Na Bolívia, a província de Bautista Saavedra, do Departamento de La Paz, é conhecida principalmente porque entre seus habitantes das comunidades aymarás, vivem os KALLAMAYAS. Possuidores de um profundo conhecimento sobre plantas medicinais, suas terapias curativas fazem parte da sabedoria e beleza da cosmovisão andina. Em toda a província, vivem cerca de 8.500 pessoas, nas pequenas vilas de Bend, Chajaya, Kamlaya, Huata Huata, Inka, Amarete, Chari, Pampablanca, Chakapari e Charazoni, a 250 km do Lago Titicaca.
A
origem do Kallawayas se perde na milenar história da civilização andina. Algumas evidências sugerem a sua presença
durante o auge da cultura Tiawanaco, desaparecida no século XI da era cristã.
Especializados no conhecimento de plantas, seu estabelecimento na atual região
de Bautista Saavedra certamente favoreceu o desenvolvimento de seu ofício, ao
facilitar o acesso à biodiversidade andina e, ao mesmo tempo, às zonas mais
baixas, incluindo o trópico.
Investigações arqueológica tem comprovado esta
hipóteses. Na década de 1970, por exemplo, o Museu Etnográfico de Gotemburgo
divulgou informações sobre um conjunto de materiais de curandeiro e restos humanos,
datados do século VI da era crista, ou seja, justamente ao chamado “Período
Clássico de Tiawanaco”. A publicação descreve, entre outras coisas, tabletes de
madeira, um tubo de bambu, um pilão de madeira, colheres, seringas e um crânio com
sinais de ter passado por três trepanações.
Encontraram, também, pequenos sacos de tecido com bordado – huspas – e material vegetal macerado; o estudo
descobriu tratar-se uma espécie de rapé (tabaco) com folhas guayusa, uma planta usada como
antiespasmódico.
A
presença de Kallawayas na Corte Inca, em tempos posteriores, é considerado como
bastante provável. Possivelmente devido ao nível de seus conhecimento,
eles foram levados para prestar serviços em Cuzco, a capital inca. Aparentemente, eles eram capazes de curar
paralisia, cegueira, pneumonia, lesões e doenças mentais. Sabemos que preparam medicamentos
equivalentes a terramicina e penicilina, elaboradas a partir de lama
e frutas fermentandas, como banana. Também usavam a genciana e a árvore quina do
Perú contra a febre, e muitas outras plantas. Supõe-se que na corte tinham a função de
assessorar os sábios – Amautas – sobre
questões médicas, além de tratar com exclusivamente as doenças do Sapa Inca, de
sua família e da nobreza. O cronista Garcilaso
de la Veja, em seu “Comentários reais”, inclusive, fala dos grandes conhecedores das
propriedades das plantas que existiam antes da destruição do império.
Os Kallawayas, por outro
lado, têm sido tradicionalmente conhecidos como médicos errantes, que se deslocam
entre vários países da região andina. Na língua aymará, o termo significa "sair de casa"; em quechua, "homem a pé levando ervas medicinais". O relatório do Museu de Gotemburgo dá uma ênfase especial à
cuidadosa forma de guardar as plantas maceradas que encontraram, levando a
supor que eram preparadas exatamente para serem transportadas durante longas
jornadas. Vale lembrar que a parte do território boliviano em que vivem hoje em
dia, durante o império inca recebeu o nome de QOLLASUYU, cujo significado é “terra
da medicina”.
Como conseqüência da conquista
espanhola, provavelmente os Kallawaya que viviam em Cuzco voltaram a se refugiar
em suas comunidades de origem. Seja como for, o seu conhecimento
sobreviveu durante a colonização; os segredos de seu conhecimento e habilidade
foram zelosamente guardados e transmitidos oralmente apenas de pais para
filhos, utilizando sua própria língua – o machaj juyay ou machajjuya.
Acredita-se que corresponda à língua sagrada dos Incas, não acessível ao povo, e
que eles aprenderam na corte e assumiram como um sinal de identificação,
incorporando-a em seus rituais de cura. Alguns estudos apontam para um certo
parentesco com pukina – língua extinta falada pelos antigos
habitantes da região do Lago Titicaca, antepassados dos atuais Urus.
No
século XIX, estima-se que aproximadamente 500 Kallawayas famosos em toda a
região exerciam seu ofício. No século XX, no entanto, o seu número foi
reduzido para cerca de 50. Como médicos itinerantes, encontramos alguns Kallamayas no Panamá,
em 1914, durante a construção do Canal. Eles fizeram uma travessia de quatro meses,
levando em suas chuspas ervas e pomadas para ajudar na luta contra a malária,
que causava milhares de mortes entre os trabalhadores da obra.
A medicina Kallawaya baseia-se
na cosmovisão andina. De
sua perspectiva, o ser humano é a união de três elementos fundamentais: a ATHUN AJAYU, força
divina que lhe dá os poderes de pensar, sentir e se mover; o JUCHUI AJAYU, algo semelhante ao corpo
astral ou alma; e o CORPO FÍSICO, se
onde encontram encarnados os dois ajayus. O ser andino, além de suas relações sociais e com a natureza,
vive cotidianamente em um prodigioso universo sobrenatural. O athun ajayu é imortal; são parte dos ACHACHILAS, ou seja, espíritos protetores dos
antepassados, que vivem permanentemente nas montanhas, lagos e rios tornando-os
lugares sagrados. Dada
a complexidade destas relações, os Kallawaya se consideram “chamados” pelos
Achachillas, através de um sinal, a marca de um raio ou comunicação através de
sonhos para exercerem o ofício.
A
doença é associada com à perda de ajayus. Se o athun
ajayu deixa o corpo, desaparece a força da vida. Pode acontecer que, durante o sono, o juchui ajayu deixe o corpo; se ele não
voltar, sua ausência vai se manifestar com febre, mal-estar e dores. Isso significa que o homem perdeu a sua
unidade, o equilíbrio entre seus componentes vitais. Para restabelecê-lo e trazer de volta o ajayu, o Kallawaya se utiliza igualmente dos
recursos da natureza e do mundo dos espíritos; para tal, é preciso um amplo e
diversificado conhecimento de suporte.
A
prática médica de Kallawayas é baseada não somente em suas noções
extraordinárias sobre botânica; os rituais e oferendas à Pachamama – Mãe Terra –
e aos Achachilas são essenciais. Um aprendiz começa a aprender sobre as
ervas a partir dos 7 anos de idade, e leva de 8 a 10 anos de estudo, para ser
capaz de distinguir, pelo menos, as características de cerca de 600 plantas,
além de aprender a reconhecê-las, seus usos, os lugar onde crescem, a época apropriada
para a colheita e a maneira de conservá-las. Alguns, no entanto, pode conseguir durante
sua vida um conhecimento muito maior.Hilarion Suxo, de Pampablanca, é um
exemplo: afirma conhecer cerca de 5000 espécies de plantas medicinais e 3000
venenosas ou narcóticas.
Eles
reconhecem, no entanto, os seus limites: não atendem doenças hereditárias ou
terminais. Têm
sido bem sucedidos no tratamento tuberculose, reumatismo e diarréia. Tratam, também, problemas do fígado, rins e
coração e variado grupo de doenças chamadas "doenças de vento e relâmpagos". Seu conhecimento é geralmente passada de pai
para filho, deixando nas mãos das mulheres o atendimento dos partos e problemas
relacionados com a reprodução.
As viagens geralmente são
planejadas de acordo com o calendário agrícola, que começa em 21 de junho. Fazem viagens longas que podem durar 3 ou 4
meses, prestando seus serviços às comunidades remotas, onde os cuidados de
saúde é praticamente inexistente. Essas viagens também lhes permite expandir a
coleção de plantas e desempenham um papel importante na formação do aprendiz. Viajam juntos, a pé ou em burro até regiões
do Peru, Equador, norte do Chile e Argentina. A viagem de ida e volta a Cuzco, por exemplo,
pode durar 45 dias. Levam suas ervas, medicamentos e objetos rituais.
Receber ocasionalmente dinheiro para o seu trabalho, embora possam realizar
suas atividades em troca de casa e comida, como era nos tempos antigos.
A folha de coca é uma das
plantas mais utilizadas entre Kallawayas, à qual consideram sagrada, por suas
propriedades nutritivas e espirituais. Também é comum o uso de outras espécies vegetais,
que crescem a 3.800 metros de altura, como a wachanka e o llalli wangu
(espinha vermelha). Dispõem, igualmente, de
variedades nativas de outras regiões, como sawila
(Aloe), andrés walla (parkii) e a árvore de copaíba. De sua farmácia também fazem parte certos
minerais e substâncias animais desidratadas.
Sua
prática médica, no entanto, fica incompleta sem os rituais – challar. Além
das ofertas para a Pachamama e os Antepassados, o kallamaya prepara mesas cerimoniais.
Prefere fazer o seu trabalho de cura (simbólica, na linguagem dos antropólogos)
às segundas, quartas e quintas-feiras, especialmente no mês de agosto, quando o
céu e a terra permitir uma maior comunicação com os espíritos. Normalmente se fazem acompanhar por música,
interpretada por grupos chamados kantus. Pedem
conselho aos Achachilas sobre a
origem da doença e a maneira correta de tratar o paciente. Para isso, usam – naturalmente – a antiga
linguagem secreta.
As
mesas rituais são de três categorias: branca, cinza e preta. A branca é a que nos permite resolver os
problemas de saúde; as cinzas, purificam o ajayu
e a preta são para devolver as desgraças a quem as causou. As oferendas, que
ocorrem principalmente nas montanhas e colinas, pode incluem alimentos,
animais, algodão, vinho doce e cravos que representam desejos. Doze
folhas de coca servem de instrumento para ler o futuro e ver como está o
paciente. Em
troca de saúde e bem-estar, a natureza e os Espíritos são recompensados dessa
forma.
A existência de diferentes
culturas indígenas na América Latina, e nos Andes em particular, está
seriamente ameaçada por uma série de fatores econômicos e políticos adversos. Elas enfrentam a exclusão, a
pobreza, o assassinato, a militarização de seus territórios e a destruição de
ecossistemas vitais para a sua subsistência. Os inimigos são internos e externos.
Neste contexto, a herança
dos Kallawayas não está segura. As regras que regem a economia internacional
é, sem dúvida, uma das principais ameaças. Os tratados de livre comércio com os Estados
Unidos, como a ALCA ou suas versões reformadas, pretendem obrigar os países
membros a concederem patente não só sobre espécies vegetais e animais, como também
sobre procedimentos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos. Trata-se de invalidar o caráter comunitário dos
conhecimentos, permitindo às multinacionais de biotecnologia e farmacêuticas a privatização
da sabedoria dos povos e da biodiversidade. Eles calcularam em mais de 40 bilhões de
dólares por ano o valor das plantas medicinais utilizadas pelas diversas
comunidades indígenas.
No entanto, a oposição
criativa e organizada destes interesses está presente de várias formas. Em algumas localidades de Bautista Saavedra. Como
Curva e Chajaya por exemplo, os Kallawayas estão instalando centros com o
objetivo de manter herbanários e inclusive um laboratório para o estudo das
plantas. Também
oferece oficinas, como a dirigida por Hilarion Suxo, com a finalidade de
capacitar mulheres e jovens na elaboração dos medicamentos tradicionais. Contam,
agora, com reconhecimento internacional: a Assembléia Geral da UNESCO,
realizada em Paris em 2003, lhes outorgou a classificação de “patrimônio oral e
imaterial da humanidade”. Uma distinção que se concede àquelas
expressões culturais consideradas particularmente vulneráveis.
Em
novembro de 2003, um líder kallawaya, Carlos Eduardo Medina, pela primeira vez
na história da Bolívia teve a oportunidade de dizer ao mundo as diferentes
posições dos povos indígenas, incluindo a rejeição retumbante dos acordos de
livre comércio. Aconteceu na
XIII Cúpula Iberoamericana de Chefes de
Estado, realizada em Santa Cruz de La Sierra, logo após a convulsão social
que terminou com a renúncia de Sánchez de Losada. Seu discurso começou assim: "Senhores Presidentes, Sua Majestade Rei
Juan Carlos de Espanha, Autoridades. Eis-nos aqui. Quem diria... Muitas coisas tiveram
que acontecer nesta terra nos últimos séculos e muitas outras mais nos últimos
dias, para que estejamos aqui, neste lugar que sabíamos, nós pensávamos, que nos
seria negado. Todos sabemos o que falamos, mas nós, bolivianos e bolivianas,
mais que todos ...". O espírito de resistência, sem dúvida, também
vive nas montanhas, junto aos Achachilas.
Baseado em texto de
Mattie Mailer