legitimação dos procedimentos para o contato e utilização desses povos: “Apenas à primeira vista contraditória e oscilante, a legislação indigenista portuguesa, que por vezes autorizava a escravização dos povos indígenas (em caso de ‘guerra justa’ ou ‘resgate’) e por vezes a coibia, era na verdade o resultado da percepção das possibilidades de utilização da diversidade sociocultural dos povos autóctones e das possibilidades históricas do contato para a consecução dos objetivos concretos da empresa colonial (PUNTONI, 2002, p. 60)”.

A legislação indigenista não deve ser tomada em conjunto e generalizada a todos os índios do Brasil, sob o risco de simplificar os contornos desse quadro. Legislação e política indigenistas apresentam um corte fundamental ao se destinarem aos “índios amigos” ou ao “gentio bárbaro”. Perrone Moisés percebe, assim, “[...] uma linha de política indigenista que se aplica aos índios aldeados e aliados e uma outra, relativa aos inimigos, cujos princípios se mantêm ao longo da colonização”. Aos aliados e amigos, a liberdade foi garantida durante todo o processo; quanto aos índios inimigos, foi sempre assegurado o direito de escravizá-los com base na “guerra justa” e no “resgate”.

A separação entre índios “aliados” e índios “inimigos” feita pelos portugueses é representada pelas designações generalizantes tupi e tapuia. Enquanto tupi era o termo que identificava os grupos pacíficos, aldeados e aliados, a alcunha tapuia qualificava todos os povos que se mostraram resistentes desde os primeiros contatos e procuraram o afastamento das áreas colonizadas. Entre os inúmeros e diversificados grupos identificados como tapuias estavam os AIMORÉ, primeira denominação específica dada aos povos que mais tarde ficaram conhecidos como BOTOCUDOS. Aimoré e tapuia são expressões provenientes da língua tupi, com a qual os portugueses primeiro tiveram contato e incorporaram na comunicação pela colônia. A denominação Botocudos é fruto da visão externa e preconceituosa dos portugueses, que se tornou comum para se referir aos grupos tribais da região analisada, que tinham a tradição de utilizar botoques labiais e auriculares feitos de madeira.

Seguindo essa premissa, os viajantes e colonos que visitaram e exploraram o rio Doce espírito-santense ao longo da colonização classificaram os chamados Aimoré, Puri e Patachó como “tribos tapuias”, e a região, como “pátria dos antropófagos”. Segundo Solthey, os Aimoré do rio Doce foram considerados pelos padres jesuítas “os mais ferozes de todos os tapuias”.

Os Botocudos foram identificados como “ferozes” e “antropófagos” por todos os que com eles tiveram contato desde o século XVI, em função da forte resistência e belicosidade demonstrada. Assim, construiu-se uma visão que sobreviveu firmemente ao longo da colonização e acompanhou os homens que contra eles avançaram definitivamente no século XIX. Ao considerarmos, por exemplo, os relatos dos viajantes que os descreveram, percebemos que o interesse em vê-los pessoalmente era aguçado por pré-concepções. Dessa forma, seguindo uma visão comumente estabelecida, na primeira descrição dos Botocudos, o príncipe Maximiliano identificou-os como “estranhos e feios”, aproximando sua aparência à de “monstros”. Num segundo momento, porém, o mesmo viajante – que foi o que melhor observou e descreveu esses povos – classificou os índios Botocudos como “[...] mais bem conformados e mais belos do que os das demais tribos. [...] São fortes, em regra largos de peito e espadaúdos, mas sempre bem proporcionados; mãos e pés delicados”, descrição que dá sentido às imagens que ele produziu, aproximando-os de feições idealizadas de acordo com a concepção de beleza européia.

Os Botocudos compreendiam povos organizados em subgrupos extremamente divididos, muitos deles rivais entre si. Cada grupo era comandado por um chefe, sem caráter hereditário, com escolha norteada pela bravura demonstrada. Cabia-lhe orientações e decisões quanto a disputas internas, migrações do grupo e momentos de guerra. Eram grupos seminômades, mas que tinham seus espaços limitados nas florestas em relação aos de outros subgrupos, principalmente no que dizia respeito às áreas de caça. Ao procurarem respostas para o “fator incógnito” das sucessivas divisões e multiplicidade de etnônimos dos grupos Botocudos, Emmerich e Montserrat levantaram a hipótese de que a causa seria o faccionalismo tradicional das sociedades Macro-Jê e a secular situação de afugentamento, capaz de descaracterizar suas formas no espaço.

Apesar das divisões e rivalidades grupais, caracterizavam-se pelo compartilhamento de um mesmo sistema sociocosmológico e de linguagem, embora esta possuísse variações dialetais, o que permitia sua identificação, expressão e comunicação no jogo de alianças e rivalidades que se fez e refez ao longo do processo de contato e elaboração de estratégias de resistência e sobrevivência nos intercursos da fronteira colonial. Os grupos tinham uma rígida divisão social do trabalho, na qual cabia aos homens as atividades de guerra e caça, e às mulheres, tudo o mais que não dizia respeito a isso.

Conforme Maximiliano de Wied-Neuwied, fabricavam diversos instrumentos e utensílios para diferentes fins, como para a caça e a guerra, para a música e o adorno do corpo, e, principalmente, para utilização doméstica. Adaptados às constantes movimentações e viagens dos grupos, a simplicidade da confecção desses objetos bem como das habitações e da vida cotidiana que levavam foi muitas vezes descrita com a finalidade de demonstrar seu primitivo estado de civilização e desenvolvimento material.

Assim, o estágio de desenvolvimento dos Botocudos foi tomado como justificativa legitimadora do processo de civilização que era preciso impor-lhes. Da mesma forma, as adjetivações negativas e a classificação dos Botocudos como “inimigos da colonização” serviram para justificar as investidas ofensivas e exterminadoras contra eles, caso “teimassem” em continuar com seu modo de vida.

No século XIX, os Botocudos estiveram definitivamente no centro das atenções, seja como alvo da legislação indigenista, seja como “objetos” de interesse científico. Mencionados como protótipo dos “índios bravos”, que precisavam ser exterminados ou submetidos pelo trabalho e pelas leis, os Botocudos preocuparam as autoridades coloniais do Império Luso-Brasileiro e, após a independência (1822), do Império Brasileiro. Daí a nossa referência a eles como “índios imperiais”, em analogia às novas visões produzidas sobre os “índios coloniais”. O termo “índio colonial” foi introduzido na historiografia pela historiadora norte-americana Karen Spalding, em um ensaio sobre o Peru Colonial, com o objetivo de relevar a análise da experiência indígena na América espanhola. Designa o elemento nativo em meio à colonização, mas com “[...] um papel ativo e criativo diante dos desafios postos pelo avanço dos espanhóis”.

No Império, os Botocudos foram, na maior parte das vezes, relegados à barbárie, num momento em que, ultrapassadas as inquirições sobre a humanidade dos povos autóctones, se discutia seu lugar na escala do desenvolvimento humano, sua capacidade de viver em sociedade deixando de ser selvagens. No entanto, encontramo-los aqui como coletividades atuantes e conscientes, em movimentação não só pelos enclaves da fronteira do Doce, mas, de igual modo, pelas estruturas sociopolíticas de toda a Província. A atuação da DRD marcou um estreitamento com as questões indígenas e com o discurso pacificador inaugurado pelo Império. Nesse sentido, os diferentes subgrupos Botocudos, alvos da política de aldeamento, colocaram-se entre conflitos e negociações, entre apropriações e transmutações de elementos provenientes da inevitável trama colonial.


Baseado em texto de Francieli Aparecida Marinato

REGULAMENTO DAS MISSÕES - 1845

Durante o século XIX, a ausência de uma política indigenista de caráter geral - desde a extinção do Diretório, em 1798, até a publicação do REGULAMENTO DAS MISSÕES, em 1845 - não impediu o predomínio da política assimilacionista, dando sequência às propostas iniciadas por Pombal. Ao longo do oitocentos, intensificaram-se os debates políticos e intelectuais sobre os índios, discutindo-se basicamente como integrá-los e as propostas divergiam entre a possibilidade de fazê-lo de forma branda ou violenta. O projeto de José Bonifácio, na Constituinte de 1823, que afirmava a humanidade dos índios e a necessidade de integrá-los com brandura, apesar de aprovado, não chegou à prática. A Constituição de 1824 sequer mencionou a questão indígena, que se tornou competência das Assembléias Legislativas Provinciais. Não obstante, apesar das teorias discriminatórias e racistas que influenciavam o pensamento intelectual e político, a proposta humanista de José Bonifácio predominou na política indigenista. As autoridades estatais e locais visavam extinguir as aldeias e incorporar suas terras, integrando os índios, sem distinção, à massa populacional, mas procuravam fazer isso dentro das regras estabelecidas pela legislação através de meios brancos e persuasivos, recomendando-se a violência para os que se recusassem a colaborar. Foi o caso dos  Botocudos, contra os quais foi decretada a guerra ofensiva através da Carta Régia de 1808. Em relação aos aliados, verificavam-se alguns cuidados em cumprir a legislação.

O Regulamento das Missões, de 1845, decretou o direito dos índios às terras nas aldeias, considerando, no entanto, a possibilidade de extingui-las, conforme seu estado de decadência. A Lei de Terras, de 1850, seguiu orientação semelhante ao estabelecer para os índios o usufruto temporário das terras, até que atingissem o "estado de civilização".

Na segunda metade do século XIX, a intensa correspondência oficial entre autoridades do governo central, das províncias e dos municípios é reveladora da preocupação do Estado em obter informações sobre o estado de decadência das aldeias e o grau de civilização dos índios com o objetivo de dar cumprimento à política assimilacionista, a ser implementada conforme as situações específicas de cada região. Algumas petições dos índios para resguardar seus direitos contradiziam os discursos assimilacionistas que pregavam estarem eles misturados à massa da população. A partir de 1861, o encargo da catequese e civilização dos índios passou para o Ministério dos Negócios, Agricultura, Comércio e Obras Públicas, evidenciando que, no século XIX, a questão dos índios tornara-se, em algumas regiões, essencialmente uma questão de terras.

Baseado em texto de Maria Regina Celestino de Almeida.

Segue, na íntegra, o texto do REGULAMENTO ACERCA DAS MISSÕES DE CATEQUESE E CIVILIZAÇÃO DOS ÍNDIOS - única documento indigenista geral da época do Império brasileiro:


DECRETO Nº. 426 - DE 24 DE JULHO DE 1845
Contém o Regulamento ácerca das Missões de catechese, e civilisação dos Indios.

Hei por bem, Tendo ouvido o Meu Conselho de Estado, Mandar que se observe o Regulamento seguinte:

Art.  Haverá em todas as Provincias um Director Geral de Indios, que será de nomeação do Imperador. Compete-lhe:
§ 1º Examinar o estado, em que se achão as Aldêas actualmente estabelecidos; as occupações habituaes dos lndios, que nellas se conservão; suas inclinações e propensões; seu desenvolvimento industrial; sua população, assim originaria, como mistiça; e as causas, que tem influido em seus progressos, ou em sua decadencia.
§ 2º Indagar os recursos que offerecem para a lavoura, e commercio, os lugares em que estão collocadas as Aldêas; e informar ao Governo Imperial sobre a conveniencia de sua conservação, ou remoção, ou reunião de duas, ou mais, em uma só.
§ 3º Precaver que nas remoções não sejão violentados os Indios, que quizerem ficar nas mesmas terras, quando tenhão bem comportamento, e apresentem um modo de vida industrial, principalmente de agricultura. Neste ultimo caso, e emquanto bem se comportarem, lhes será mantido, e ás suas viuvas, o usufructo do terreno, que estejão na posse de cultivar.
§ 4º Indicar ao Governo Imperial o destino que se deve dar ás terras das Aldêas que tenhão sido abandonadas pelos Indios, ou que o sejão em virtude do § 2º deste artigo. O proveito, que se tirar da applicação dessas terras, será empregado em beneficio dos Indios da Provincia.
§ 5º Indagar o modo por que grangeão os Indios as terras, que lhes tem sido dadas; e se estão occupadas por outrem, e com que titulo.
§ 6º Mandar proceder ao arrolamento de todos os Indios aldeados, com declaração de suas origens, suas linguas, idades, e profissões. Este arrolamento será renovado todos os quatro annos.
§ 7º Inquerir onde ha Indios, que vivão em hordas errantes; seus costumes, e linguas; e mandar Missionarios, que solicitará do Presidente da Provincia, quando já não estejão á sua disposição, os quaes lhes vão pregar a Religião de Jesus Christo, e as vantagens da vida social.
§ 8º Indagar se convirá fazel-os descer para as Aldêas actualmente existentes, ou estabelecel-os em separado; indicando em suas informações ao Governo Imperial o lugar onde deve assentar-se a nova Aldêa.
§ 9º Diligenciar a edificação de Igrejas e de casas para a habitação assim dos Empregados da Aldêa, como dos mesmos Indios.
§ 10. Distribuir pelos Directores das Aldêas, e pelos Missionarios, que andarem nos lugares remotos, os objectos que pelo Governo Imperial forem destinados para os Indios, assim para a agricultura, ou para o uso pessoal dos mesmos, como mantimentos, roupas, medicamentos, e os que forem proprios para attrahir-lhes a attenção, excitar-lhes a curiosidade, e despertar-lhes o desejo do trato social; requisitando-os do Presidente da Provincia, segundo as Instrucções que tiver do Governo Imperial.
§ 11. Propôr ao Presidente da Provincia a demarcação, que devem ter os districtos das Aldêas, e fazer demarcaras terras que, na fórma do § 15 deste artigo e do § 2º, forem dadas aos Indios. Se a AIdêa já estiver estabelecida, e existir em lugar povoado, o districto não se estenderá além dos limites das terras originariamente concedidas á mesma.
§ 12. Examinar quaes são as Aldêas que precisão de ser animadas com plantações em commum, e determinar a porção de terras que deve ficar reservada para essas plantações, assim como a porção das que possão ser arrendadas, quando, attenta ainda a pequena população, não possão os Indios aproveital-as todas.
§ 13. Arrendar por tres annos as terras, que para isso forem destinadas, procedendo ás mais miudas investigações, sobre o bom comportamento dos que as pretenderem, e sobre as posses que tem. Nestes arrendamentos não se comprehende a faculdade de derrubar matos, para o que será necessario o consenso do Presidente, que será expresso no contracto, com declaração dos lugares onde os possão derrubar.
§ 14. Examinar quaes são as Aldêas, onde, pelo seu adiantamento, se possão aforar terras para casas de habitação; informar ao Governo Imperial com o quantitativo do fôro; e aforal-as segundo as Instrucções, que receber. Não são permittidos aforamentos para cultura.
§ 15. Informar ao Governo Imperial ácerca daquelles Indios, que, por seu bom comportamento e desenvolvimento industrial, mereção se lhes concedão terras separadas das da Aldêa para suas grangearias particulares. Estes Indios não adquirem a propriedade dessas terras, senão depois de doze annos, não interrompidos, de boa cultura, o que se mencionará com especialidade nos relatorios annuaes; e no fim delles poderão obter Carta de Sesmaria. Se por morte do concessionario não se acharem completos os doze annos, sua viuva, e na sua falta seus filhos, poderão alcançar a sesmaria, se, além do bom comportamento, e continuação de boa cultura, aquella preencher o tempo que faltar, e estes a grangearem pelo duplo deste tempo, com tanto que este nem passe de oito annos, e nem seja menos de quinze o das diversas posses.
§ 16. Dar licença ás pessoas que quizerem ir negociar nas Aldêas novamente creadas, com estabelecimento ou fixo, ou volante; e retiral-a, quando o julgar conveniente. Quanto ás que já estão estabelecidas, examinará quaes as que estão nas circumstancias de precisarem desta protecção; e as declarará sujeitas a esta disposição, com dependencia de approvação Imperial.
§ 17. Representar ao Presidente da Provincia a necessidade que possa haver de alguma força militar, que proteja as Aldêas, a qual poderá ter um Regulamento especial.
§ 18. Propor á Assembléa Provincial a creação de Escolas de primeiras Letras para os lugares, onde não baste o Missionario para este ensino.
§ 19. Empregar todos os meios licitos, brandos, e suaves, para atrahir Indios ás Aldêas; e promover casamentos entre os mesmos, e entre elles, e pessoas de outra raça.
§ 20. Esmerar-se em que lhes sejão explicadas as maximas da Religião Catholica, e ensinada a doutrina Christã, sem que se empregue nunca a força, e violencia; e em que não sejão os pais violentados a fazer baptisar seus filhos, convindo attrahil-os á Religião por meios brandos, e suasorios.
§ 21. Cuidar na introducção da vaccina nas Aldêas, e facilitar-lhes todos os soccorros nas epidemias.
§ 22. Corresponder-se com os Missionarios, de quem receberá todos os esclarecimentos para a catechese e civilisação dos Indios, providenciando no que couber em suas faculdades; e com todas as Autoridades, por quem possa ser auxiliado.
§ 23. Vigiar na segurança, e tranquillidade das Aldêas, e seus districtos, requerendo, ou constituindo procurador para requerer perante as Justiças, e requisitando das Autoridades competentes as providencias necessarias.
§ 24. Indagar se nas Aldêas, e seus districtos, morão pessoas de caracter rixoso, e de máos costumes, ou que introduzão bebidas espirituosas, ou que tenhão enganado aos Indios com lesão enorme; e fazel-as expulsar até cinco leguas fóra dos limites dos districtos.
§ 25. Informar-se dos meios de subsistencia, que tem as Aldêas, para providenciar que não sobrevenha alguma fome, que seja causa de que os Indios abalem para os matos, ou se derramem pelas Fazendas, e Povoações.
§ 26. Promover o estabelecimento de officinas de Artes mecanicas, com preferencia das que se prestão ás primeiras necessidades da vida; e que sejão nellas admittidos os Indios, segundo as propensões, que mostrarem.
§ 27. Indagar quaes as producções do lugar de mais facil cultura, e de mais proveito; esmerando-se em fazer adoptar aquelle genero de trabalho, e modo de vida, que offereça mais facilidade, e a que os Indios mais promptamente se acostumem.
§ 28. Exercer toda a vigilancia em que não sejão os Indios constrangidos a servir a particulares; e inquerir se são pagos de seus jornaes, quando chamados para o serviço da Aldêa, ou qualquer serviço publico; e em geral que sejão religiosamente cumpridos de ambas as partes os contractos, que com elles se fizerem.
§ 29. Vigiar que não sejão os Indios avexados com exercicios militares, procurando que se lhes dê aquella instrucção, que permittir o seu estado de civilisação, suas occupações diarias, e seus habitos e costumes, os quaes não devem ser aberta, e desabridamente contrariados.
§ 30. Fiscalizar as rendas das Aldêas, quaesquer que sejão as suas fontes; e exercer vigilante inspecção sobre as producções das lavouras, pescas, e extracções de drogas, e de outro qualquer ramo de industria, e em geral sobre todos os objectos destinados para o uso, e consumo das Aldêas.
§ 31. Applicar os dinheiros, e outros quaesquer objectos, segundo as necessidades das Aldêas, e na conformidade das ordens do Governo Imperial, dando uma conta circumstanciada todos os annos, e todas as vezes que uma urgente necessidade o obrigue a fazer alguma despeza extraordinaria, da applicação, que houver resoluto.
§ 32. Servir de Procurador dos Indios, requerendo, ou nomeando Procurador para requerer em nome dos mesmos perante as Justiças, e mais Autoridades.
§ 33. Propôr ao Presidente da Provincia o Director da Aldêa, o Thesoureiro, Almoxarife e o Cirurgião, preferindo-se para estes empregos os casados aos solteiros; suspender os tres ultimos, e em geral a todos os que estão empregados no serviço das Aldêas, nomeando interinamente quem os substitua, e dando parte immediatamente ao Presidente, ou ao Director da Aldêa, segundo pertencer a nomeação ao primeiro, ou ao segundo.
§ 34. Organizar a Tabella dos vencimentos dos Pedestres, e dos salarios dos officiaes de officios, que estiverem ao serviço das Aldêas; e leval-a ao conhecimento do Governo Imperial para sua approvação.
§ 35. Approvar, e mandar pôr em execução provisoriamente a Tabella, organizada pelos Directores das Aldêas, dos jornaes, que devem ganhar os Indios, que forem chamados para o serviço das mesmas, ou qualquer outro serviço publico; levando-a ao conhecimento do Governo Imprial para sua final approvação.
§ 36. Propor ao Governo Imperial os Regulamentos especiaes para o regimes das Aldêas, e as instrucções convenientes para o desenvolvimento de sua industria; tendo attenção ao estado de civilisação dos Indios, sua indole, e caracter; ás necessidades dos lugares, em que se acharem ellas estabelecidas; ás produções do Paiz, e ás proporções, que o mesmo offerece para o seu adiantamento moral, e material.
§ 37. Apresentar todos annos ao Governo Imperial o Orçamento da receita e despeza das Aldêas, e um Relatorio circumstanciado do seu estado em população, instrucção, e industria, com exposição miuda da execução das disposições deste Regulamento; exigindo dos Directores das Aldêas outros iguaes, que o habilitem a esclarecer o Governo sobre os progressos, ou decadencia das mesmas, e as causas, que para isso tem concorrido; e apontando as providencias, que convenha ser adoptadas.
§ 38. Expor ao Governo Imperial os inconvenientes, que tenha encontrado na execução deste Regulamento, e de outros, que houver de fazer; indicando as medidas, que julgar apropriadas para se conseguir o grande fim da catechese, e civilisação dos Indios.

Art.  Haverá em todas as Aldêas um Director, que será de nomeação do Presidente da Provincia, sobre proposta do Director Geral. Compete-lhe:
§ 1º Informar ao Director Geral a necessidade, que possa haver de trabalhos em commum, e a natureza destes; assim como sobre a parte dos productos desses trabalhos, que deva reservada para o uso commum dos Indios.
§ 2º Designar as terras, que devem ficar reservadas para as plantações em comum, depois de determinada a porção, que o deve ser pelo Director Geral; assim como as que devem ficar para as plantações particulares dos Indios, e as que possão ser arrendadas, art. 1º § 2º.
§ 3º Inspeccionar essas plantações ou outros quaesquer trabalhos da Aldêa; e procurar consumo aos seus productos, depois de feitas as reservas necessarias.
§ 4º Nomear quem substitua o Thesoureiro, ou Almoxarife, nos impedimentos imprevistos, e de caso repentino.
§ 5º Nomear os Indios para as plantações, ou outros trabalhos em commum, ou para qualquer serviço publico; procurando repartir o trabalho com igualdade, e ir de accordo, quanto ser possa, com o Maioral dos mesmos Indios.
§ 6º Fazer entregar ao Thesoureiro, ou Almoxarife, os productos dos trabalhos dos Indios, os objectos obtidos em troca dos que forem vendidos, o dinheiro pertencente á Aldêa, qualquer que seja sua origem, e em geral todos os objectos destinados para a aldêa.
§ 7º Distribuir os objectos, que forem applicados pelo Director Geral para os trabalhos communs, e particulares dos Indios; e os que forem destinados para animar, e premiar os Indios já aldeados, e attrahir os que ainda o não estejão.
§ 8º Applicar os dinheiros, e mais objectos, segundo as determinações do Director Geral; podendo, em casos urgentes, gastar, sob sua responsabilidade, do dinheiro, que houver em caixa, até a quantia de cem mil réis, de que dará conta ao mesmo Director para sua approvação.
§ 9º Nomear, suspender, e despedir os Pedestres, e officiaes de officios, que estiverem ao serviço da AIdéa, e determinar o serviço, que devem fazer.
§ 10. Vigiar sobre a segurança, e tranquilidade da Aldêa, e seu districto; podendo, em caso, menores, reter em prisão, até seis dias, o que a perturbar, sendo Indio; e não sendo, fazel-o expulsar para fóra da Aldêa, e até do seu districto: e em casos maiores, prender e remetter ás Justiças ordinarias com todas as indicações que esclareção a verdade.
§ 11. Requerer ás Autoridades policiaes contra os que, tendo sido expulsos em virtude do paragrapho antecedente, ou do § 24 do art. 1º, se estabelecerem dentro dos limites declarados no Mandado de despejo, ou não queirão obedecer a este.
§ 12. Ter debaixo de suas ordens a força militar que se houver de mandar collocar na Aldêa, e seu districto; representando a necessidade, que della possa haver, ao Director Geral, conformando-se com as instrucções que receber e com o Regulamento especial do § 17 do art. 1º.
§ 13. Alistar os Indios, que estiverem em estado de prestar algum serviço militar, e acostumal-os a alguns exercicios, animando com dadivas aos que mostrarem mais gosto e zelo pelo serviço, e tendo todo o cuidado em que não se desgostem por excesso de trabalho. Dará uma conta circumstanciada ao Director Geral das disposições que encontrar para ser levada ao conhecimento, do Governo Imperial, que resolverá sobre, a opportunidade de se crearem algumas Companhias, as quaes poderão ter uma organização particular.
§ 14. Procurar que sejão demarcadas as terras dadas aos indios, e proceder á demarcação das porções das mesmas, que, em virtude deste Regulamento, tenhão de ser demarcadas dentro dos seus limites.
§ 15. Esmerar-se em que as festas tanto civis como religiosas se fação com a maior pompa, e apparato, que ser possa; procurando introduzir nas Aldêas o gosto da musica instrumental.
§ 16. Servir de Procurador dos Indios, podendo nomear quem faça as suas vezes para requerer perante as Justiças, e outras Autoridades.
§ 17. Dar parte todos os trimestres ao Director Geral dos acontecimentos mais notaveis na Aldêa, e fazer um relatorio annual do estado em que se ela acha, com declaração da execução, que tem tido as disposições deste Regulamento, e com o orçamento da receita e despeza para o anno seguinte.
§ 18. Exercer as funcções do art. 1º, desde o § 1º até o § 9º, e desde o § 19 até o § 30; entendendo-se que suas faculdades são restrictas á Aldêa de que é Director; e que em lugar do Presidente, ou Governo Imperial, deve dirigir-se ao Director Geral da Provincia.

Art.  Ao Thesoureiro compete:
§ 1º Receber os dinheiros pertencentes a Aldêa, qualquer que seja a origem d'onde provenha, recolhendo-os em uma caixa, de que o Director da Aldêa terá uma chave; assim como receber todos os objectos, que forem destinados para o serviço, e uso da Aldêa.
§ 2º Ter a seu cargo a escripturação, e contabilidade, para o que terá os livros proprios, fornecidos pela Fazenda Publica.
§ 3º Ajudar ao Director da Aldêa na sua correspondencia, particularmente na confecção dos mappas estatisticos.
§ 4º Fazer os pagamentos, e entregar os objectos, que estiverem debaixo de sua guarda, segundo as ordens que receber do Director Geral, e as determinações do Director da Aldêa.
§ 5º Dar todos os annos uma conta circumstanciada ao Director Geral de todos os dinheiros e objectos que houver recebido; dos empregos, que fez; e das ordens que os autorizárão.
§ 6º Escrever em todos os actos, que houverem de ser remettidos ás Justiças, e nos termos das demarcações das porções de terras, a que houver de proceder o Director da Aldêa dentro dos limites das terras da Aldêa.
§ 7º Substituir o Director da Aldêa em seus impedimentos imprevistos, e de caso repentino dando parte immediatamente ao Director Geral para prover interinamente.

Art.  Quando o estado da Aldêa não exiba um Tesoureiro, um Almoxarife receberá todos os objectos que forem destinados para a Aldêa, e os entregará segundo as ordens do Director da mesma, dando annualmente conta ao Director Geral; e o Director da Aldêa receberá os dinheiros que á mesma pertencerem.

Art.  O Cirurgião tem a seu cargo a botica, e os instrumentos cirurgicos; e cuidará da enfermaria com um Enfermeiro, que será um dos Pedestres, que proporá ao Director da Aldêa.

Art.  Haverá um Missionario nas Aldêas novamente creadas, e nas que se acharem estabelecidas em lugares remotos, ou onde conste que andão Indios errantes. Compete-lhe:
§ 1º Instruir aos Indios nas maximas da Religião Catholica, e ensinar-lhes a Doutrina Christã.
§ 2º Servir de Parocho na Aldêa, e seu districto, emquanto não se crear parochia.
§ 3º Fazer o arrolamento de todos os Indios pertencentes á Aldêa, e seu districto, com declaração dos que morão nas Aldêas, e fóra dellas; dos baptisados, idades e profissões; e dos nascimentos, e obitos, e casamentos: para o que lhe serão fornecidos os livros pelo Bispo Diocesano, pela caixa das Obras Pias.
§ 4º Dar parte ao Bispo Diocesano, por intermedio do Director Geral da Provincia, do estado espiritual da Aldêa; representando as necessidades que encontrar e apontando as providencias que lhe parecerem mais proprias para occorrer a ellas.
§ 5º Representar ao Director Geral, por intermedio do da Aldêa, a necessidade que possa haver de outro Missionario, que o ajude, principalmente se houver nas vizinhanças Indios errantes, que seja mister chamar á Religião e sociedade.
§ 6º Ensinar a ler, escrever e contar aos meninos, e ainda aos adultos, que sem violencia se dispuzerem a adquirir essa instrucção.
§ 7º Substituir ao Director da Aldêa, quando esteja impedido o Thesoureiro, e nos casos, em que este o póde substituir.

Art.  A creação de Thesoureiro, Almoxarife, cirurgião, dependerá do estado, em que se achar a Aldêa, e da sua importancia; e do lugar, em que estiver collocada: sobre o que o Director Geral informará ao Governo Imperial para resolver. O Cirurgião poderá servir de Thesoureiro, e as circumstancias o permittirem. Seus vencimentos, e os dos Missionarios serão fixados segundo as informações dos Directores Geraes.

Art.  A creação dos Pedestres e officiaes de officios; seu numero, salario, organização, e a natureza dos officios, dependeráõ das circumstancias locaes, segundo as informações dos Directores Geraes.

Art.  As informações, de que trata o artigo; antecedente, as do art. 7º, e as do art. 1º §§ 2º, 4º, 8º, 14, 15, 16, 34, 35, 36, e 37, serão transmittidas ao Governo Imperial por intermedio do Presidente da Provincia, que as acompanhará com as observações convenientes.

Art. 10. Nos impedimentos do Director Geral o Presidente da Provincia nomeará quem o substitua; e nos impedimentos do Director da Aldêa, que não serão imprevistos, e de caso repentino, fará a nomeação o Director Geral.

Art. 11. Emquanto servirem, terão a graduação honoraria o Director Geral de Brigadeiro, o Director da Aldêa de Tenente Coronel, e o Thesoureiro de Capitão; e usaráõ do uniforme, que se acha estabelecido para o Estado Maior do Exercito.

José Carlos Pereira de Almeida Torres, Conselheiro de Estado, Ministro e Secretario de Estado dos negocios do Imperio, assim o tenha entendido e faça executar despachos necessarios. Palacio do Rio de Janeiro em vinte e quatro de Julho de mil oitocentos quarenta e cinco; vigesimo quarto da Independencia e do Imperio.

Com a Rubrica de Sua Magestade o Imperador.

José Carlos Pereira de Almeida Torres

DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS - 1755

DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS é uma lei editada em 1755 e que reúne importantes dispositivos acerca da política indígena adotada por Portugal no na segunda metade do século XVIII, quando Dom Sebastião José de Carvalho e Melo – Marquês de Pombal - dominou o cenário político brasileiro como poderoso ministro de Dom José I, rei de Portugal. 

Este regimento conta com 95 artigos, onde destaca-se a intenção da Coroa Portuguesa de manter os povos indígenas fora do sistema escravagista, evitando sua segregação e isolamento reprimindo o tratamento dos indígenas como pessoas de segunda categoria por colonizadores e missionários brancos.

Além de várias outras medidas, o documento estabelece a proibição do uso da palavra "negro" (artigo 10), o incentivo ao casamento entre colonos brancos e indígenas, prometendo vantagens e prêmios aos brancos que se casassem com mulheres indígenas (artigos 88, 89, 90 e 91) e substituição da língua geral – o nheengatu – pela língua portuguesa (artigo 6), ensino das crianças nativas em escolas públicas (artigo 7 e 8), bem como punição contra possíveis discriminações (artigos 84, 85 e 86).

Através do Diretório dos Índios, os povos nativos conquistavam o direito à realização do comércio e posse de bens individuais. Porém, até que fossem capazes de se inserir na “sociedade civilizada”, os índios deveriam ter um Diretor em cada aldeia ou povoação, com funções predominantemente de orientação e instrução do que de administração.

Tal política de valorização dos indígenas, por meio deste documento e subsequentes esforços para seu cumprimento tinham também a finalidade de afastar os indígenas da influência dos jesuítas, além fazê-los súditos fiéis da Coroa Portuguesa, auxiliando na defesa das fronteiras da colônia. Foram ordenadas pelo rei a edificação de povoações civis de índios livres, o que servia para tais propósito, e o ensino de meninos e meninas em escolas públicas foi realmente posto em prática de norte a sul do Brasil, mesmo que de forma improvisada.

O Diretório dos Índios foi extinto através de Carta-Régia da rainha D. Maria I, em 12 de maio de 1798. Nela, os índios eram elevados à categoria de cidadãos comuns desde o nascimento, em igualdade com os outros vassalos do reino, sujeitos às leis do Estado e da Igreja.

O Diretório dos Índios foi decisivo na mudança linguística que se operou no Brasil no final do século XVIII. Antes desta sua intervenção, a língua geral, ou nheengatu, era comumente falada por todo o Brasil, e o português só se falava em poucos principais centros. Em poucas décadas, este entrou em decadência, mantendo sua importância apenas no estado do Amazonas. Em São Paulo, no início do século XIX, a população já se utilizava quase que somente do português, ao contrário dos três séculos anteriores.

Baseado em texto de Emerson Santiago

Segue, abaixo, o texto integral do DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS:



Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão, enquanto Sua Majestade não mandar o contrário

1 Sendo Sua Majestade servido pelo Alvará com força de Lei de 7 de Junho de 1755, abolir a administração Temporal, que os Regulares exercitavam nos Índios das Aldeias deste Estado; mandando-as governar pelos seus respectivos Principais, como estes pela lastimosa rusticidade, e ignorância, com que até agora foram educados, não tenham a necessária aptidão, que se requer para o Governo, sem que haja quem os possa dirigir, propondo-lhes não só os meios da civilidade, mas da conveniência, e persuadindo-lhes os próprios ditames da racionalidade, de que viviam privados, para que o referido Alvará tenha a sua devida execução, e se verifiquem as Reais, e piíssimas intenções do dito Senhor, haverá em cada uma das sobreditas Povoações, em quanto os Índios não tiverem capacidade para se governarem, um Diretor, que nomeará o Governador, e Capitão General do Estado, o qual deve ser dotado de bons costumes, zelo, prudência, verdade, ciência da língua, e de todos os mais requisitos necessários para poder dirigir com acerto os referidos índios debaixo das ordens, e determinações seguintes, que inviolavelmente se observarão enquanto Sua Majestade o houver assim por bem, e não mandar o contrário.

2 Havendo o dito Senhor declarado no mencionado Alvará, que os Índios existentes nas Aldeias, que passarem a ser Vilas, sejam governados no Temporal pelos Juizes Ordinários, Vereadores, e mais Oficiais de Justiça; e das Aldeias independentes das ditas Vilas pelos seus respectivos Principais: Como só ao Alto, e Soberano arbítrio do dito Senhor compete o dar jurisdição ampliando-a, ou limitando-a como lhe parecer justo, não poderão os sobreditos Diretores em caso algum exercitar jurisdição coativa nos Índios, mas unicamente a que pertence ao seu ministério, que é a direti­va; advertindo aos Juizes Ordinários, e aos Principais, no caso de haver neles alguma negligência, ou descuido, a indispensável obrigação, que tem por conta dos seus empregos, de castigar os delitos públicos com a severidade, que pedir a deformidade do insulto, e a circunstância do escândalo; persua­dindo-lhes, que na igualdade do prêmio, e do castigo, consiste o equilíbrio da Justiça, e bom governo das Repúblicas. Vendo porém os Diretores, que são infrutuosas as suas advertências, e que não basta a eficácia  da sua direção para que os ditos Juizes Ordinários, e Principais, castiguem exem­plarmente os culpados; para que não aconteça, como regular­mente sucede, que a dissimulação dos delitos pequenos seja a causa de se cometerem culpas maiores, o participarão logo ao Governador do Estado, e Ministros de Justiça, que procederão nesta matéria na forma das Reais Leis de S. Majestade, nas quais recomenda o mesmo Senhor, que nos casti­gos das referidas culpas se pratique toda aquela suavidade, e brandura, que as mesmas Leis permitirem, para que o horror do castigo os não obrigue a desamparar as suas Povoações, tornando para os escandalosos erros da Gentilidade.

3 Não se podendo negar, que os índios deste Estado se conservaram até agora na mesma barbaridade, como se vivessem nos incultos Sertões, em que nasceram, praticando os péssimos, e abomináveis costumes do Paganismo, não só privados do verdadeiro conhecimento dos adoráveis mistérios da nossa Sagrada Religião, mas até das mesmas conveniências Temporais, que só se podem conseguir pelos meios da civilidade, da Cultura, e do Comércio: E sendo evidente, que as paternais providências de Nosso Augusto Soberano, se dirigem unicamente a cristianizar, e civilizar estes até agora infelizes, e miseráveis Povos, para que saindo da ignorância, e rusticidade, a que se acham reduzidos, possam ser úteis a si, aos moradores, e ao Estado: Estes duos virtuosos, e importantes fins, que sempre foi a heróica empresa do incomparável zelo dos nossos Católicos, e Fidelíssimos Monarcas, serão o principal objeto da reflexão, e cuidado dos Diretores.

4 Para se conseguir pois o primeiro fim, qual é o cristianizar os índios, deixando esta matéria, por ser meramente espiritual, à exemplar vigilância do Prelado desta Diocese; recomendo unicamente aos Diretores, que da sua parte dêem todo o favor, e auxílio, para que as determinações do dito Prelado respectivas à direção das Almas, tenham a sua devida execução; e que os Índios tratem aos seus Párocos com aquela veneração, e respeito, que se deve ao seu alto caráter, sendo os mesmos Diretores os primeiros, que com as exemplares ações de sua vida lhes persuadam a observância deste Parágrafo.

5 Enquanto porém à civilidade dos Índios, a que se reduz a principal obrigação dos Diretores, por ser própria do seu ministério; empregarão estes um especialíssimo cuidado em lhes persuadir todos aqueles meios, que possam ser conducentes a tão útil, e interessante fim, quais são os que vou a referir.

6 Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se introduz neles o uso da Língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo Príncipe. Observando pois todas as Nações polidas do Mundo, este prudente, e sólido sistema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer nela o uso da Língua, que chamaram geral; invenção verdadeiramente abominável, e diabólica, para que privados os Índios de todos aqueles meios, que os podiam civilizar, permanecessem na rústica, e bárbara sujeição, em que até agora se conservavam. Para desterrar esse perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado.

7 E como esta determinação é a base fundamental da Civilidade, que se pretende, haverá em todas as Povoações duas Escolas públicas, uma para os Meninos, na qual se lhes ensine a Doutrina Cristã, a ler, escrever, e contar na forma, que se pratica em todas as Escolas das Nações civilizadas; e outra para as Meninas, na qual, além de serem instruídas na Doutrina Cristã, se lhes ensinará a ler, escrever, fiar, fazer renda, costura, e todos os mais ministérios próprios daquele sexo.

8 Para a subsistência das sobreditas Escolas, e de um Mestre, e uma Mestra, que devem ser Pessoas dotadas de bons costumes, prudência, e capacidade, de sorte, que possam desempenhar as importantes obrigações de seus empregos; se destinarão ordenados suficientes, pagos pelos Pais dos mesmos Índios, ou pelas Pessoas, em cujo poder eles viverem, concorrendo cada um deles com a porção, que se lhes arbitrar, ou em dinheiro, ou em efeitos, que será sempre com atenção à grande miséria, e pobreza, a que eles presentemente se acham reduzidos. No caso porém de não haver nas Povoações Pessoa alguma, que possa ser Mestra de Meninas, poderão estas até a idade de dez anos serem instruídas na Escola dos Meninos, onde aprenderão a Doutrina Cristã, a ler, e escrever, para que juntamente com as infalíveis verdades da nossa Sagrada Religião adquiram com maior facilidade o uso da Língua Portuguesa.

9 Concorrendo muito para a rusticidade dos Índios a vileza, e o abatimento, em que têm sido educados, pois até os mesmos Principais, Sargentos maiores, Capitães, e mais Oficiais das Povoações, sem embargo dos honrados empregos que exercitavam, muitas vezes eram obrigados a remar as Canoas, ou a ser Jacumáuas, e Pilotos delas, com escandalosa desobediência às Reais Leis de Sua Majestade, que foi servido recomendar aos Padres Missionários por Cartas do 1., e 3. de Fevereiro de 1701. firmadas pela sua Real Mão, o grande cuidado que deviam ter em guardar aos Índios as honras, e os privilégios competentes aos seus postos: E tendo consideração a que nas Povoações civis deve precisamente haver diversa graduação de Pessoas a proporção dos ministérios que exercitam, as quais pede a razão, que sejam tratadas com aquelas honras, que se devem aos seus empregos: Recomendo aos Diretores, que assim em público, como em particular, honrem, e estimem a todos aqueles Índios, que forem Juízes Ordinários, Vereadores, Principais, ou ocuparem outro qualquer posto honorífico; e também as suas famílias; dando-lhes assento na sua presença; e tratando-os com aquela distinção, que lhes for devida, conforme as suas respectivas graduações, empregos e cabedais; para que, vendo-se os ditos Índios estimados pública, e particularmente, cuidem em merecer com o seu bom procedimento as distintas honras, com que são tratados; separando-se daqueles vícios, e desterrando aquelas baixas imaginações, que insensivelmente os reduziram ao presente abatimento, e vileza.

10 Entre os lastimosos princípios, e perniciosos abusos, de que tem resultado nos Índios o abatimento ponderado, é sem dúvida um deles a injusta, e escandalosa introdução de lhes chamarem Negros; querendo talvez com a infâmia, e vileza deste nome, persuadir-lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se imagina a respeito dos Pretos da Costa da África. E porque, além de ser prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos Índios este abominável abuso, seria indecoroso às Reais Leis de Sua Majestade chamar Negros a uns homens, que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar por isentos de toda, e qualquer infâmia, habilitando-os para todo o emprego honorífico: Não consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoa alguma chame Negros aos Índios, nem que eles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavam; para que compreendendo eles, que lhes não compete a vileza do mesmo nome, possam conceber aquelas nobres idéias, que naturalmente infundem nos homens a estimação, e a honra.

11 A Classe dos mesmos abusos se não pode duvidar, que pertence também o inalterável costume, que se praticava em todas as Aldeias, de não haver um só Índio, que tivesse sobrenome. E para se evitar a grande confusão, que precisamente havia de resultar de haver na mesma Povoação muitas Pessoas com o mesmo nome, e acabarem de conhecer os Índios com toda a evidência, que buscamos todos os meios de os honrar, e tratar, como se fossem Brancos; terão daqui por diante todos os Índios sobrenomes, havendo grande cuidado nos Diretores em lhes introduzir os mesmos Apelidos, que os das Famílias de Portugal; por ser moralmente certo, que tendo eles os mesmos Apelidos, e Sobrenomes, de que usam os Brancos, e as mais Pessoas que se acham civilizadas, cuidarão em procurar os meios lícitos, e virtuosos de viverem, e se tratarem à sua imitação.

12 Sendo também indubitável, que para a incivilidade, e abatimento dos Índios, tem concorrido muito a indecência, com que se tratam em suas casas, assistindo diversas Famílias em uma só, na qual vivem como brutos; faltando àquelas Leis da honestidade, que se deve à diversidade dos sexos; do que necessariamente há de resultar maior relaxação nos vícios; sendo talvez o exercício deles, especialmente o da torpeza, os primeiros elementos com que os Pais de Família educam a seus filhos: Cuidarão muito os Diretores em desterrar das Povoações este prejudicialíssimo abuso, persuadindo aos Índios que fabriquem as suas casas a imitação dos Brancos; fazendo nelas diversos repartimentos, onde vivendo as Famílias com separação, possam guardar, como Racionais, as Leis da honestidade, e polícia.

13 Mas concorrendo tanto para a incivilidade dos Índios vícios, e abusos mencionados, não se pode duvidar, que o da ebridade os tem reduzido ao último abatimento; vício entre eles tão dominante, e universal, que apenas se conhecerá um só Índio, que não esteja sujeito à torpeza deste vício. Para destruir pois este poderoso inimigo do bem comum do Estado, empregarão os Diretores todas as suas forças em fazer evidente aos mesmos Índios a deformidade deste vício; persuadindo-lhes com a maior eficácia o quanto será escandaloso, que, aplicando Sua Majestade todos os meios para que eles vivam com honra, e estimação, mandando-lhes entregar a administração, e o governo Temporal das suas respectivas Povoações; ao mesmo tempo, em que só deviam cuidar em se fazer beneméritos daquelas distintas honras, se inabilitem para elas, continuando no abominável vício de suas ebridades.

14 Porém como a Reforma dos costumes, ainda entre homens civilizados, é a empresa mais árdua de conseguir-se, especialmente pelos meios da violência, e do rigor; e a mesma natureza nos ensina, que só se pode chegar gradualmente ao ponto da perfeição, vencendo pouco a pouco os obstáculos, que a removem, e a dificultam: Advirto aos Diretores, que para desterrar nos Índios as ebridades, e os mais abusos ponderados, usem dos meios da suavidade, e da brandura; para que não suceda, que degenerando a reforma em desesperação, se retirem do Grêmio da Igreja, a que naturalmente os convidará de uma parte o horror do castigo, e da outra a congênita inclinação aos bárbaros costumes, que seus Pais lhes ensinaram com a instrução, e com o exemplo.

15 Finalmente, sendo a profanidade do luxo, que consiste na excessiva, e supérflua preciosidade das galas, um vício dos capitães, que tem empobrecido, e arruinado os Povos; é lastimoso o desprezo, e tão escandalosa a miséria, com que os Índios costumam vestir, que se faz preciso introduzir neles aquelas imaginações, que os possam conduzir a um virtuoso, e moderado desejo de usarem de vestidos decorosos, e decentes; desterrando deles a desnudez, que sendo efeito não da virtude, mas da rusticidade, tem reduzido a toda esta Corporação de gente à mais lamentável miséria. Pelo que ordeno aos Diretores, que persuadam aos Índios os meios lícitos de adquirirem pelo seu trabalho com que se possam vestir à proporção da qualidade de suas Pessoas, e das graduações de seus postos; não consentindo de modo algum, que andem nus, especialmente as mulheres em quase todas as Povoações, com escândalo da razão, e horror da mesma honestidade.

16 Dirigindo-se todas as Reais Leis, que até agora emanaram do Trono, ao bom regimen [sic] dos Índios, ao bem espiritual, e temporal deles: E querendo os nossos Augustos Monarcas, que os mesmos Índios pelo meio do seu honesto trabalho, sendo úteis a si, concorram para o sólido estabelecimento do Estado, fazendo-se entre eles, e os Moradores recíprocas as utilidades, e comunicáveis os interesses, como já se declarou no §. 9 do Regimento das Missões; para o que foi servido o mesmo Senhor mandar entregar aos Padres Missionários a administração Econômica, e Política dos mesmos Índios; cujos importantes fins só se podiam conseguir pelos meios da Cultura, e do Comércio: De tal sorte se executaram estas piíssimas, e Reais Determinações, que aplicados os Índios unicamente às conveniências particulares, não se omitiu meio algum de os separar do Comércio, e da Agricultura. Para se conseguir pois estes dous virtuosos, e interessantes fins, observarão os Diretores as ordens seguintes.

17 Em primeiro lugar cuidarão muito os Diretores em lhes persuadir o quanto lhes será útil o honrado exercício de cultivarem as suas terras; porque por este interessante trabalho não só terão os meios competentes para sustentarem com abundância as suas casas, e famílias; mas vendendo os gêneros, que adquirirem pelo meio da cultura, se aumentarão neles os cabedais à proporção da lavoura, e plantações, que fizerem. E para que estas persuasões cheguem a produzir o efeito, que se deseja, lhes farão compreender os Diretores, que a sua negligência, e o seu descuido, tem sido a causa do abatimento, e pobreza, a que se acham reduzidos; não omitindo finalmente diligência alguma de introduzir neles aquela honesta, e louvável ambição, que desterrando das Repúblicas o pernicioso vício da ociosidade, as constitui populosas, respeitadas e opulentas.

18 Conseqüentemente lhes persuadirão os Diretores, que dignando-se Sua Majestade de os habilitar para todos os empregos honoríficos, tanto os não inabilitará para estas ocupações o trabalharem nas suas próprias terras; que antes pelo contrário, o que render mais serviço ao público neste frutuoso trabalho, terá preferência a todos nas honras, nos privilégios, e nos empregos, na forma que Sua Majestade ordena.

19 Depois que os Diretores tiverem persuadido aos Índios estas sólidas, e interessantes máximas, de sorte, que eles percebam evidentemente o quanto lhes será útil o trabalho, e prejudicial a ociosidade; cuidarão logo em examinar com a possível exatidão, se as terras, que possuem os ditos Índios (que na forma das Reais ordens de Sua Majestade devem ser adjacentes às suas respectivas Povoações) são competentes para o sustento das suas casas, e famílias; e para nelas fazerem as plantações, e as lavouras; de sorte, que com a abundância dos gêneros possam adquirir as conveniências, de que até agora viviam privados, por meio do comércio em benefício comum do Estado. E achando que os Índios não possuem terras suficientes para a plantação dos preciosos frutos, que produz este fertilíssimo País; ou porque na distribuição delas se não observaram as Leis da eqüidade, e da justiça; ou porque as terras adjacentes às suas Povoações foram dadas em sesmarias às outras Pessoas particulares; serão obrigados os Diretores a remeter logo ao Governador do Estado uma lista de todas as terras situadas no continente das mesmas Povoações, declarando os Índios, que se acham prejudicados na distribuição, para se mandarem logo repartir na forma que Sua Majestade manda.

20 Consistindo a maior felicidade do País na abundância de pão, e de todos os mais víveres necessários para a conservação da vida humana; e sendo as terras, de que se compõem este Estado, as mais férteis, e abundantes, que se reconhecem no Mundo; dous princípios têm concorrido igualmente para a consternação, e miséria, que nele se experimenta. O primeiro é a Ociosidade, vício quase inseparável, e congênito a todas as Nações incultas, que sendo educadas nas densas trevas da sua rusticidade, até lhe faltam as luzes do natural conhecimento da própria conveniência. O segundo é o errado uso, que até agora se fez do trabalho dos mesmos Índios, que aplicados à utilidade particular de quem os administrava, e dirigia; haviam de padecer os habitantes do Estado o prejudicialíssimo dano de não ter quem os servisse, e ajudasse na colheita dos frutos, e extração das drogas; e os miseráveis Índios, faltando por este princípio a interessantíssima obrigação das suas terras, haviam de experimentar o irreparável prejuízo dos muitos, e preciosos efeitos, que elas produzem.

21 Estes sucessivos danos, que tem resultado sem dúvida dos mencionados princípios, arruinaram o interesse público; diminuíram nos Povos o comércio; e chegaram a transformar neste País a mesma abundância em esterilidade de sorte, que pelos anos de, 1754., e 1755. chegou a tal excesso a carestia da farinha, que, vendendo-se a pouca, que havia, por preços exorbitantes; as pessoas pobres, e miseráveis, se viam precisadas a buscar nas frutas silvestres do mato o quotidiano sustento com evidente perigo das próprias vidas.

22 Ensinando pois a experiência, e a razão, que assim como nos Exércitos faltos de pão não pode haver obediência, e disciplina; assim nos Países, que experimentam esta sensível falta, tudo é confusão, e desordem; vendo-se obrigados os habitantes deles a buscar nas Regiões estranhas, e remotas, o mantimento preciso com irreparável detrimento das manufaturas, das lavouras, dos tráficos, e do louvável, e virtuoso trabalho da Agricultura. Para se evitarem tão perniciosos danos, terão os Diretores um especial cuidado em que todos os Índios, sem exceção alguma, façam Roças de maniba, não só as que forem suficientes para a sustentação de suas casas, e famílias, mas com que se possa prover abundantemente o Arraial do Rio Negro; socorrer os moradores desta Cidade; e municionar as Tropas, de que se guarnece o Estado: Bem entendido, que a abundância da farinha, que neste País serve de pão, como base fundamental do comércio, deve ser o primeiro, e principal objeto dos Diretores.

23 Além das Roças de maniba, serão obrigados os Índios a plantar feijão, milho, arroz, e todos os mais gêneros comestíveis, que com pouco trabalho dos Agricultores costumam produzir as fertilíssimas terras deste País; com os quais se utilizarão os mesmos Índios; se aumentarão as Povoações; e se fará abundante o Estado; animando-se os habitantes dele a continuar no interessantíssimo Comércio dos Sertões, que até aqui tinham abandonado, ou porque totalmente lhes faltavam os mantimentos precisos para o fornecimento das Canoas; ou porque os excessivos preços, porque se vendiam, lhes diminuíam os interesses.

24 Sendo pois a Cultura das terras o sólido fundamento daquele Comércio, que se reduz à venda, e comutação dos frutos; e não podendo duvidar-se, que entre os preciosos efeitos, que produz o País, nenhum é mais interessante que o algodão: Recomendo aos Diretores, que animem aos Índios a que façam plantações deste último gênero, novamente recomendado pelas Reais ordens de Sua Majestade: Porque sendo a abundância dele o meio mais proporcionado para se introduzirem neste Estado as Fábricas deste pano, em breve tempo virá a ser este ramo de Comércio o mais importante para os moradores dele, com recíproca utilidade não só do Reino, mas das Nações Estrangeiras.

25 Igual utilidade a das plantações de algodão, considero-a nas lavouras do Tabaco, gênero sem dúvida tão útil para os Lavradores dele, como se experimenta nas mais partes da nossa América; não só pelo grande consumo, que há deste precioso gênero nos mesmos Países, que o produzem; mas porque, suposta a indefectível extração, que há dele para o Reino; evidentemente se compreende o quanto este ramo de Comércio será importante para os moradores do Estado. Mas como as lavouras do Tabaco são mais laboriosas, que as plantações dos mais gêneros; será preciso, para se introduzir nos Índios este interessantíssimo trabalho, que os Diretores os animem, propondo-lhes não só as conveniências, mas as honras, que dele lhes hão de resultar; persuadindo-lhes, que à proporção das arrobas de Tabaco, com que cada um deles entrar na Casa de Inspeção, se lhes distribuirão os empregos, e os privilégios.

26 E como para se estabelecer a Cultura dos mencionados gêneros nas referidas Povoações, não bastará toda a atividade, e zelo dos Diretores, sendo mais poderoso, que as suas práticas, o inimigo comum da frouxidão, e negligência dos Índios, que com a sua aparente suavidade os tem radicado nos seus péssimos costumes com abatimento total do interesse público: Para o Governador do Estado, sendo informado daqueles Índios, que entregues ao abominável vício da ociosidade faltarem à importantíssima obrigação da Cultura das suas terras, possa dar as providências necessárias para remediar tão sensíveis danos; serão obrigados os Diretores a remeter todos os anos uma lista das Roças, que se fizerem, declarando nela os gêneros, que se plantaram, pelas suas qualidades; e os que se receberam; e também os nomes assim dos Lavradores, que cultivaram os ditos gêneros, como dos que não trabalharam; explicando as causas, e os motivos, que tiveram para faltarem a tão precisa, e interessante obrigação; para que à vista das referidas causas possa o mesmo Governador louvar em uns o trabalho, e a aplicação; e castigar em outros a ociosidade, e a negligência.

27 Sendo inúteis todas as providências humanas, quando não são protegidas pelo poderoso braço da Onipotência Divina; para que Deus Nosso Senhor felicite, e abençoe o trabalho dos Índios na Cultura das suas terras, será preciso desterrar de todas estas Povoações o diabólico abuso de se não pagarem Dízimos. Em sinal do supremo domínio reservou Deus para si, e para os seus Ministros, a décima parte de todos os frutos, que produz a terra, como Autor universal de todos eles. Sendo esta obrigação commua [sic] a todos os Católicos, é tão escandalosa a rusticidade, com que têm sido educados os Índios, que não só não reconheciam a Deus com este limitadíssimo tributo, mas até ignoravam a obrigação que tinham de o satisfazer. Para desterrar pois dos Índios este perniciosíssimo,  costume, que na realidade se deve reputar por abuso, por ser matéria, que, conforme o Direito, não admite prescrição; e para que Deus Nosso Senhor felicite os seus trabalhos, e as suas lavouras: Serão obrigados daqui por diante a pagar os Dízimos, que consistem na décima parte de todos os frutos, que cultivarem, e de todos os gêneros, que adquirirem, sem exceção alguma; cuidando muito os Diretores, em que os referidos Índios observem exatamente a Pastoral, que o Digníssimo Prelado desta Diocese mandou publicar em todo o Bispado, respectiva a esta importantíssima matéria.

28 Mas como a observância deste Capítulo será sumamente dificultosa, enquanto se não destinar método claro, racionavel, e fixo, para se cobrarem os Dízimos sem detrimento dos Lavradores, nem prejuízo da Fazenda Real; atendendo por uma parte a que os Índios costumam desfazer intempestivamente as Roças para fomento das suas ebriedades; e por outra ao pouco escrúpulo, com que deixaram de satisfazer este preceito, por ignorarem assim as Censuras Eclesiásticas, em que incorrem os transgressores dele; como os horrorosos castigos, que o mesmo Senhor lhes tem fulminado; serão obrigados os Diretores no tempo, que julgarem mais oportuno, a examinar pessoalmente todas as Roças na companhia dos mesmos Índios, que as fabricaram; levando consigo dous Louvados, que sejam pessoas de fidelidade, e inteireza; um por parte da Fazenda Real, que nomearão os Diretores; e outro, que os Lavradores nomearão pela sua parte.

29 Aos ditos Louvados recomendarão os Diretores, depois de lhes deferir o juramento, que sendo chamados para avaliarem todos os frutos, que pouco mais ou menos poderão render naquele ano as ditas Roças; de tal sorte se devem dirigir pelos ditames da equidade, que se atenda sempre à notória pobreza dos Índios; fazendo-se a dita avaliação a favor dos Agricultores. Concordando os ditos Louvados nos votos, se fará logo assento em um caderno, de que avaliando os Louvados F., e F. a Roça de tal Índio, julgaram uniformemente, que renderia naquele ano tantos alqueires, dos quais pertencem tantos ao Dízimo: Cujo assento deve ser assinado pelos Diretores, Louvados, e pelos mesmos Lavradores. No caso porém de não concordarem nos votos, nomearão as Câmaras nas Povoações, que passarem a ser Vilas, e nas que ficarem sendo Lugares os seus respectivos Principais, terceiro Louvado, a quem os Diretores darão também o juramento para que decidam a dita avaliação pela parte, que lhe parecer justo, de que se fará assento no referido caderno.

30 Concluída deste modo a avaliação do rendimento das Roças, mandarão os Diretores extrair do caderno mencionado uma Folha pelo Escrivão da Câmera; e na sua ausência, ou impedimento, pelo do Público, pela qual se deve fazer a cobrança dos Dízimos; cuja importância líquida se lançará em um livro, que haverá em todas as Povoações, destinado unicamente para este ministério, e rubricado pelo Provedor da Fazenda Real: Declarando-se nele em o Título da Receita assim as distintas parcelas que se receberam, como os nomes dos Lavradores, que as entregaram: Concluindo-se finalmente a dita Receita com um Termo feito pelo mesmo Escrivão, e assinado pelo Diretor, como Recebedor dos referidos Dízimos. Advertindo porém que nem um, nem outro, poderão levar emolumentos alguns pelas referidas diligências, por serem dirigidas à arrecadação da Fazenda Real, à qual pertencem em todas as Conquistas os Dízimos na conformidade das Bulas Pontifícias.

31 E para que os ditos Diretores não experimentem prejuízo algum na arrecadação dos referidos gêneros, que lhes ficam carregados em Receita; haverá em todas as Povoações um Armazém, em que todos estes efeitos se possam conservar livres de corrupção, ou de outro qualquer detrimento; ficando por conta dos mesmos Diretores o beneficiarem os ditos gêneros, de sorte, que por este princípio não padeçam a menor danificação, até serem remetidos para esta Provedoria. O que os Diretores executarão na forma seguinte.

32 Em primeiro lugar, mandarão fazer duas guias autênticas, que devem ser extraídas fielmente assim do livro dos Dízimos, como das Folhas das avaliações, que remeterão juntamente com os efeitos ao Provedor da Fazenda Real; ficando também com a obrigação de enviar ao Governador do Estado as cópias de uma, e outra lista. Mas como pode suceder, que a Canoa do transporte experimente nestes caudalosos rios algum naufrágio, e seria encargo não só penoso, mas insuportável aos Diretores, o ficarem obrigados à satisfação daquela perda, que inculpavelmente acontecer, por ser contra toda forma de Direito padecer a pena quem não comete a culpa; tanto que os Diretores embarcarem os Dízimos na Canoa do transporte, mandarão logo fazer no mencionado livro Termo de despesa, observando a mesma forma, que se declara no da Receita; com advertência porém, que serão obrigados a fazer o dito transporte com a possível cautela, e segurança; escolhendo a melhor Canoa; destinando-lhe a esquipação competente; e entregando o governo dela àquela Pessoa, que lhe parecer mais capaz de dar conta com honra, e fidelidade, dos Dízimos, que se lhe entregaram: Bem entendido, que omitindo os Diretores alguma destas circunstâncias; e procedendo desta culpável omissão ou naufragar a Canoa, ou padecer a importância dos Dízimos outro qualquer detrimento; ficarão com a indispensável obrigação de satisfazer à Fazenda Real todo o dano, que houver.

33 Finalmente, sendo precisa toda a cautela, e vigilância, na boa arrecadação dos Dízimos; e devendo evitar-se nesta importante matéria qualquer desordem, e confusão; apenas se fizer entrega deles neste Almoxarifado, os mandará o Provedor da Fazenda Real carregar em Receita viva ao Almoxarife; declarando nela o nome da Vila, de que vieram os tais Dízimos, e o Diretor, que os remeteu; de cuja Receita mandará entregar o dito Ministro uma Certidão ao Cabo da Canoa, para que sirva de descarga ao dito Diretor; e para que a todo o tempo, que for removido do seu emprego, possa dar contas nesta Provedoria pelas mesmas Certidões do líquido, que remeteu para ela. E dada que seja a dita conta na forma sobredita, o Provedor da Fazenda Real lhe mandará passar para sua descarga uma Quitação geral, que apresentará ao Governador do Estado, para lhe ser constante a fidelidade, e inteireza, com que executou as suas ordens.

34 E suposto que devo esperar da Cristandade, e zelo dos Diretores, a inviolável observância de todos os Parágrafos respectivos à Cultura das terras, plantações dos gêneros, e cobrança dos Dízimos; por confiar deles, que reputarão pelo mais estimável prêmio a incomparável honra de se empregarem no Real serviço de Sua Majestade: Como ditam as leis da Justiça, que sendo recíprocos os trabalhos, e incômodos, devem ser commuas [sic] as utilidades, e os interesses; pertencerá aos Diretores a sexta parte de todos os frutos, que os Índios cultivarem, e de todos os gêneros, que adquirirem, não sendo comestíveis: E sendo comestíveis, só daqueles, que os mesmos Índios venderem, ou com que fizerem outro qualquer negócio: Para que animados com este justo, e racionável prêmio, desempenhem com o maior cuidado as importantes obrigações do seu ministério; e a mesma conveniência particular lhes servirá de estímulo para dirigirem os Índios com a possível eficácia no interessantíssimo trabalho da Agricultura.

35 Sendo pois a Cultura das terras o sólido princípio do comércio, era infalível conseqüência, que este se abatesse à proporção da decadência daquela; e que pelo trato dos tempos viessem a produzir estas duas causas os lastimosos efeitos da total ruína do Estado. Para reparar pois tão prejudicial, e sensível dano, observarão os Diretores a este respeito as ordens seguintes.

36 Entre os meios, que podem conduzir qualquer República a uma completa felicidade, nenhum é mais eficaz, que a introdução do Comércio, porque ele enriquece os Povos, civiliza as Nações, e conseqüentemente constitui poderosas as Monarquias. Consiste essencialmente o Comércio na venda, ou comutação dos gêneros, e na comunicação com as gentes; e se desta resulta a civilidade, daquela o interesse, e a riqueza. Para que os Índios destas novas Povoações logrem a sólida felicidade de todos estes bens, não omitirão os Diretores diligência alguma proporcionada a introduzir nelas o Comércio, fazendo-lhes demonstrativa a grande utilidade, que lhes há de resultar de venderem pelo seu justo preço as drogas, que extraírem dos Sertões, os frutos, que cultivarem, e todos os mais gêneros, que adquirirem pelo virtuoso, e louvável meio da sua indústria, e do seu trabalho.

37 É certo indisputavelmente, que na liberdade consiste a alma do comércio. Mas sem embargo de ser esta a primeira, e mais substancial máxima da Política; como os Índios pela sua rusticidade, e ignorância, não podem compreender a verdadeira, e legítima reputação de seus gêneros; nem alcançar o justo preço das fazendas, que devem comprar para o seu uso: Para se evitarem os irreparáveis dolos, que as péssimas imaginações dos comerciantes deste País têm feito inseparáveis dos seus negócios; observarão os Diretores as determinações abaixo declaradas, as quais de nenhum modo ofendem a liberdade do comércio, por serem dirigidas ao bem comum do Estado, e à utilidade particular dos mesmos comerciantes.

38 Primeiramente haverá em todas as Povoações, Pesos, e Medidas, sem as quais senão pode conservar o equilíbrio na Balança do comércio. Em todo este Estado tem feito evidente a experiência os perjudicialíssimos [sic] danos, que produziu este intolerável abuso; oposto igualmente aos interesses públicos, e particulares; porque costumando-se vender em todas estas Povoações a Farinha, Arroz, e Feijão por Paneiros, sem que fossem alqueirados, precisamente haviam de ser recíprocos os prejuízos pela falta de fé pública, que é a base fundamental de todo o negócio. Para remediar esta perniciosíssima desordem, ordeno aos Diretores cuidem logo, em que nas suas Povoações haja Pesos, e Medidas, as quais devem ser aferidas pelas respectivas Câmeras; porque deste modo, nem os Índios poderão falsificar os Paneiros na deminuição [sic] dos gêneros; nem as pessoas, que comerceiam [sic] com eles experimentarão a violência de os satisfazer como alqueires não o sendo na realidade: Estabelecendo-se deste modo entre uns, e outros aquela mútua fidelidade, sem a qual nem o comércio se pode aumentar, nem ainda subsistir.

39 Em segundo lugar, recomendo aos ditos Diretores, que por nenhum modo consintam, que os Índios, comerceiem [sic] ao seu pleno arbítrio; porque não podendo negar-se-lhes a liberdade de venderem, ou comutarem os frutos, que tiverem cultivado, aquelas pessoas, e naquelas partes donde lhes possa resultar maior utilidade; nem devendo proibir-se aos moradores do Estado o comerciar com os ditos Índios nas suas mesmas Povoações; porque deste modo se ficaria conservando a odiosa separação, que até agora se praticou entre uns, e outros contra as Reais intenções de Sua Majestade, como já se declarou no §. IX do Regimento das Missões; como subposto [sic] da parte dos Índios o desinteresse, e a ignorância; e da parte dos moradores, o conhecimento, e ambição; ficando a venda dos gêneros ao arbítrio, e convenção das partes, faltaria no mesmo comércio a igualdade; não poderão os Índios até segunda ordem de Sua Majestade fazer negócio algum sem a assistência dos seus Diretores, para que regulando estes racionavelmente [sic] o preço dos frutos, e o valor das fazendas, sejam recíprocas as utilidades entre uns, e outros comerciantes.

40 Ficando pois na liberdade dos Índios ou vender seus frutos por dinheiro, ou comutá-los por fazendas, na forma que costumam as mais Nações do Mundo; sendo inegavelmente certo, que entre as mesmas fazendas, umas são nocivas aos Índios, como é a aguardente, e outra qualquer bebida forte; e outras se devem reputar supérfluas, atendendo ao miserável estado a que se acham reduzidos; não consentirão os Diretores, que eles comutem os seus gêneros por fazendas, que lhe não sejam úteis, e precisamente necessárias para o seu decente vestido, e das suas famílias, e muito menos por aguardente que neste Estado é o siminário [sic] das maiores iniqüidades, perturbações, e desordens.

41 E como para extinguir totalmente, o injusto, e prejudicial comércio da aguardente, não bastaria só proibir aos Índios ocumutarem [sic] por ela os seus efeitos, não se cominando pena grave a todos aqueles que costumam introduzir nas Povoações este pernicioso gênero: Ordeno aos Diretores, que apenas chegar ao Porto das suas respectivas Povoações alguma Canoa, ou outra qualquer embarcação, a vão logo examinar pessoalmente, levando na sua companhia o Principal, e o Escrivão da Câmera; e na falta destes a Pessoa, que julgarem de maior capacidade; e achando na dita embarcação aguardente; (que não seja para o uso dos mesmos Índios que arremam na forma abaixo declarada), prenderão logo o Cabo da dita Canoa, e o remeterão a esta Praça a ordem do Governador do Estado; tomando por perdida a dita aguardente que se aplicará para os gastos da mesma Povoação, de que se fará termo de tomada nos livros da Câmera assinada pelos Diretores, e mais pessoas que a presenciarem.

42 Mas, porque pode suceder, que fazendo viagem alguma destas Canoas para o Sertão, ou para outra qualquer parte que seja indispensavelmente necessário conduzir algumas frasqueiras de aguardente; ou para remédio, ou para gasto dos Índios da sua esquipação; o que devem depor os mesmos Cabos, debaixo de juramento, que lhe diferirão os Diretores; para se acautelarem os irreparáveis danos, que os ditos Cabos podem causar nas Povoações, por meio desse prejudicialíssimo comércio; enquanto eles se demorarem naqueles Portos mandarão os Diretores por em depósito as sobreditas frasqueiras em parte, onde possam ser guardadas com fidelidade, as quais lhe serão entregues apenas quiserem continuar a sua viagem, assinando termo de não contratarem com o referido gênero, assim naquela, como em outra Povoação.

43 Ao mesmo tempo, que para favorecer a liberdade do comércio, permito que os Índios possam vender nas suas, e em outras quaisquer Povoações os gêneros, que adquirirem, e os frutos, que cultivarem, excetuando unicamente os que forem necessários para a sustentação de suas casas, e famílias: o que só poderão fazer achando-se presente os seus Diretores na forma acima declarada. Ordeno aos meus Diretores debaixo das penas cominadas no §. 89., que nem por si, nem por interposta pessoa possa pessoalmente comprar aos Índios os referidos gêneros, nem estipular com eles direta, ou indiretamente negócio, ou contrato algum por mais racionável, e justo, que pareça.

44 E para, que os Diretores possam dar uma evidente demonstração da sua fidelidade, e do seu zelo, e os Índios possam vender os seus gêneros livres de todos os enganos, com que até agora foram tratados; logrando pacificamente à sombra da Real proteção de Sua Majestade, aquelas conveniências, que naturalmente lhes podem resultar de um negócio lícito, justo, e virtuoso: haverá em todas as Povoações um livro, chamado do Comércio, rubricado pelo Provedor da Fazenda Real, no qual os Diretores mandarão lançar pelos Escrivães da Câmera, ou do público, e na falta destes pelos Mestres das Escolas, assim os frutos, e gêneros, que se venderam, como as fazendas porque se comutaram; explicando-se a reputação destas, e o preço daquelas, e também o nome das pessoas, que comerciarão com os Índios, de cujos assentos, que serão assinados pelos mesmos Diretores, e comerciantes, extraindo-se uma lista em forma autêntica, a remeterão todos os anos ao Governador do Estado, para que se possa examinar com a devida exação e pureza, com que eles se conduziram em matéria tão importante como esta de que depende sem dúvida a subsistência, e aumento do Estado.

45 Mas como todas estas providências se dirigem primeiramente, a maior utilidade dos Índios; e vendo-se os gêneros na Cidade ficará sendo para eles mais vantajoso, e útil o comércio; atendendo por uma parte a maior reputação, que hão de ter nela; e por outra ao limitado dispêndio, que se fará nos transportes por ser este País cercado por toda a parte de Rios, pelos quais se podem transportar os gêneros com muita facilidade, e pouca despesa; recomendo aos Diretores, que persuadam os Índios pelos meios da suavidade, quais são neste caso, o propor-lhes a sua maior conveniência, que conduzam para a Cidade todos os gêneros, e frutos, que aliás poderiam vender nas suas Povoações; observando os Diretores nesta matéria aquela mesma forma, que se determina nos parágrafos subseqüentes a respeito do comércio do Sertão.

46 Não podendo duvidar-se, que entre os ramos do negócio de que se constitui o comércio deste Estado; nenhum é mais importante, nem mais útil, que o do Sertão; o qual não só consiste na extração das próprias Drogas, que nele produz a natureza; mas nas feitorias de manteigas de tartaruga, salgas de peixe, óleo de cupaiva, azeites de andiroba, e de outros muitos gêneros de que é abundante o país; empregarão os Diretores a mais exata vigilância, e incessante cuidado em introduzir, e aumentar o referido comércio nas suas respectivas Povoações. E para que nesta interessantíssima matéria possam os Diretores conduzir-se por uma regra fixa, e invariável, observarão a forma, que lhe vou a prescrever.

47 Em primeiro lugar se informarão da qualidade das terras, que são adjacentes, e próximas às suas Povoações, e dos efeitos, de que são abundantes: e achando, que delas se podará [sic] extrair com maior facilidade, este, ou aquele gênero, esse será o ramo do negócio a que apliquem todo o seu cuidado; bem entendido, que todo o comércio para se aumentar, e florescer, deve fundar-se nestas duas sólidas, e verdadeiras máximas: Primeiro, que em todo o negócio cresce a utilidade ao mesmo passo, a que determine a despesa, sendo evidentemente certo, que aquele gênero, que puder fabricar-se em menos tempo, e com menor número de trabalhadores, terá melhor consumo, e conseqüentemente será mais bem reputado: Segunda, que seria sumamente, prejudicial, que todas as Povoações de que se compõem uma Monarquia, ou um Estado, aplicando-se à fabrica, ou à extração de um só efeito, conservassem o mesmo ramo de comércio; não só porque a abundância daquele gênero o reduziria ao último abatimento com total prejuízo dos comerciantes; mas também porque as referidas Povoações não poderiam mutuamente socorrer-se, comprando umas o que lhes falta, e vendendo outras o que lhe sobeja.

48 Na inteligência destas duas fundamentais, e interessantes máximas, recomendo muito aos Diretores, que estabeleçam o comércio das suas respectivas Povoações, persuadindo aos Índios, aquele negócio, que lhes for mais útil na forma, que tenho ponderado, e ainda mais claramente explicarei. Se as ditas Povoações estiverem próximas ao mar, ou situadas nas margens de Rios, que sejam abundantes de peixes, será a feitoria das salgas o ramo do comércio, de que resultará maior utilidade, aos interessados. Se porém os Rios, e as terras adjacentes às suas Povoações produzirem com abundância cacau, salsa, cravo, ou outro qualquer efeito, empregarão os Diretores todo o seu cuidado em aplicar os Índios a esse ramo de negócio.

49 Para animar os ditos Índios e freqüentar gostosamente o interessante comércio do Sertão, lhes explicarão os Diretores, que daqui por diante toda a utilidade, que resultar do seu trabalho, se distribuirá entre eles mesmos; correspondendo a cada um o interesse à proporção do mesmo trabalho. E como a utilidade do referido negócio deve ser igual para todos, observarão os Diretores na nomeação, que fizerem deles para o mencionado comércio, a forma seguinte. Apenas se concluir o trabalho da cultura das terras, que em todas as circunstâncias deve ser o primeiro objeto dos seus cuidados, chamarão à sua presença todos os Principais, e mais Índios de que consta a Povoação: E achando que todos eles desejam ir ao negócio do Sertão, os nomearão juntamente, com os Principais, guardando inviolavelmente as Leis da alternativa: Porque deste modo experimentarão todos igualmente o peso do trabalho; e a suavidade do lucro; bem entendido, que a dita nomeação se fará exclusivamente daquela parte dos Índios que pertencerem à distribuição das Povoações como abaixo se declarará.

50 Mas como não seria justo, que os Principais, Capitães mores, Sargentos mores, e mais Oficiais, de que se compõe o governo de Povoações, ao mesmo tempo que Sua Majestade tem ordenado nas suas Reais, e piíssimas Leis que se lhes guardem todas aquelas honras competentes à graduação de seus postos, se reduzissem ao abatimento de se precisarem a ir pessoalmente à extração das drogas do Sertão; poderão os ditos Principais mandar nas Canoas, que forem ao dito negócio seis Índios por sua conta, não havendo mais que dous [sic] Principais na Povoação: E excedendo este número, poderão mandar até quatro Índios cada um; os Capitães mores, Sargentos mores quatro; e os mais Oficiais dous [sic]; os quais devem ser extraídos do número da repartição do Povo; ficando sobreditos Oficiais com a obrigação de lhe satisfazerem os seus sellarios [sic] na forma das Reais ordens de Sua Majestade. E querendo os ditos Principais, Capitães mores, e Sargentos mores, voluntariamente ir com os Índios, que se lhes distribuírem, à extração daquelas drogas, o poderão fazer alternativamente, ficando sempre metade dos Oficiais na Povoação.

51 Consistindo pois no aumento deste comércio o sólido estabelecimento do Estado; para que aquele não só subsista mas floresça, correrá por conta das Câmeras, nas Povoações, que forem Vilas, e nas quais forem lugares por conta dos Principais, a expedição das referidas Canoas; tendo o seu cargo, o mandá-las preparar em tempo hábil; provê-las dos mantimentos necessários; e de tudo o mais, que for preciso; para que possam fazer viagem ao Sertão; cujas despesas se lançarão nos livros das mesmas Câmeras; com a condição porém de que não poderão tomar resolução alguma nesta importante matéria; sem primeiro a participarem aos seus respectivos Diretores. Mas suposto encarrego ao zelo, e cuidado das Câmeras, e Principais a execução de todas estas providências, lhe recomendo que antes de expedirem as Canoas recorram por petição ao Governador do Estado, explicando o número dos Índios, de que se compõe a esquipação [sic] delas; assim para se lhes declarar o modo com que devem proceder a fatura do Cacau; como para se satisfazerem os novos direitos na mesma forma que se pratica com o outro qualquer morador.

52 E como as Canoas distinadas [sic] para o negócio, não só deve levar o número de Índios competentes à sua esquipação [sic], mas alguns de sobresselente, para que não suceda, que falecendo, enfermando, ou fugindo alguns, fiquem as Canoas nos Sertões, expostas ao último desemparo [sic], como repetidas vezes tem sucedido; poderão as mesmas Câmeras, e Principais dar licença para que as sobreditas Canoas levem dez até doze Índios além da sua esquipação [sic], que façam o negócio para si; isto se entende se acaso os houver; e que de forte nenhuma sejam dos que pertencem à distribuição do Povo; porque a este deve ficar sempre salvo o seu prejuízo.

53 Tendo ensinado a experiência, que os mesmos Cabos, a quem se entregam o governo, e a direção das Canoas, devendo sustentar a fé pública deste Comércio, a tem não só diminuído, mas totalmente arruinado; porque atraídos da utilidade própria, fazem com os mesmos Índios negócios particulares; bastando só esta circunstância para os constituir dolosos, e iníquos; terão grande cuidado o [sic] Diretores em que as Câmeras, e os Principais só nomeiem para Cabos das referidas Canoas, aquelas pessoas que forem de conhecida fidelidade; inteireza, honra, e verdade; cuja nomeação se fará pelas mesmas Câmeras, e Principais, mas sempre a contento daqueles Índios que forem interessados.

54 Feita deste modo sobredita nomeação, serão logo chamados às Câmeras os Cabos nomeados, para assinarem o termo de aceitação; obrigando-se por sua pessoa, e bens, não só a dar conta de toda a importância que receberem pertencente àquela expedição; mas à satisfação de qualquer prejuízo, que por sua culpa, negligência, ou descuido houver no dito negócio. E como sem embargo de todas estas cautelas poderão faltar os ditos Cabos às condições, a que se sujeitarem; ou porque esquecidos da fidelidade, e com que se deve tratar o Comércio compraram aos Índios particularmente os efeitos; ou porque os venderam aos moradores, antes de chegar às suas Povoações; Ordeno aos Diretores, que logo na chegada das Canoas, tirem uma exata informação nesta matéria; e achando que os Cabos cometeram culpa grave, além de serem obrigados a satisfazerem o prejuízo em dobro, que distribuirá entre os mesmos interessados, os remeterão presos ao Governo do Estado, para mandar proceder contra eles à proporção de seus delitos.

55 Felicitando Deus Nosso Senhor o comércio das referidas Canoas, virão estas em direitura às Povoações a que pertencer: nelas se fará logo o manifesto autêntico de toda a importância da carga: mandando os Diretores, lançar no livro do Comércio com toda a distinção, e clareza os gêneros de que constam a dita carregação: o que tudo se Executará, na presença dos Oficiais da Câmera, e de todos os Índios interessados. Concluída esta diligência, com a brevidade que permitir o tempo, cuidarão logo os Diretores depois de mandarem extrair duas guias em forma de todas as parcelas, que se lançará no livro do Comércio, remeter para esta Cidade os referidos efeitos; ordenando aos Cabos das mesmas Canoas, que apenas chegarem a este Porto, entreguem logo uma das guias ao Governador do Estado; e outra ao Tesoureiro geral do Comércio dos Índios: Para cujo emprego, por me parecer indispensavelmente necessário, nas circunstâncias presentes, tenho nomeado interinamente o Sargento mor Antonio Rodrigues Martins, atendendo à grande fidelidade, e notório zelo de que é dotado.

56 Tanto os Cabos das Canoas entregarem ao Tesoureiro geral as guias da carregação, terá este um especial cuidado, conferindo primeiro as cargas com as mesmas guias, de vender os gêneros, que receber, dando-lhes a melhor reputação, que permitir a qualidade deles, o que não poderá executar com efeito sem dar parte ao Governador do Estado. De todo o dinheiro, que liquidamente importar a venda dos sobreditos gêneros pagará o dito Tesoureiro em primeiro lugar os Dízimos à Fazenda Real; em segundo as despesas, que se fizeram naquela expedição; em terceiro a porção, que se arbitrar ao Cabo da mesma Canoa; em quarto, a sexta parte pertencente aos Diretores; distribuindo-se finalmente o remanescente em partes iguais por todos Índios interessados.

57 E para que de nenhum modo possa haver confusão na forma com que se devem pagar os Dízimos dos gêneros, que se extraem dos Sertões, declaro, que enquanto ao Cacau, Café, Cravo, e Salsa, pertence esta obrigação aos mesmos, que comprarem os referidos gêneros, dos quais se acostumam pagar os Dízimos na mesma ocasião do embarque. A respeito porém dos mais gêneros, como são Manteigas de Tartarugas, e toda a qualidade de Peixes, óleos de Cupaúba, azeite de Andiroba, e todos os mais efeitos, excetuando unicamente os frutos, que produz a terra por meio da cultura, sendo eles remetidos para esta Cidade, nela se pagarão os Dízimos dirigindo-se nesta matéria o Tesoureiro geral pelas Guias, que lhe forem remetidas. E se algum dos ditos gêneros se vender nas Povoações, serão obrigados os Diretores a cobrar os Dízimos observando a forma, que se lhes prescreve no parágrafo 30.

58 Finalmente como, suposta a rusticidade, ignorância dos mesmos Índios, entregar a cada um o dinheiro, que lhe compete, seria ofender não só as Leis da Caridade, mas da Justiça, pela notória incapacidade que têm ainda agora de o administrarem ao seu arbítrio, será obrigado o Tesoureiro geral a comprar com o dinheiro, que lhes pertencer na presença dos mesmos Índios aquelas fazendas de que eles necessitarem: Executando-se nesta parte inviolavelmente aquelas ordens com que tenho regulado nesta Cidade o pagamento dos ditos Índios, em benefício comum deles. Deste modo acabando de compreender com  evidência estes miseráveis Índios a fidelidade com que cuidamos nos seus interesses, e as utilidades, que correspondem ao seu tráfico, se reporão naquela boa fé de que depende a subsistência, e aumento do Comércio.

59 Sendo a distribuição dos Índios, um dos principais objetos a que se dirigirão sempre as paternais Providências, e piíssimas Leis de Sua Majestade: como em prejuízo comum dos seus Vassalos, se faltou à observância, que elas deverão ter, com escandalosa ofensa não só das Leis, da Justiça, e Piedade, mas até daquele mesmo decoro, que se deve aos respeitosos decretos dos nossos Augustos Soberanos: Para que as ditas Reais Ordens, tenham a sua devida execução; observarão os Diretores as determinações seguintes.

60 Ditam as Leis da natureza, e da razão, que assim como as partes no corpo físico deve concorrer para a conservação do todo, é igualmente percisa [sic] esta obrigação nas partes, que constituem o todo moral, e político. Contra os irrefragáveis ditames do mesmo direito natural, se faltou até agora a esta indispensável obrigação; afetando-se especiosos pertextos [sic] para se iludir a repartição do Povo, de que por infalível conseqüência se havia de seguir a ruína total do Estado; porque faltando aos moradores dele os operários de que necessitam para a fábrica das Lavouras, e para a extração das Drogas, precisamente se havia de diminuir a cultura, e abater o Comércio.

61 Estabelecendo-se neste sólido, e fundamental princípio as leis da distribuição, clara, e evidentemente compreenderão os Diretores, que deixando de observar esta Lei, se constituem Réus do mais abominável, e escandaloso delito; qual é embaraçar o estabelecimento, a conservação, o aumento, e toda felicidade do Estado, e frustrar as piíssimas intenções de Sua Majestade, as quais na forma do Alvará de 6 de Junho de 1755 se dirigem a que os Moradores dele se não vejam precisados a mandar vir obreiros, e trabalhadores de fora para o tráfico das suas Lavouras, e cultura das suas terras; e os Índios naturais dos Pais, não fiquem privados do justo estipêndio correspondente ao seu trabalho, que daqui por diante se lhe regulará na forma das Reais Ordens do dito Senhor: Fazendo-se por este modo entre uns, e outros recíprocos os interesses, de que sem dúvida resultarão ao Estado as ponderadas felicidades.

62 Pelo que recomendo aos Diretores, apliquem um especialíssimo cuidado, a que os Principais, a quem compete privativamente a execução das Ordens respectivas a distribuição dos Índios, não falte com eles aos moradores, que lhes presentarem [sic] Portarias do Governador do Estado; não lhes sendo lícito em caso algum, nem exceder o número da repartição; nem deixar de Executar as referidas Ordens, ainda que seja com detrimento da maior utilidade dos mesmos Índios; por ser indisputavelmente certo, que a necessidade commua [sic], constitui uma Lei superior a todos os incômodos, e prejuízos particulares.

63 E como Sua Majestade foi servido dar novo método ao governo destas Povoações; abolindo a administração temporal, que os Reguladores exercitavam nelas; e em conseqüência desta Real Ordem, fica cessando a forma da repartição dos Índios; os quais se dividirão em três partes; uma pertencente aos Padres Missionários; outra ao serviço dos Moradores; e outras às mesmas Povoações: Ordeno aos Diretores, que observem daqui por diante inviolavelmente, o parágrafo 15. do Regimento no qual o dito Senhor manda, que, dividindo-se os ditos Índios em duas partes iguais, uma delas se conserve sempre nas suas respectivas Povoações, assim para defesa do Estado, como para todas as diligências do seu Real serviço, e outra para se repartir pelos Moradores, não só para esquipação [sic] das Canoas, que vão extrair Drogas ao Sertão, mas para ajudar na plantação dos Tabacos, canas de Açúcar, Algodão, e todos os gêneros, que podem enriquecer o Estado, e aumentar o Comércio.

64 Para que a referida distribuição, se observe com aquela retidão, e inteireza, que pedem as Leis da Justiça distributiva, cessando de uma vez os clamores dos Povos que cada dia se faziam mais justificados pelos afetados pertextos [sic], com que se confundiam em tão interessante matéria, as repetidas Ordens de Sua Majestade; não se podendo compreender, se era mais abominável a causa, se mais prejudicial o efeito; haverá dos livros rubricados pelo Desembargador Juiz de Fora, em que se matriculem todos os Índios capazes de trabalho que na forma do §. XIII. do Regimento são todos aqueles, que tendo treze anos de idade, não passarem de sessenta.

65 Um destes livros se conservará em poder do Governador do Estado, e outro no do Desembargador Juiz de Fora, como Presidente da Câmera; nos quais se irão matriculando os Índios, que chegarem à referida Idade; riscando-se deste número todos aqueles, que constar por Certidões de seus Párocos, que tiverem falecido, e os que pela razão dos seus achaques se reputarem por incapazes de trabalho: O que se deve executar na conformidade das listas, que os Diretores remeterão todos os anos ao Governador do Estado, as quais devem estar na sua mão até o fim do mês de Agosto infalivelmente.

66 Sendo pois as referidas listas o documento, autêntico, pelo qual se devem regular todas as ordens respectivas à mesma distribuição, ordeno aos Diretores, que as façam todos os anos, declarando nelas fidelissimamente todos os Índios, que forem capazes de trabalho, na forma dos parágrados antecedentes, as quais serão assinados pelos mesmos Diretores, e Principais, com cominação de que faltando às Leis da verdade em matéria tão importante ao interesse público, uns, e outros serão castigados como inimigos comuns do Estado.

67 Mas ao mesmo tempo, que recomendo aos Diretores, e Principais a inviolável, e exata observância de todas as ordens respectivas à repartição do Povo; lhes ordeno, que não apliquem Índio algum ao serviço particular dos Moradores para fora das Povoações, sem que estes lhe apresentem licença do Governador do Estado, por escrito; nem consintam, que os ditos Moradores retenham em casa os referidos Índios além do tempo porque lhe forem concedidos: O qual se declarará nas mesmas Licenças, e também nos recibos, que os Moradores devem passar aos Principais, quando lhes entregarem os Índios. E como a escandalosa negligência, que tem havido na observância desta Lei, que se declara no parágrafo 5. tem sido a origem de se acharem quase desertas as Povoações, serão obrigados os Diretores, e Principais a remeter todos os anos ao Governador do Estado uma Lista dos transgressores para se proceder contra eles, impondo-se-lhes aquelas penas, que determina a sobredita Lei no referrido parágrafo.

68 É verdade, que não admite controvérsia, que em todas as nações civilizadas, e polidas do Mundo à proporção das Lavouras, das manufaturas, e do Comércio, se aumenta o número dos Comerciantes, operários, e Agricultores; porque correspondendo a cada um o justo, e racionável interesse proporcionado aos seu tráfico, se fazem recíprocas as conveniências, e commuas [sic] as utilidades. E para que as Leis da distribuição se observem com recíproca conveniência dos moradores, e dos Índios, e estes se possam empregar sem violência nas utilidades daqueles, desterrando-se por este modo o poderoso inimigo da ociosidade, serão obrigados os moradores, apenas receberem os Índios, a entregar aos Diretores toda a importância dos seus sellarios [sic], que na forma das Reais Ordens de Sua Majestade, devem ser arbitrados de sorte que a conveniência do lucro lhes suavize o trabalho.

69 Mas porque da observância deste parágrafo, se podem originar aquelas racionáveis, e justas queixas, que até agora faziam os moradores, de que deixando ficar nas Povoações os pagamentos dos Índios, ainda quando evidentemente mostravam, que os mesmos índios desertavam de seu serviço se lhes não restituíam os ditos pagamentos; vindo por este modo os desertores a tirar comodo do seu mesmo delito, não só com irreparável dano dos Povos, mas com total abatimento do Comércio; sendo talvez este o iníquo fim a que se dirigia tão pernicioso abuso; para se evitarem as referidas queixas; Ordeno aos Diretores, que apenas receberem os sobreditos sellarios [sic] entreguem aos Índios uma parte da importância deles, deixando ficar as duas partes em depósito; para o que haverá em todas as Povoações um Cofre, destinado unicamente para o depósito dos ditos pagamentos, os quais se acabarão aos mesmos Índios, constando, que eles os venceram com o seu trabalho.

70 Sucedendo porém desertarem os Índios do serviço dos moradores antes do tempo, que se acha regulado, pelas Reais Leis de Sua Majestade, que na forma do parágrafo 14. do Regimento, a respeito desta Capitania é de seis meses; e verificando-se a dita deserção, a qual os moradores devem fazer certa por algum documento; ficarão os Índios perdendo as duas partes do seu pagamento, que logo se entregarão aos mesmos moradores. O que se praticará pelo contrário averiguando-se, que os moradores deram causa à dita deserção, porque neste caso não só perderão toda a importância do pagamento, mas o dobro dele. E para que os moradores não possam alegar ignorância alguma nesta matéria, lhes advirto finalmente, que falecendo-se algum Índio no mesmo trabalho, ou impossibilitando-se para ele, por causa de moléstia, serão obrigados a entregar ao mesmo Índio, ou a seus herdeiros o justo estipêndio, que tiver merecido.

71 E como pelo parágrafo 50. deste Diretório, se concede licença aos Principais, Capitães mores, Sargentos mores, e mais Oficiais das Povoações, para mandarem alguns Índios por sua conta ao Comércio do Sertão, por ser justo, que se lhes permitam os meios competentes para sustentarem as suas Pessoas, e Famílias com a decência devida aos seus empregos, observarão os Diretores com os referidos Oficiais na forma dos pagamentos, o que se determina a respeito dos Moradores, excetuando unicamente o caso em que eles como Pessoas miseráveis não tenham dinheiro, ou fazendas com que possam prefazer a importância dos Salários, porque nesse caso serão obrigados a fazer um escrito de dívida, assinado por eles, e pelos mesmos Diretores, que ficará no Cofre do depósito, no qual se obriguem à satisfação dos referidos Salários apenas receberem o produto, que lhes competir.

72 Devendo acautelar-se todos os dolos, que podem acontecer nos pagamentos dos Índios, recomendo muito aos Diretores, que no caso, que os moradores queiram fazer o dito pagamento, em fazendas; achando os Índios conveniência neste modo de satisfação; não consintam de nenhum modo, que estas sejam reputadas por maior preço, do que se vende nesta Cidade; permitindo unicamente de avanço a justa despeza dos transportes, que se arbitrará a proporção das distâncias das Povoações a respeito da mesma Cidade. E quando os ditos Moradores pertendam reputar as suas fazendas, por exorbitantes preços, não poderão os Diretores aceitá-las em pagamento, com cominação de satisfazerem aos mesmos Índios qualquer prejuízo, que se lhe seguir do contrário. O que os mesmos Diretores observarão em todos os casos, em que os Moradores concorrem por este modo com os Índios, ou seja satisfazendo-lhes com fazendas o seu trabalho, ou comprando-lhes os seus gêneros.

73 Consistindo finalmente na inviolável execução destes Parágrafos o distribuírem-se os Índios com aquela fidelidade; e inteireza, que recomendam as piíssimas Leis de Sua Majestade, dirigidas unicamente ao bem comum dos seus Vassalos, e aos sólido aumento do Estado: Para que de nenhum modo se possam iludir estas interessantíssimas detreminações [sic] serão obrigados os Diretores a remeter todos os anos no princípio de Janeiro ao Governador do Estado uma lista de todos os Índios, que se distribuíram no ano antecedente; declarando-se os nomes dos Moradores, que se receberão; e em que tempo; a importância dos selários, que ficarão em depósito; e os preços porque foram reputadas as fazendas, com as quais se fizeram os ditos pagamentos; para que ponderadas estas importantes matérias com a devida reflexão, se possam dar todas aquelas providências, que se julgarem precisas, para se evitarem os prejudicialíssimos dolos, que se tinham introduzido no importantíssimo Comércio do Sertão, faltando-se com escândalo da piedade, e da razão às Leis da Justiça destributiva [sic], na repartição dos Índios, em prejuízo comum dos Moradores, e às da comutativa ficando por este modo privados os ditos Índios do racionável lucro do seu trabalho.

74 A lastimosa ruína, a que se acham reduzidas as Povoações dos Índios, de que se compõem este Estado; é digna de tão especial atenção, que não devem os Diretores omitir diligência alguma conducente ao seu prefeito [sic] restabelecimento. Pelo que recomendo aos ditos Diretores, que apenas chegarem às suas respectivas Povoações, apliquem logo todas as providência para que nelas se estabeleçam casas de Câmera, e Cadeias públicas, cuidando muito em que estas sejam erigidas com toda a segurança, e aquelas com a possível grandeza. Conseqüentemente empregarão os Diretores um particular cuidado em persuadir aos Índios, que façam casas decentes para os seus domicílios, desterrando o abuso, e a vileza de viver em choupanas a imitação dos que habitam como bárbaros o inculto centro dos Sertões, sendo evidentemente certo, que para o aumento das Povoações, concorre muito a nobreza dos Edifícios.

75 Mas como a principal origem do lamentável estado que as ditas Povoações estão reduzidas procede de se acharem evacuadas; ou porque os seus habitantes obrigados das violências, que experimentaram nelas, buscavam o refúgio nos mesmos Matos em que nasceram; ou porque os Moradores do Estado usando do ilícito meio de os praticar, e de outros muitos que administra em uns a ambição, em outros a miséria, os retém, e conservam no seu serviço; cujos ponderados danos pedem uma pronta, e eficaz providência: Serão obrigados os Diretores e remeter ao Governado do Estado um mapa de todos os Índios ausentes, assim dos que se acham nos Mattos, como nas casas dos Moradores, para que examinando-se as causas da sua deserção, e os motivos porque os ditos Moradores os conservam em suas casas, se apliquem todos os meios proporcionados para que sejam restituídos às suas respectivas Povoações.

76 E como para conservação, e aumento delas não seria providência bastante o restituírem-se aqueles Moradores, com que foram estabelecidas, não se introduzindo nelas maior número de habitantes; o que só se pode conseguir, ou reduzindo-se as Aldeias pequenas a Povoações populosas; ou fornecendo-as de Índios por meio dos descimentos; observarão os Diretores nesta importante matéria as determinações seguintes, as quais lhes participo na conformidade das Reais ordens de Sua Majestade.

77 No §. II. do Regimento ordena o dito Senhor, que as Povoações dos Índios constem ao menos de 150 Moradores, por não ser conveniente ao bem Espiritual, e Temporal dos mesmos Índios, que vivam em Povoações pequenas, sendo indisputável que à proporção do número de habitantes se introduz nelas a civilidade, e Comércio. E como para se executar esta Real Ordem se devem reduzir as Aldeias e Povoações populosas, incorporando-se, e unindo-se umas a outras; o que na forma da Carta do primeiro de Fevereiro de 1701. firmada pela Real mão de Sua Majestade, se não pode executar entre Índios de diversas Nações, sem primeiro consultar a vontade de uns, e outros; ordeno aos Diretores, que na mesma lista que devem remeter dos Índios na forma assim declarada, expliquem com toda a clareza a distinção das Nações; a diversidade dos costumes, que há entre elas; e a oposição, ou concórdia em que vivem; para que, refletidas todas estas circunstâncias, se possa determinar em Junta o modo, com que sem violência dos mesmos Índios se devem executar estas utilíssimas reduções.

78 Em quanto porém aos decimentos, sendo Sua Majestade servido recomendá-los aos Padres Missionários nos §§. 8., e 9. do Regimento, declarando o mesmo Senhor que confiava deles este cuidado, por lhes ter encarregado a administração Temporal das Aldeias; como na conformidade do Alvará de 7 de Junho de 1755. foi o dito Senhor servido remover dos Regulares o dito governo Temporal mandando-o entregar aos Juízes Ordinários, Vereadores, e mais Oficiais de Justiça, e aos Principais respectivos; terão os Diretores uma incansável vigilância em advertir a uns, e outros, que a primeira, e mais importante obrigação dos seus postos consiste em fornecer as Povoações de Índios por meio dos decimentos, ainda que seja à custa das maiores despesas da Real Fazenda de Sua Majestade, como a inimitável, e católica piedade dos nossos Augustos Soberanos, tem declarado em repetidas Ordens, por ser este o meio mais proporcionado para se dilatar a Fé, e fazer-se respeitado, e conhecido neste novo Mundo o adorável nome do nosso Redentor.

79 E para que os ditos Juízes Ordinários, e Principais possam desempenhar cabalmente tão alta, e importante obrigação, ficará por conta dos Diretores persuadir-lhes as grandes utilidades Espirituais, e Temporais, que se hão de seguir dos ditos descimentos, e o pronto, e eficaz concurso, que acharão sempre nos Governadores do Estado, como fiéis executores, que devem ser das exemplares, católicas, e religiosíssimas intenções de Sua Majestade.

80 Mas como a Real intenção dos nossos Fidelíssimos Monarcas, em mandar fornecer as Povoações de novos Índios se dirige, não só ao estabelecimento das mesmas Povoações, e aumento do Estado, mas à civilidade dos mesmos Índios por meio da comunicação, e do Comércio; e para este virtuoso fim pode concorrer muito a introdução dos Brancos nas ditas Povoações, por ter mostrado a experiência, que a odiosa separação entre uns, e outros, em que até agora se conservavam, tem sido a origem da incivilidade, a que se acham reduzidos; para que os mesmos Índios se possam civilizar pelos suavíssimos meios do Comércio, e da comunicação; e estas Povoações passem a ser não só populosas, mas civis; poderão os Moradores deste Estado, de qualquer qualidade, ou condição que sejam, concorrendo neles as circunstâncias de um exemplar procedimento, assistir nas referidas Povoações, logrando todas as honras, e privilégios, que Sua Majestade for servido conceder aos Moradores delas: Para o que apresentando licença do Governador do Estado, não só admitirão os Diretores, mas lhe darão todo o auxílio, e favor possível para ereção de casas competentes às suas Pessoas, e Famílias; e lhes distribuirão aquela porção de terra que eles possam cultivar, e sem prejuízo do direito dos Índios, que na conformidade das Reais Ordens do dito Senhor são os primários, e naturais senhores das mesmas terras; e das que assim se lhes distribuírem mandarão no termo que lhes permite a Lei, os ditos novos Moradores tirar suas Cartas de Datas na forma do costume inalteravelmente estabelecido.

81 E porque os Índios, a quem os Moradores deste Estado tem reposto em má Fé pelas repetidas violências, com que os trataram até agora, se não persuadam de que a introdução deles lhes será sumamente prejudicial; deixando-se convencer de que assistindo naquelas Povoações as referidas pessoas, se farão senhoras das suas terras, e se utilizarão do seu trabalho, e do seu Comércio; vindo por este modo a sobredita introdução a produzir contrários efeitos ao sólido estabelecimento das mesmas Povoações; serão obrigados os Diretores, antes de admitir as tais Pessoas, manifestar-lhes as condições, a que ficam sujeitas, de que se fará termo nos livros da Câmera assinado pelos Diretores, e pelas mesmas Pessoas admitidas.

82 Primeira: Que de nenhum modo poderão possuir as terras, que na forma das Reais Ordens de Sua Majestade se acharem distribuídas pelos Índios, perturbando-os da posse pacífica delas, ou seja em satisfação de alguma dívida, ou a título de contrato, doação, disposição, Testamentária, ou de outro qualquer pretexto, ainda sendo aparentemente lícito, e honesto.

83 Segunda: Que serão obrigados a conservar com os Índios aquela recíproca paz, e concórdia, que pedem as Leis da humana Civilidade, considerando a igualdade, que tem com eles na razão genérica de Vassalos de Sua Majestade, e tratando-se mutuamente uns a outros com todas aquelas honras, que cada um merecer pela qualidade das suas Pessoas, e graduação de seus postos.

84 Terceira: Que nos empregos honoríficos não tenham preferência a respeito dos Índios, antes pelo contrário, havendo nestes capacidade, preferirão sempre aos mesmos Brancos dentro das suas respectivas Povoações, na conformidade das Reais Ordens de Sua Majestade.

85 Quarta: Que sendo admitidos naquelas Povoações para civilizar os Índios, e os animar com o seu exemplo à cultura das terras, e a buscarem todos os meios lícitos, e virtuosos de adquirir as conveniências Temporais, senão desprezem de trabalhar pelas suas mãos nas terras, que lhes forem distribuídas; tendo entendido, que à proporção do trabalho manual, que fizerem, lhes permitirá Sua Majestade aquelas honras, de que se constituem beneméritos os que rendem serviço tão importante ao bem público.

86 Quinta: Que deixando de observar qualquer das referidas condições, serão logo expulsos das mesmas terras, perdendo todo o direito, que tinham adquirido, assim à propriedade delas, como todas as Lavouras, e plantações, que tiverem feito.

87 Para se conseguirem pois os interessantíssimos fins, a que se dirigem as mencionadas condições, que são a paz, a união, e a concórdia pública, sem as quais não podem as Repúblicas subsistir, cuidarão muito os Diretores em aplicar todos os meios conducentes para que nas suas Povoações se extingua [sic] totalmente a odiosa, e abominável distinção, que a ignorância, ou a iniqüidade de quem preferia as conveniências particulares aos interesses públicos, introduzia entre os Índios, e Brancos, fazendo entre eles quase moralmente impossível aquela união, e sociedade Civil tantas vezes recomendada pelas Reais Leis de Sua Majestade.

88 Entre os meios, mais proporcionados para se conseguir tão virtuoso, útil, e santo fim, nenhum é mais eficaz, que procurar por via de casamentos esta importantíssima união. Pelo que recomendo aos Diretores, que apliquem um incessante cuidado em facilitar, e promover pela sua parte os matrimônios entre os Brancos, e os Índios, para que por meio deste sagrado vínculo se acabe de extinguir totalmente aquela odiosíssima distinção, que as nações mais polidas do mundo abominaram sempre, como inimigo comum do seu verdadeiro, e fundamental estabelecimento.

89 Para facilitar os ditos matrimônios, empregarão os Diretores toda a eficácia do seu zelo em persuadir a todas as Pessoas Brancas, que assistirem nas suas Povoações, que os Índios tanto não são de inferior qualidade a respeito delas, que dignando-se Sua Majestade de os habilitar para todas aquelas honras competentes às graduações dos seus postos, conseqüentemente ficam logrando os mesmos privilégios as Pessoas que casarem com os ditos índios; desterrando-se por este modo as prejudicialíssimas imaginações dos Moradores deste Estado, que sempre reputaram por infâmia semelhantes matrimônios.

90 Mas como as providências, ainda sendo reguladas pelos ditames da reflexão, e da prudência, produzem muitas vezes fins contrários, e pode suceder, que, contraídos estes matrimônios, degenere o vínculo em desprezo, em discórdia a mesma união; vindo por este modo tranformar-se em instrumentos de ruína os mesmo meios que deverão conduzir para a concórdia; recomendo muito aos Diretores, que apenas forem informados de que algumas Pessoas, sendo casadas desprezam os seus maridos, ou suas mulheres, por concorrer neles a qualidade de Índios, o participe logo ao Governador do Estado, para que sejam secretamente castigados, como fomentadores das antigas discórdias, e perturbadores da paz, e da união pública.

91 Deste modo acabarão de compreender os Índios com toda a evidência, que estimamos as suas pessoas; que não desprezamos as suas alianças, e o seu parentesco; que reputamos, como próprias as suas utilidades; e que desejamos, cordial, e sinceramente conservar com eles aquela recíproca união, em que se firma, e estabelece a sólida felicidade das Repúblicas.

92 Consistindo finalmente o firme estabelecimento de todas estas Povoações na inviolável, e exata observância das ordens, que se contem neste Diretório, devo lembrar aos Diretores o incessante cuidado, e incansável vigilância, que devem ter em tão útil, e interessante matéria; bem entendido, que entregando-lhes meramente a direção, e economia destes Índios, como se fossem seus Tutores, enquanto se conservam na bárbara, e incivil rusticidade, em que até agora foram educados; não os dirigimos com aquele zelo, e fidelidade que pedem as Leis do Direito natural, e Civil, serão punidos rigorosamente como inimigos comuns dos sólidos interesses do Estado com aquelas penas estabelecidas pelas Reais Leis de Sua Majestade, e com as mais que o mesmo Senhor for servido impor-lhes como Réus de delitos tão prejudiciais ao comum, e ao importantíssimo estabelecimento do mesmo Estado.

93 Mas ao mesmo tempo, que recomendo aos Diretores a inviolável observância destas ordens, lhes torno a advertir a prudência, a suavidade, e a brandura, com que devem executar as sobreditas ordens, especialmente as que disserem respeito à reforma dos abusos, dos vícios, e dos costumes destes Povos, para que não suceda que, estimulados da violência, tornem a buscar nos centros dos Matos os torpes, e abomináveis erros do Paganismo.

94 Devendo pois executar-se as referidas ordens com todos os Índios, de que se compõem estas Povoações, com aquela moderação, e brandura, que ditam as Leis da prudência; ainda se faz mais precisa esta obrigação com aqueles, que novamente descerem dos Sertões, tendo ensinado a experiência, que só pelos meios da suavidade é que estes miseráveis rústicos recebem as sagradas luzes do Evangelho, e o utilíssimo conhecimento da civilidade, e do Comércio. Por cuja razão não poderão os Diretores obrigar os sobreditos Índios a serviço algum antes de dous anos de assistência nas suas Povoações; na forma, que determina Sua Majestade no §. XIII. do Regimento.

95 Ultimamente recomendo aos Diretores, que esquecidos totalmente dos naturais sentimentos da própria conveniência, só empreguem os seus cuidados nos interesses dos Índios; de sorte que as suas felicidades possam servir de estímulo aos que vivem nos Sertões, para que abandonando os lastimosos erros, que herdaram de seus progenitores, busquem voluntariamente nestas Povoações Civis, por meio das utilidades Temporais, a verdadeira felicidade, que é a eterna. Deste modo se conseguirão sem dúvida aqueles altos, virtuosos, e santíssimos fins, que fizeram sempre o objeto da Católica piedade, e da Real beneficência dos nossos Augustos Soberanos; quais são; a dilatação da Fé; a extinção do Gentilismo; a propagação do Evangelho; a civilidade dos Índios; o bem comum dos Vassalos; o aumento da Agricultura; a introdução do Comércio; e finalmente o estabelecimento, a opulência, e a total felicidade do Estado. Pará, 3 de Maio de 1757. = Francisco Xavier de Mendoça Furtado

EU EL REY
Faço saber aos que este Alvará de confirmação virem: Que sendo-me presente o Regimento, que baixa incluso, e tem por título: Diretório, que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão, enquanto Sua Majestade não mandar o contrário: deduzido nos noventa e cinco Parágrafos, que nele se contém, e publicado em três de Maio do ano próximo precedente de mil setecentos e cinqüenta e sete por Francisco Xavier de Mendoça [sic] Furtado, do meu Conselho, Governador e Capitão General do mesmo Estado, e meu Principal Comissário, e Ministro Plenipotenciário nas Conferências sobre a Demarcação dos Limites Setentrionais do Estado do Brasil: e porque sendo visto, e examinado com maduro conselho, e prudente deliberação por Pessoas doutas, e timoratas, que mandei consultar sobre esta matéria se achou por todos uniformemente, serem muito convenientes para o serviço de Deus, e meu, e para o Bem Comum, e felicidade daqueles Índios, as Disposições conteúdas no dito Regimento: Hei por bem, e me apraz de confirmar o mesmo Regimento em geral, e cada um dos seus noventa e cinco Parágrafos em particular, com se aqui por extenso fossem insertos, e transcritos: E por este Alvará o confirmo do meu próprio Motu, certa Ciência, poder Real, e absoluto; para que por ele se governem as Povoações dos Índios, que já se acham associados, e pelo tempo futuro se associarem, e reduzirem a viver civilmente. Pelo que: Mando ao Presidente do Conselho Ultramarino, Regedor da Casa da Suplicação, Presidente da Mesa da Consciência, e Ordens; Vice-Rei, e Capitão General do Estado do Brasil, e a todos os Governadores, e Capitães Generais dele; como também aos Governadores das Relações da Bahia, e Rio de Janeiro; Junta do Comércio destes Reinos, e seus Domínios; Junta da Administração da Companhia Geral do Grão Pará, e Maranhão; Governadores das Capitanias do Grão Pará, e Maranhão; de S. Joseph do Rio Negro, do Piauhí, e de quaisquer outras Capitanias; Desembargadores, Ouvidores, Provedores, Intendentes, e Diretores das Colônias; e a todos os Ministros, Juízes, Justiças, e mais Pessoas, a quem o conhecimento deste pertencer, o cumpram, e guardem, e o façam cumprir, e guardar tão inteiramente, como nele se contém; sem embargo, nem dúvida alguma; e não obstante quaisquer Leis, Regimentos, Alvarás, Provisões, Extravagantes, Opiniões, e Glossas de doutores, e costumes, e estilos contrários: Porque tudo Hei por derrogado para este efeito somente, ficando aliás sempre em seu vigor. E Hei outrossim por bem, que este Alvará se registe [sic] com o mesmo Regimento nos livros das Câmeras, onde pertencer, depois de haver sido publicado por Editais: E que valha como Carta feita em meu Nome, passada pela Chancelaria, e selada com os Selos pendentes das minhas Armas; ainda que pela dita Chancelaria não faça trânsito, e o seu efeito haja de durar mais de um ano, sem embargo das Ordenações em contrário. Dado em Belém, aos dezessete dias do mês de Agosto de mil setecentos e cinqüenta e oito.

REY.
Sebastião Joseph de Carvalho Mello.

Alvará, porque V. Majestade há por bem confirmar o Regimento, intitulado: Diretório, que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão, enquanto Sua Majestade não mandar o contrário: Na forma acima declarada.

Para V. Majestade ver.

Filippe Joseph da Gama o fez.

Registado [sic] na Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, no livro da Companhia Geral do Grão Pará, e Maranhão, a fol. 120. Belém a 18 de Agosto de 1758.

Filippe Joseph da Gama

Texto digitado a partir das cópias dos originais publicadas no livro
“O diretório dos índios: um projeto de "civilização" no Brasil do século XVIII”,
de Rita Heloísa de Almeida. Editora UnB, 1997.