domingo, 17 de novembro de 2013

A ANTIGA MEDICINA DOS KALLAMAYAS


Na Bolívia, a província de Bautista Saavedra, do Departamento de La Paz, é conhecida principalmente porque entre seus habitantes das comunidades aymarás, vivem os KALLAMAYAS. Possuidores de um profundo conhecimento sobre plantas medicinais, suas terapias curativas fazem parte da sabedoria e beleza da cosmovisão andina. Em toda a província, vivem cerca de 8.500 pessoas, nas pequenas vilas de Bend, Chajaya, Kamlaya, Huata Huata, Inka, Amarete, Chari, Pampablanca, Chakapari e Charazoni, a 250 km do Lago Titicaca.

A origem do Kallawayas se perde na milenar história da civilização andina. Algumas evidências sugerem a sua presença durante o auge da cultura Tiawanaco, desaparecida no século XI da era cristã. Especializados no conhecimento de plantas, seu estabelecimento na atual região de Bautista Saavedra certamente favoreceu o desenvolvimento de seu ofício, ao facilitar o acesso à biodiversidade andina e, ao mesmo tempo, às zonas mais baixas, incluindo o trópico.

Investigações arqueológica tem comprovado esta hipóteses. Na década de 1970, por exemplo, o Museu Etnográfico de Gotemburgo divulgou informações sobre um conjunto de materiais de curandeiro e restos humanos, datados do século VI da era crista, ou seja, justamente ao chamado “Período Clássico de Tiawanaco”. A publicação descreve, entre outras coisas, tabletes de madeira, um tubo de bambu, um pilão de madeira, colheres, seringas e um crânio com sinais de ter passado por três trepanações. Encontraram, também, pequenos sacos de tecido com bordado – huspase material vegetal macerado; o estudo descobriu tratar-se uma espécie de rapé (tabaco) com folhas guayusa, uma planta usada como antiespasmódico.

A presença de Kallawayas na Corte Inca, em tempos posteriores, é considerado como bastante provável. Possivelmente devido ao nível de seus conhecimento, eles foram levados para prestar serviços em Cuzco, a capital inca. Aparentemente, eles eram capazes de curar paralisia, cegueira, pneumonia, lesões e doenças mentais. Sabemos que preparam medicamentos equivalentes a terramicina e penicilina, elaboradas a partir de lama e frutas fermentandas, como banana. Também usavam a genciana e a árvore quina do Perú contra a febre, e muitas outras plantas. Supõe-se que na corte tinham a função de assessorar os sábios – Amautas – sobre questões médicas, além de tratar com exclusivamente as doenças do Sapa Inca, de sua família e da nobreza. O cronista Garcilaso de la Veja, em seuComentários reais”, inclusive, fala dos grandes conhecedores das propriedades das plantas que existiam antes da destruição do império.

Os Kallawayas, por outro lado, têm sido tradicionalmente conhecidos como médicos errantes, que se deslocam entre vários países da região andina. Na língua aymará, o termo significa "sair de casa"; em quechua, "homem a pé levando ervas medicinais". O relatório do Museu de Gotemburgo dá uma ênfase especial à cuidadosa forma de guardar as plantas maceradas que encontraram, levando a supor que eram preparadas exatamente para serem transportadas durante longas jornadas. Vale lembrar que a parte do território boliviano em que vivem hoje em dia, durante o império inca recebeu o nome de QOLLASUYU, cujo significado é “terra da medicina”.

Como conseqüência da conquista espanhola, provavelmente os Kallawaya que viviam em Cuzco voltaram a se refugiar em suas comunidades de origem. Seja como for, o seu conhecimento sobreviveu durante a colonização; os segredos de seu conhecimento e habilidade foram zelosamente guardados e transmitidos oralmente apenas de pais para filhos, utilizando sua própria língua – o machaj juyay ou machajjuya. Acredita-se que corresponda à língua sagrada dos Incas, não acessível ao povo, e que eles aprenderam na corte e assumiram como um sinal de identificação, incorporando-a em seus rituais de cura. Alguns estudos apontam para um certo parentesco com pukinalíngua extinta falada pelos antigos habitantes da região do Lago Titicaca, antepassados dos atuais Urus.

No século XIX, estima-se que aproximadamente 500 Kallawayas famosos em toda a região exerciam seu ofício. No século XX, no entanto, o seu número foi reduzido para cerca de 50. Como médicos itinerantes, encontramos alguns Kallamayas no Panamá, em 1914, durante a construção do Canal. Eles fizeram uma travessia de quatro meses, levando em suas chuspas ervas e pomadas para ajudar na luta contra a malária, que causava milhares de mortes entre os trabalhadores da obra.

A medicina Kallawaya baseia-se na cosmovisão andina. De sua perspectiva, o ser humano é a união de três elementos fundamentais: a ATHUN AJAYU, força divina que lhe dá os poderes de pensar, sentir e se mover; o JUCHUI AJAYU, algo semelhante ao corpo astral ou alma; e o CORPO FÍSICO, se onde encontram encarnados os dois ajayus. O ser andino, além de suas relações sociais e com a natureza, vive cotidianamente em um prodigioso universo sobrenatural. O athun ajayu é imortal; são parte dos  ACHACHILAS, ou seja, espíritos protetores dos antepassados, que vivem permanentemente nas montanhas, lagos e rios tornando-os lugares sagrados. Dada a complexidade destas relações, os Kallawaya se consideram “chamados” pelos Achachillas, através de um sinal, a marca de um raio ou comunicação através de sonhos para exercerem o ofício.

A doença é associada com à perda de ajayus. Se o athun ajayu deixa o corpo, desaparece a força da vida. Pode acontecer que, durante o sono, o juchui ajayu deixe o corpo; se ele não voltar, sua ausência vai se manifestar com febre, mal-estar e dores. Isso significa que o homem perdeu a sua unidade, o equilíbrio entre seus componentes vitais. Para restabelecê-lo e trazer de volta o ajayu, o Kallawaya se utiliza igualmente dos recursos da natureza e do mundo dos espíritos; para tal, é preciso um amplo e diversificado conhecimento de suporte.

A prática médica de Kallawayas é baseada não somente em suas noções extraordinárias sobre botânica; os rituais e oferendas à Pachamama – Mãe Terra – e aos Achachilas são essenciais. Um aprendiz começa a aprender sobre as ervas a partir dos 7 anos de idade, e leva de 8 a 10 anos de estudo, para ser capaz de distinguir, pelo menos, as características de cerca de 600 plantas, além de aprender a reconhecê-las, seus usos, os lugar onde crescem, a época apropriada para a colheita e a maneira de conservá-las. Alguns, no entanto, pode conseguir durante sua vida um conhecimento muito maior.Hilarion Suxo, de Pampablanca, é um exemplo: afirma conhecer cerca de 5000 espécies de plantas medicinais e 3000 venenosas ou narcóticas.

Eles reconhecem, no entanto, os seus limites: não atendem doenças hereditárias ou terminais. Têm sido bem sucedidos no tratamento tuberculose, reumatismo e diarréia. Tratam, também, problemas do fígado, rins e coração e variado grupo de doenças chamadas "doenças de vento e relâmpagos". Seu conhecimento é geralmente passada de pai para filho, deixando nas mãos das mulheres o atendimento dos partos e problemas relacionados com a reprodução.

As viagens geralmente são planejadas de acordo com o calendário agrícola, que começa em 21 de junho. Fazem viagens longas que podem durar 3 ou 4 meses, prestando seus serviços às comunidades remotas, onde os cuidados de saúde é praticamente inexistente. Essas viagens também lhes permite expandir a coleção de plantas e desempenham um papel importante na formação do aprendiz. Viajam juntos, a pé ou em burro até regiões do Peru, Equador, norte do Chile e Argentina. A viagem de ida e volta a Cuzco, por exemplo, pode durar 45 dias. Levam suas ervas, medicamentos e objetos rituais. Receber ocasionalmente dinheiro para o seu trabalho, embora possam realizar suas atividades em troca de casa e comida, como era nos tempos antigos.

A folha de coca é uma das plantas mais utilizadas entre Kallawayas, à qual consideram sagrada, por suas propriedades nutritivas e espirituais. Também é comum o uso de outras espécies vegetais, que crescem a 3.800 metros de altura, como a wachanka e o llalli wangu (espinha vermelha). Dispõem, igualmente, de variedades nativas de outras regiões, como sawila (Aloe), andrés walla (parkii) e a árvore de copaíba. De sua farmácia também fazem parte certos minerais e substâncias animais desidratadas.

Sua prática médica, no entanto, fica incompleta sem os rituaischallar. Além das ofertas para a Pachamama e os Antepassados, o kallamaya prepara mesas cerimoniais. Prefere fazer o seu trabalho de cura (simbólica, na linguagem dos antropólogos) às segundas, quartas e quintas-feiras, especialmente no mês de agosto, quando o céu e a terra permitir uma maior comunicação com os espíritos. Normalmente se fazem acompanhar por música, interpretada por grupos chamados kantus. Pedem conselho aos Achachilas sobre a origem da doença e a maneira correta de tratar o paciente. Para isso, usam – naturalmente – a antiga linguagem secreta.

As mesas rituais são de três categorias: branca, cinza e preta. A branca é a que nos permite resolver os problemas de saúde; as cinzas, purificam o ajayu e a preta são para devolver as desgraças a quem as causou. As oferendas, que ocorrem principalmente nas montanhas e colinas, pode incluem alimentos, animais, algodão, vinho doce e cravos que representam desejos. Doze folhas de coca servem de instrumento para ler o futuro e ver como está o paciente. Em troca de saúde e bem-estar, a natureza e os Espíritos são recompensados dessa forma.

A existência de diferentes culturas indígenas na América Latina, e nos Andes em particular, está seriamente ameaçada por uma série de fatores econômicos e políticos adversos. Elas enfrentam a exclusão, a pobreza, o assassinato, a militarização de seus territórios e a destruição de ecossistemas vitais para a sua subsistência. Os inimigos são internos e externos.

Neste contexto, a herança dos Kallawayas não está segura. As regras que regem a economia internacional é, sem dúvida, uma das principais ameaças. Os tratados de livre comércio com os Estados Unidos, como a ALCA ou suas versões reformadas, pretendem obrigar os países membros a concederem patente não só sobre espécies vegetais e animais, como também sobre procedimentos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos. Trata-se de invalidar o caráter comunitário dos conhecimentos, permitindo às multinacionais de biotecnologia e farmacêuticas a privatização da sabedoria dos povos e da biodiversidade. Eles calcularam em mais de 40 bilhões de dólares por ano o valor das plantas medicinais utilizadas pelas diversas comunidades indígenas.

No entanto, a oposição criativa e organizada destes interesses está presente de várias formas. Em algumas localidades de Bautista Saavedra. Como Curva e Chajaya por exemplo, os Kallawayas estão instalando centros com o objetivo de manter herbanários e inclusive um laboratório para o estudo das plantas. Também oferece oficinas, como a dirigida por Hilarion Suxo, com a finalidade de capacitar mulheres e jovens na elaboração dos medicamentos tradicionais. Contam, agora, com reconhecimento internacional: a Assembléia Geral da UNESCO, realizada em Paris em 2003, lhes outorgou a classificação de “patrimônio oral e imaterial da humanidade”. Uma distinção que se concede àquelas expressões culturais consideradas particularmente vulneráveis.

Em novembro de 2003, um líder kallawaya, Carlos Eduardo Medina, pela primeira vez na história da Bolívia teve a oportunidade de dizer ao mundo as diferentes posições dos povos indígenas, incluindo a rejeição retumbante dos acordos de livre comércio. Aconteceu na XIII Cúpula Iberoamericana de Chefes de Estado, realizada em Santa Cruz de La Sierra, logo após a convulsão social que terminou com a renúncia de Sánchez de Losada. Seu discurso começou assim: "Senhores Presidentes, Sua Majestade Rei Juan Carlos de Espanha, Autoridades. Eis-nos aqui. Quem diria... Muitas coisas tiveram que acontecer nesta terra nos últimos séculos e muitas outras mais nos últimos dias, para que estejamos aqui, neste lugar que sabíamos, nós pensávamos, que nos seria negado. Todos sabemos o que falamos, mas nós, bolivianos e bolivianas, mais que todos ...". O espírito de resistência, sem dúvida, também vive nas montanhas, junto aos Achachilas.


Baseado em texto de Mattie Mailer





A PRÁTICA JURÍDICA GUARANI

 

Para compreender alguns dos fundamentos da prática jurídica Guarani é necessário ter em vista a importância da mitologia no contexto das sociedades indígenas. Os mitos definem e organizam constantemente as condutas, as idéias e os ideais das pessoas de um dado grupo. Eles expressam uma forma de pensamento, de concepção de mundo que é bastante diversa da nossa. Nesse sentido, os mitos expressam em suas narrativas as categorias de pensamento de uma determinada cosmologia, de modo que cada sociedade indígena possui sua própria teoria do mundo, a qual estabelece o lugar preciso de todos os seres e da própria condição humana. O mito é, portanto, o lugar da reflexão, pois trata de complexos problemas filosóficos.

A cosmologia enquanto concepção de mundo articula-se à vida social, e norteia a elaboração de categorias de pensamento locais bem como de atributos da identidade pessoal e coletiva. Ao dar sentido à experiência humana no mundo, a cosmologia também estabelece o princípio da virtude, do delito e da justiça.

É importante observar que os mitos têm muitas camadas de significação e no contexto social que integram são repetidamente narrados ao longo de toda a vida das pessoas. De acordo com o amadurecimento social e intelectual, as crianças e os jovens vão desvelando para si os códigos da sociedade e da cultura que partilham. E é dessa forma que a sensibilidade jurídica se estabelece, assim como se institui o ideal de ser humano e de sociedade, a partir da cosmologia, que explica, fundamenta e legitima as relações sociais.

A mitologia guarani possui como figura de Deus principal o NHANDERUVUÇÚ (Nosso Grande Pai). De acordo com as narrativas míticas, seu aparecimento é sublime, surge sem ser gerado: trazendo em seu peito a luz resplandecente que iluminou seu trabalho da gênese, o Grande Pai se descobre a si mesmo em meio às trevas e surge como o criador de todas as coisas. Este é o Deus principal, não só por ser o grande criador, mas por representar aquele que irá destruir o universo e toda a sua criação. Como conta a tradição mítica, Nhanderuvuçú possui o poder da destruição. A desgraça e o mal são controlados por ele, que aguarda o momento certo para permitir o cataclismo.

O mal é representado pelos seres que Nhanderuvuçú mantêm em sua casa, nas trevas, onde reina pacientemente enquanto decide quando será o fim. Na cumieira da casa pende o Morcego Originário, que pode devorar o sol se o Grande Pai assim o permitir; embaixo de sua rede permanece deitado o feroz Jaguar Azul, que aguarda o sinal para lançar sua fúria e destruir a humanidade; e na porta da casa, uma grande serpente imóvel completa o cenário. Todos esses seres imputam extremo temor ao povo Guarani, e apenas o canto dos pajés faz com que Nhanderuvuçú mantenha o mal distante.

Exatamente por isso o líder espiritual, Ñamandu (o pajé), tem a posição social mais elevada, e seu papel no mundo religioso é central para os Guarani. Dessa forma, sua autoridade deve ser respeitada ou o próprio equilíbrio do cosmo pode ser rompido. A prática jurídica, nesse sentido, liga-se visceralmente à figura do pajé, aquele que se comunica com os deuses.

É importante destacar que dificilmente um Guarani não saberá contar os mitos de sua sociedade. De acordo com Clastres, quase todos conhecem e sabem narrar os mitos. Entretanto, apenas uma pequena parte das pessoas sabe se comunicar com os Deuses compreendendo suas mensagens e proferindo as belas palavras adequadas às divindades. Para a sociedade Guarani Mbyá, o juízo é uma ferramenta da divindade, um mecanismo coletivo que conecta a dimensão terrena com a sagrada. Tal sistema jurídico tem seus padrões definidos pelos mitos, pelas crenças e pela religião que prescreve a aplicação das suas normas de acordo com a necessidade da convivência social. Não há, nesse sentido, exclusão de classes na participação da prática jurídica, assim como não há código de leis escritas tal como existe entre nós.

A inexistência de códigos escritos, entretanto, não representa o caos, ou ausência de ordenamento. As regras e princípios morais se fazem presentes no quotidiano próprio das aldeias, e são preservadas por meio dos mitos e narrativas guardados e contados pelos mais velhos, que manifestam sua sabedoria e memória. Uma interessante peculiaridade do estabelecimento dessas normas para o convívio social entre os Guarani é que elas não estão escritas no papel, e não permanecem gravadas apenas no código dos mitos e na memória simplesmente. As normas estão dentro das pessoas, não são exteriores a elas. Todos aqueles que receberam dos deuses um nome, integrando assim a comunidade dos eleitos, guardam em si, por sua própria natureza, as regras fundamentais da vida (Clastres, 1990).

Para os Guarani Mbyá, um ato reprovado pela comunidade representa mais do que mero delito. O que nós concebemos como crime, ato contrário ao ordenamento jurídico, para os Guarani tem implicações cosmológicas; é muito mais graves que a violação de um bem jurídico protegido, uma vez em que constitui desobediência ao princípio religioso que ordena a própria sociedade, aos desígnios dos Deuses, aos preceitos de Nhanderuvuçú. Por esse motivo, ocorre a inevitável contaminação de toda a comunidade: os demônios das trevas invadem a aldeia e o mal se alastra; os deuses precisam ter sua ira aplacada.

Nesse contexto, o Direito é o que a religião delineou como sendo o necessário para que se mantenha o equilíbrio das relações temporais em contraponto ao universo sobrenatural. O objetivo da prática jurídica, para os Guarani, é evitar o infortúnio e a desgraça maior, que recai sobre a comunidade, a mercê das conseqüências funestas, que o desequilíbrio cosmológico provoca.

Restabelecer a tempo a perigosa ruptura causada pela desonra ou transgressão da ordem instituída é uma questão essencialmente espiritual – entretanto, em uma sociedade com práticas norteadas pela cosmologia, diferentemente do que ocorre na concepção do Direito estatal, que se afirma laico, o aspecto espiritual não é dissociado da existência física. É compreensível, portanto, que o poder xamanístico constitua a principal fonte de prestígio, e faça do pajé o tipo social mais culturalmente valorizado entre os Guarani. Assim, no universo cosmológico dessa sociedade, o herói mítico que representa a concepção do tipo ideal do ser Guarani não se trata de um grande guerreiro, mas necessariamente de um grande pajé, portador de poderes mágicos excepcionais. E nesse sentido, as figuras mitológicas que se destacam em meio ao panteão guarani são os gêmeos KOARAHY e JAHY. A vida dos dois é caracterizada pela sucessão de aventuras que marcam o desenvolvimento da sociedade Guarani. Nhanderuvuçú é o grande criador do mundo, mas foi papel dos gêmeos completar a criação, elaborando seus detalhes e pormenores; além disso, toda a ação dos gêmeos liga-se de forma imediata ao destino da humanidade.

Embora apareçam sempre juntos nas histórias, apenas um dos gêmeos é filho de Nhanderuvuçú. Trata-se de Koarahy, aquele que recebeu as insígnias de seu pai, quais sejam, suas armas e objetos de pajelança, que usa para cumprir a tarefa designada pelo criador: o governo do mundo, até o dia do cataclismo inevitável quando, Nhanderuvuçú decidir libertar os seres abrigados em sua cabana, que espalharão o mal por todos os lados.

A vida pessoal e social dos Guarani desdobra-se sob o olhar dos Deuses. Nesse sentido, é evidente a presença de elementos simbólicos e representações da cosmologia Tupi-Guarani como fundamento do sistema jurídico próprio da sociedade Guarani Mbyá. A figura dos deuses é primordial para se pensar o sistema jurídico, uma vez em que para os Guarani a vida é o resultado de uma existência imperfeita; este mundo propriamente dito é, para eles, imperfeito no sentido espiritual, de modo que há o desejo de transcender a condição humana e alcançar divinização. E a prática jurídica tem um papel importante no processo de ajustamento dessa imperfeição.

Para os Guarani, os delitos têm sua origem no sobrenatural, não sendo necessariamente dependentes da vontade do indivíduo. Há uma convicção nisso, de modo que a figura do ñamandu, o pajé, é central no processo de manutenção da ordem. Sobretudo porque não se trata de uma ordem meramente social, de convívio, e sim de uma ordem cósmica, acompanhada por Koarahy, aquele que cuida da terra.

Diante dos delitos menos graves, é o próprio chefe político que dirime o conflito, assim que este emerge no tecido social. O castigo ou punição, em tais casos podem ser trabalhos comunitários, mas dependendo do delito cometido, o que ocorre é a mera censura pública. Por outro lado, no caso de delitos graves, como o homicídio, por exemplo, o equilíbrio e a ordem cósmica são profundamente abalados, colocando a aldeia em perigo: o evento significa que existem espíritos malignos à espreita. Assim, enquanto para a sociedade hegemônica o crime de homicídio é uma violação à ordem social e a subtração do direito de viver de um determinado ser humano, dotado de dignidade, para a sociedade Guarani tal ato é uma violação que compromete a integridade e existência de toda uma comunidade, podendo inviabilizar a continuidade de suas práticas diárias. Dessa forma, demanda a adoção de medidas mais severas que as aplicadas em delitos menos graves; a mais alta instância do Direito Guarani deve ser acionada: o ATY GUASSÚ (Grande Assembléia), que corresponde a um ritual semelhante ao que os preceitos jurídicos ocidentais definem como julgamento.

Em razão de o ato transgressor afetar a todos, pois gera o desequilíbrio cosmológico, a prática da jurisdição entre os Guarani Mbyá não é monopolizada por um grupo especializado, mas exercida pela comunidade, no Aty Guassú, que constitui, dessa forma, uma espécie de juízo holístico, ou jurisdição holística.

Essa Grande Assembléia, o Aty Guassú, é composta pelas autoridades religiosas e políticas de outras aldeias e por todos os integrantes da comunidade onde a ocorrência do crime causou o desequilíbrio. Mas não se trata de uma assembléia qualquer, e sim a mais importante das assembléias Guarani, pois representa um diálogo com os Deuses. Com a detenção do acusado e a comunicação do fato às aldeias vizinhas, dá-se inicio à Grande Assembléia, que terá sucessivas audiências, nas quais serão pronunciados discursos imbuídos de conteúdos sagrados e fórmulas rituais, em geral cantos que aludem aos valores comunitários e à forma de vida correta. O acusado de praticar o homicídio ouve os discursos, amarrado e sem comer e beber enquanto durar seu julgamento.

Durante o Aty Guassú, os primeiros a falar são as maiores autoridades: o líder religioso e o líder político, que não são interrompidos em hipótese alguma, bem como não há limitação de tempo. É nesse momento que se pronunciam “As Belas Palavras”, que são para os Guarani as palavras que servem para se dirigir aos Deuses. Belas e agradáveis à audição dos espíritos divinos, as falas sagradas, embriagantes por sua grandeza, arrebatam a comunidade inteira através dos sacerdotes inspirados, que repreendem o mal e reforçam a grandeza dos verdadeiros homens.

Trata-se de um processo de purificação, purgação, pois se entende que naquele momento o criminoso amarrado não é um Mbyá, e sim o espírito maligno, causador da morte de um parente da aldeia. Por isso, sempre haverá uma pena, não há absolvição, pois somente os deuses podem absolver o causador de uma ruptura. Às pessoas cabe aplacar os deuses, para que o mal seja contido.

Durante o ritual, ocorre a mediação entre o ato delituoso e o dano efetivamente causado. As provas são organizadas e os atores envolvidos na trama, tanto as testemunhas, quanto os familiares da vítima têm espaço para falar. O ritual é um evento de extrema importância para o grupo, não em função do julgamento em si, mas, sobretudo, pelo que representa para os Mbyá enquanto sociedade: trata-se de um momento em que se procura recordar os valores da comunidade, atualizando o pacto social que restabelece a unidade do grupo. A memória da tradição é renovada ritualmente a fim de proteger e assegurar o cumprimento dos rigorosos códigos morais, instituídos pelos deuses.

Ao final do julgamento não se busca simplesmente apenar o causador do delito, e sim extinguir o espírito maligno. A pena é secundária, a importância maior está na personificação do mal. O que se quer é restabelecer o equilíbrio das relações com o mundo dos ancestrais. Assim, mesmo no caso da pena capital, por exemplo, é possível encontrar alternativa para seu cumprimento que não necessariamente a morte física: trata-se do banimento. Com o banimento do convívio, que é a morte social da pessoa, não se deseja com isso a vingança ou a compensação da dor em função da perda, o que se pretende com tal sentença é abortar o mal maior que pode recair sobre a comunidade.

Para os Guarani, o desequilíbrio causado pelo delito só pode ser neutralizado se forem seguidas as regras ditadas pelo Nhanderuvuçú, regras que são a origem sagrada do Direito Guarani. Os procedimentos rituais e religiosos, ensinados pelo Grande Pai após o primeiro desequilíbrio (narrado no mito dos Gêmeos), são o meio de evitar e de aplacar esse desequilíbrio.

O fundamento último do Direito Guarani são as regras e os procedimentos ditados pelo Nhanderuvuçú, que são também a origem da religião. É a mitologia sagrada que legitima o Aty Guassu, onde se lembrará a todos a verdadeira forma de viver, assim como todas as regras jurídicas Guarani. Nesse sentido, durante o Aty Grassú fica demonstrada a combinação binária de legalidade, que possui uma dupla fonte: a lei perfeita do Grande Pai e a cópia imperfeita desta, que é a lei da comunidade.

Considerando o contexto cultural dos Guarani Mbyá, compreende-se porque estes não vêem sentido algum nos procedimentos jurídicos praticados pela sociedade ocidental. Pois seja qual for a sentença dos brancos a um Mbyá, que tenha com seus atos contaminado o seu povo, sua punição individual jamais será aceita pelos deuses: o mal permanecerá à espreita. Apenas por meio do Aty Guassú o mal pode ser personificado, punido e banido, restabelecendo o equilíbrio da aldeia.

O sentido do Aty Guassú, além da resolução do próprio conflito instaurado, por conta da desobediência de um dos membros do grupo, é, portanto, a reconciliação da comunidade com os deuses ofendidos. Por essa razão é tão importante que os procedimentos rituais e religiosos, ensinados pelo ñamandu, o líder espiritual, sejam observados com rigor. Somente com os rituais de dança, canto e orações preparatórias para o caminho expiatório é possível a reabilitação social do grupo; a contaminação comum originada pelo delito é então expulsa ou purgada.

Baseado no texto de Maria do Socorro Lacerda Lima e Estella Libardi de Souza

ÑANDERU ETE TENONDE


Ñanderu ete tenonde!
Nosso Pai primeiro verdadeiro,
É sobre sua terra que Ñanderu Grande Coração,
Divino espelho do saber das coisas,
Se anima.
Você que faz com que se animem
Aqueles que você proveu do arco,
Eis: de novo nós nos animamos.
As coisas sendo assim: quando às Palavras indestrutíveis,
As quais nada, jamais enfraquecerá,
Nós,
Os poucos numerosos órfãos das coisas divinas,
Nós as repetiremos, animando-nos
Que possam então nos animar
E nos animar uma vez mais,
Ñanderu, Pai verdadeiro Primeiro
Ñanderu ete tenonde.