Quem viaja para as cidades bolivianas localizadas no altiplano andino vindo de terras baixas, logo sente os efeitos da altitude: dores de cabeça e cansaço. Para esses problemas, a população possui um excelente remédio: a folha de coca; servida em forma de chá ou in natura, para ser “mascada”. O hábito de consumir a folha de coca advém da necessidade dos povos que vivem nas grandes altitudes do altiplano (acima de três mil metros) de lidar com a fome e o cansaço do trabalho.
A folha de coca faz parte dos diversos ritos domésticos e coletivos, principalmente de quéchuas e aymaras. Desta forma, é um elemento cultural importante, pois faz parte não só da alimentação, mas também da organização cultural e econômica das populações indígenas, majoritárias na sociedade boliviana. “Na Bolívia, a existência de uma ampla faixa lícita de consumidores e o elevado valor da coca como símbolo de identidade são fatores que contribuem para a abertura de um espaço de políticas e práticas inéditas de soberania.”
Assim, a coca é hoje símbolo de um forte embate entre os governos bolivianos, que defende a coca como não entorpecente quando utilizada em sua forma natural, e os governos ocidentais, principalmente os Estados Unidos, que defendem a erradicação da coca como forma de acabar com o consumo de cocaína. Em um dos seus artigos, a Constituição boliviana de 2009 traz expresso:
Artículo 384. El Estado protege a la coca originaria y ancestral como patrimonio cultural, recurso natural renovable de la biodiversidad de Bolivia, y como factor de cohesión social; en su estado natural no es estupefaciente. La revalorización, producción, comercialización e industrialización se regirá mediante la ley. (BOLIVIA, 2009, p. 147)
A existência de uma defesa da folha de coca na Constituição demonstra que as forças políticas que redigiram a carta magna boliviana, formada por fortes grupos indígenas, entendem que a coca não é um item supérfluo para a maioria da população, mas que ela mantém uma série de relações econômicas e sociais milenares enraizadas na cultura indígena que servem hoje como um elemento de soberania e coesão frente à dominação cultural externa. A coesão social proporcionada pela coca, expressa na Constituição, advém de seu lugar central na cultura andina, seja pelo seu uso medicinal ou ritual compartilhado pelos diversos grupos étnicos. Além disso, a luta pela coca feita pelo movimento cocalero boliviano, ao vincular suas pautas à defesa das culturas tradicionais originárias e à solidariedade entre os povos, passa, a partir de então, a assumir um forte conteúdo étnico, utilizando-o a fim de legitimar suas ações políticas e reivindicações, referentes à conquista de direitos e a uma maior participação popular na gestão da sociedade.
Desta forma, as lutas indígenas contemporâneas, principalmente dos últimos 20 anos, estão ligadas à luta pela soberania cultural, que se soma à soberania territorial e econômica, criando um recurso discursivo que transforma identidades e culturas políticas. Identidades que passam a ser, cada vez mais, étnicas, portanto culturais, e culturas políticas cada vez mais ligadas a essas identidades, forjadas na defesa desses elementos culturais como a coca, os recursos naturais como a água e os hidrocarbonetos. Exemplos de enfrentamentos em que esses elementos aparecem são: as Guerras da Água em 2000, em que a coca e a água são os principais articuladores do discurso de defesa indígena, e a Guerra do Gás, em 2003, onde a soberania sobre o território e os recursos hidrocarboníferos tomam o papel principal.
A água, como recurso natural imprescindível à vida humana, é também um elemento articulador da vida social das comunidades indígenas, principalmente as que vivem da agricultura. A captação, a distribuição e o uso da água são regulados comunitariamente, seguindo preceitos passados de geração em geração, onde esse recurso é entendido como um bem coletivo, que serve ao coletivo e que, portanto, deve ser gratuito e de propriedade coletiva. Assim, a Guerra da Água, além de ter um caráter de defesa de um recurso básico, tem um caráter de defesa da forma de vida das comunidades.
Entendamos identidades culturais como “aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso ‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais”. Deste modo, o movimento indígena boliviano, de uma forma geral, está alicerçado em pertencimentos étnicos e linguísticos, ao mesmo tempo em que constrói uma cultura política que reforça esses mesmos pertencimentos, de tal maneira que é possível perceber uma cultura política indígena que se baseia num conjunto coerente de elementos: heróis, história de opressão, ideal de sociedade, idéia de soberania, ritos e símbolos; comuns a uma grande parcela da população indígena,cuja identificação com eles permite a composição de uma cultura política, a partir da definição de MOTTA: “conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro”. Bem como da definição de BERSTEIN: “(...) um conjunto coerente em que todos os elementos estão em estreita relação uns com os outros, permitindo definir uma forma de identidade do indivíduo que dela se reclama. Se o conjunto é homogêneo, as componentes são diversas e levam a uma visão dividida do mundo, em que entram em simbiose uma base filosófica ou doutrinal, a maior parte das vezes expressa sob a forma de uma vulgata acessível ao maior número, uma leitura comum e normativa do passado histórico com conotação positiva ou negativa com os grandes períodos do passado, uma visão institucional que traduz no plano da organização política do Estado os dados filosóficos ou históricos precedentes, uma concepção da sociedade ideal tal como a vêem os detentores dessa cultura e, para exprimir o todo, um discurso codificado em que o vocabulário utilizado, as palavras-chave, as fórmulas repetitivas são portadoras de significação, enquanto ritos e símbolos desempenham, ao nível do gesto e da representação visual, o mesmo papel significante”.
Assim, a identidade cultural mostra-se um elemento essencial para o entendimento dos fenômenos políticos bolivianos, pois eventos como a eleição de Evo Morales e a promulgação de uma nova Constituição de caráter indigenista (por expressar as pautas dos movimentos indígenas como reconhecimento étnico e autonomia), não devem ser encarados como surpresas, mas sim como resultado de um processo de fortalecimento dos laços de identidade da parcela majoritária da população daquele país e o fortalecimento de uma cultura política que permite a esse grupo agir minimamente coeso por um projeto político para o futuro, como as Guerras da Água e do Gás citadas, em que diversos grupos indígenas abraçaram a mesma causa sob um discurso comum e as mesmas formas de resistência e organização.
No caso boliviano, o fortalecimento das identidades culturais locais pode ser entendido como uma forma de defesa frente à cultura que é política e economicamente dominante. É possível observar, nesse fortalecimento, a ação da globalização, que permitiu o acesso a novas ferramentas discursivas, entrando nesse processo como um elemento que “tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas,mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas” (HALL, 2006, p. 87). Ou seja, passou a ser possível aos mestiços, ressignificarem a sua identidade indígena, ainda que possuindo elementos ocidentais; e aos indígenas, tomar para si aspectos ocidentais sem perder sua identidade ancestral.
As identidades culturais indígenas, não são fixas, agregam elementos da cultura europeia colonizadora e da cultura moderna ocidental, ao mesmo tempo em que possuem fortes elementos ancestrais, como a coca, a forma de organização comunitária baseada no ayllu, e símbolos como a wiphala. Elas são construções do momento e do processo histórico que as permitem uma fluidez e multiplicidade, mantendo seu poder de coesão e de unidade. Essas identidades são construídas dentro de um “embate cultural” onde: “O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição ‘recebida’.” (BHABHA, 1998).
Ou seja, ao mesmo tempo em que a tradição, e a narrativa histórica comum, dão aos indígenas um lugar de ancoragem, essas formulações do passado criam novas possibilidades de identidade, posto que feita no momento histórico atual, onde os indígenas convivem com diversas formas culturais que, de uma forma ou de outra, já fazem parte de sua tradição, como a religião cristã, que os indígenas mantêm em harmonia com seu culto à Pachamama, por exemplo.
A defesa da cultura indígena, e consequentemente de sua identidade, é uma das pautas mais importantes do movimento indígena boliviano nos dias de hoje, por isso, a defesa da coca como patrimônio cultural, por exemplo, é uma luta central para os diversos grupos indígenas que a tem como parte integrante de seu modo de vida.
Porém, as questões culturais nem sempre estiveram na ordem do dia dos movimentos sociais bolivianos, perdendo lugar para questões econômicas, impulsionadas principalmente pelos setores operários mineiros, a partir dos diversos partidos de esquerda. Até o início da década de 60 do século XX, os movimentos sociais – principalmente o operário – identificavam seus principais problemas advindos de uma relação desigual entre as classes sociais, onde os trabalhadores, operários ou camponeses, eram explorados pelos setores da burguesia boliviana ligados à mineração e ao latifúndio. As famosas Teses de Pulacayo, de1946, são claras quanto à essa questão, tendo sido referência durante muito tempo para o movimento operário boliviano: “La presente etapa histórica, que es una etapa de vergüenza para la humanidad, sólo podrá ser superada cuando desaparezcan las clases sociales, cuando ya no existan explotados y explotadores. Sofisma estúpido de los colaboracionistas que sostienen que no debe irse ala destrucción de los ricos, sino a convertir a los pobres en ricos. Nuestro objetivo es la expropiación de los expropiadores” (Teses de Pulacayo 1946).
Em fins da década de 60, com a incorporação dos indígenas das zonas rurais ao projeto nacional na forma de camponeses a partir da Revolução de 1952, em que o partido Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) deteve o governo, a questão cultural passou a fazer parte dos problemas a serem enfrentados. O governo propunha uma identidade de classe para os indígenas: camponeses; enquanto que as lideranças indígenas, principalmente as que tiveram acesso à educação formal pós-1952, conseguindo chegar às universidades, formularam uma identidade étnica em contraposição ao projeto governamental que “assimilava” o indígena à nação como trabalhador camponês, em detrimento de suas particularidades culturais afirmadas pelos grupos indígenas mais esclarecidos.
Ser camponês colocava os indígenas numa posição de cidadão trabalhador do campo, porém deixava aberta a possibilidade de perda da identidade cultural originária, pois a incorporação do índio na sociedade passava por um processo de ocidentalização através do ensino formal que desconsiderava a língua e a forma de vida específica indígena, além de fortalecer formas ocidentais de organização social, de propriedade e utilização da terra e seus recursos naturais como água.
Um dos intelectuais mais influentes nos movimentos políticos desse período foi Fausto Reinaga. Advogado e escritor boliviano, teve sua trajetória militante primeiramente vinculada ao marxismo. Desacreditado das respostas do marxismo para a realidade boliviana, passou a estudar e a escrever sobre a cultura indígena, criou uma teoria, e propôs uma prática, que influenciou o movimento social na perspectiva de emancipação cultural dos indígenas frente aos brancos.
Fausto Reinaga, pensador do que ficou conhecido como indianismo, teve um forte papel no processo de ressignificação do denominativo índio, que até então possuía uma conotação pejorativa. Reinaga produziu uma extensa obra em que defende as virtudes da “raça” índia, a grandeza das sociedades que foram subjugadas com o processo colonial. Assim, produz uma narrativa que permite criar novas formas de valorização da cultura e,portanto, de identificação. A história indígena, que na visão de Reinaga é comum a todos os indígenas bolivianos, é largamente utilizada para exemplificar a força dos indígenas e a possibilidade de repetição daqueles episódios descritos em novas lutas de resistência. “El indio nos es ningún cobarde ni raza inferior. Cuatro siglos y medio de su historia, criminalmente silenciada y tergiversada, habla de la lucha heróica por la reconquista de su libertad. Las huestes inkas, apenas se dieron cuenta de que se hallaban frente a salvaje y asesinos, se armaron y desataron su epopeya que comienza con el primer cerca de cinco meses a Cuzco (febrero, 1536), bajo la dirección y comando del Inka Manko II” (REINAGA, 1971).
Passagens como esta são comuns em seus livros. Demonstram a intenção de contar a história em uma perspectiva que engrandeça os povos indígenas, rebatendo as afirmações pejorativas e inferiorizadoras da história oficial, escrita por brancos e mestiços cujas referências culturais estão longe dos referenciais autóctones.
O indianismo de Fausto Reinaga é bastante radical em suas análises do colonialismo interno, cuja solução seria a refutação total da cultura européia, e em suas proposições, na medida em que defende uma guerra contra os brancos e a criação de uma sociedade somente de índios: a restauração do Collasuyo. ROCABADO, em diálogo com as reflexões de Walter Mignolo, aponta para o problema que esse pensamento pode gerar quando analisa o indianismo que tem bastante força no atual cenário político boliviano: “La doctrina del indianismo y sus múltiples denuncias sobre el colonialismo interno, se propone construir un conocimiento social que contenga entre sus principales supuestos una idea de futuro, es decir un proyecto de orden social nuevo pero sin la contaminación del mestizaje o las clases altas blancas. (…) la rebelión india no está orientada hacia ningún tipo de procesos de renovación o profundización democráticos, sino que son explosiones para expresar la continuidad ancestral y uma íntegra autonomía de la sociedad india, razón por la cual resultaría inútil seguir reflexionando en torno a la unidad nacional o la Nación boliviana”
Outro personagem importante nesse processo de valorização de uma identidade étnica foi o líder sindical Jenaro Flores, que: “Pertenece a la nueva generación aymara emergente de la revolución de 1952. Él y sus compañeros alimentaron desde temprana edad una visión crítica, transformada luego em oposición contra el clientelismo del Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR) y del Pacto Militar Campesino” (ROCHA MONRROY, 2006).
Jenaro Flores teve grande papel na construção do Katarismo. Surgido entre estudantes indígenas na Universidade de San Andrés, em La Paz, o Katarismo defendia a cultura indígena e sua história de resistência e organização. O resgate da história de Tupak Katari deu início (e nome) ao movimento que passou a defender, no meio sindical rural indígena, pautas ligadas às questões culturais, demonstrando que a situação em que se encontravam os povos autóctones estava diretamente ligada a uma recorrente segregação cultural realizada pela elite branca. O Katarismo, de uma forma geral, sempre esteve ligado às políticas de organizações (sindicatos, partidos, centros), sendo a tendência majoritária na fundação da Central Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), principal central sindical de trabalhadores rurais que aglutinava os diversos sindicatos camponeses indígenas do país, muitas vezes lutando contra a central operária (COB), cujas pautas são historicamente classistas e ligadas aos grupos da esquerda tradicional.
O Katarismo, por sua história e forma organizativa, acabou sendo o pensamento mais bem difundido no movimento indígena, pois sua forma de atuação via as comunidades como centros preferenciais para a organização política, assim acabou por tomar diversos contornos, criando organizações de vários tipos, de partidos a grupos guerrilheiros. Indianismo e Katarismo, surgidos no mesmo período, frutos da Revolução de 52, mudaram a forma que os indígenas pensam sua cultura e seu lugar no mundo. A partir desses pensamentos, os indígenas bolivianos passaram a entender suas lutas cada vez mais ligadas a uma identidade étnica que os tornam parte de uma longa história de resistência comum aos diversos grupos originários.
Durante o intenso e extenso período de mudanças econômicas, políticas e culturais que teve início na metade do século XX na Bolívia, formulou-se um pensamento indígena fortemente étnico, que passou a ter um papel preponderante nas lutas dessas populações, fomentando identidades e culturas políticas. Nas últimas duas ou três décadas, as organizações comunitárias com esse caráter étnico cada vez mais forte passaram a lutar por mudanças institucionais que reconhecessem suas identidades culturais. Uma das conquistas mais recentes e mais importantes foi o reconhecimento por parte do Estado, no novo texto constitucional, do “plurinacionalismo” existente na Bolívia: todas as 36 etnias indígenas são reconhecidas como nações que compõem o Estado boliviano. Essa foi uma conquista do movimento indígena que luta por suas formas de viver e se identifica, antes de tudo, enquanto indígena. Ou originário, como muitos preferem ser identificados.
Texto de Marcos Luã Almeida de Freitas