domingo, 14 de setembro de 2014

OS "DONOS" DAS PLANTAS - cosmologia xamânica do roçado Mbyá-Guarani

Segundo os Mbyá-Guarani, antes da Terra Atual (yvy pyau), existiu uma outra, um primeiro mundo, chamado yvy tenondé, que foi destruído pelo dilúvio (iporum). A yvy tenondé era perfeita e habitada pelos deuses. Mas um incesto entre dois dos principais personagens cosmológicos Mbyá-Guarani despertou a ira das demais divindades, que acabaram destruindo a Primeira Terra. Os Mbyá-Guarani já existiam quando ocorreu o iporum. Com a destruição da yvy tenondé foi criada a Terra Atual, yvy pyau, para os Mbyá-Guarani viverem e, junto com a Nova Terra, foram criadas todas as condições necessárias para a sobrevivência dos Mbyá-Guarani, inclusive os alimentos que hoje eles consideram tradicionais.

A história de Kuaray e Jaxi, tidos como irmãos, embora o primeiro tenha cirado o segundo, é um dos mitos fundadores da cosmologia Mbyá-Guarani, no qual são definidas algumas divindades e estabelecidas suas posições no cosmo. O mito narra uma grande aventura que é finalizada com os irmãos caminhando pelo mundo que acabaram de criar – yvy pyau – e denominando as coisas, com ênfase na nominação dos alimentos.

Resumindo o mito: a mãe de Kuaray (o futuro Sol), quando grávida, se põe no caminho a procura do pai de Kuaray. De dentro do ventre da mãe, Kuaray vai indicando o caminho correto que devia ser seguido. No caminho Kuaray pedia para que sua mãe lhe colhesse algumas flores. Kuaray era então “criança” e sempre tinha os seus pedidos atendidos. Numa das flores solicitadas havia um zangão que picou sua mãe. Esta ficou irada com Kuaray, julgando que a culpa era do filho que havia lhe pedido aquela flor e acabou batendo em sua própria barriga. Então, Kuaray parou de indicar o caminho correto que eles deveriam seguir. Tomando o caminho errado, eles foram parar na morada dos jaguares. Chegando lá só havia uma jaguar velha em casa, que lhes disse para não ficarem ali para não serem comidos por seus filhos, que logo retornariam. Só que a mãe de Kuaray não deu ouvidos à velha e ficou lá. Então, voltaram os filhos da velha Jaguar e comeram a mãe de Kuaray. Estes separaram o feto para que a velha jaguar comesse, mas não conseguiram matar Kuaray, mesmo apões várias tentativas. Sendo assim, a velha jaguar decidiu criar Kuaray. Ele criou o primeiro arco e fez três flechas, passando a caçar para alimentar a velha jaguar, que então ele julgava ser a sua mãe. Aliás, com a caça ele alimentava toda a família dos jaguares. Depois Kuaray criou um irmão para ele, o Jaxy (futuro Lua). Ambos vão caçar em uma ilha distante, desrespeitando as ordens da jaguar que julgam ser sua mãe. na ilha tentam matar um papagaio que lhes conta que a jaguar não é a mãe deles, que na verdade a jaguar comeu a sua progenitora. Entoa Kuaray e Jaxy, com ajuda do lobo marinho, construíram uma ponte-armadilha. Quando os jaguares estavam atravessando a ponte os dois irmãos a derrubaram, jogando os jaguares na água. Porém, nem todos morreram afogados e o plano dos irmãos de extinguir os jaguares fracassou. Assim, eles decidiram sair de perto dos jaguares procurando seu pai, morador de uma outra comunidade. No caminho, os irmãos vão dando os nomes para as plantas e animais, nomeando também os alimentos. Só depois é que o Sol e o Lua vão para o céu, partilhando a função de iluminar o mundo. O Sol, mais velho e poderoso, ilumina o dia. O Lua, irmão menor e não tão poderoso quanto o Sol, ilumina a noite. Mas o Lua, mais fraco, fica cansado e tem que descansar. É por isso que existem as fases “do Lua”.

Os Mbyá-Guarani possuem duas porções de alma: uma sagrada e outra telúrica. A alma sagrada é chamada ñe’e e significa, literalmente, alma-palavra. Na linguagem Mbyá-Guarani os termos “alma” e “palavra” tem o mesmo significado, o mesmo valor semântico. O ñe’e é a alma e a palavra, a fala dos Mbyá-Guarani é a expressão de sua alma. Os pais das almas-palavras, divindades chamadas ñe’eng ru eté enviam uma nova ñe’e para esse mundo quando cada nova criança Mbyá-Guarani é concebida. Do nascimento de uma criança os Mbyá-Guarani dizem que a alma-palavra tomou assento. Quando a criança, com cerca de um ano, começar a falar (expressão da alma palavra) e andar (manter erguido o fluir de seu dizer), ela será batizada – no ritual do nimongaraí. Neste momento o nome da criança será revelado pelo karai (xamã). O nome da criança tem a ver com o ñe’eng ru eté que enviou a ñe’e dela. Para cada ñe’eng ru eté existe um conjunto de nomes que podem ser dados à criança.

É interessante que o Mbyá-Guarani não possuiu simplesmente um nome; ele é o próprio nome. O nome é sua ñe’e. Como escreveu Cristian Pio Ávila, “um Mbyá não se hcama Karaí, por exemplo, ele é Karaí, ele é o próprio nome” (Avila, 2005). E este nome veio de uma divindade que tem um lugar preciso no cosmo Mbyá-Guarani, correspondente a uma direção ordenada segundo os pontos cardeais. Por exemplo, os ñanderu kuéry (filhos de Ñanderu) moram na direção leste, no nascente; já os tupã kuery (filhos deTupã) moram no outro lado, onde o sol se esconde, no oeste; os karai kuéry se encontram no leste, relacionados com o paraguaçu, o grande mar, isso também pode ser aplicado aos alimentos.

Voltando aos alimentos Mbyá-Guarani e à narrativa sobre a aventura vivida pelos irmãos Kuaray e Jaxy, ao abandonarem a morada dos jaguares, ao iniciarem uma nova vida longe da “animalidade”, os irmãos vão pelo “caminho” nomeando as coisas que encontram, com destaque para os alimentos. Tem-se, então, que neste momento mítico, ao nomear os alimentos, Kuaray e Jaxy também os estão dotando de almas. O que tem nome tem alma! O nome é a alma. E, mais do que isso, os irmãos estão designando a divindade correspondente a cada alimento, com seu local de origem, sua posição precisa no cosmos.

Isso tudo ocorreu na transição da Primeira Terra (yvy tenonde) para a segunda (yvy pyau). Os Mbyá-Guarani não costumam falar sobre o seu sistema xamânico cosmológico com indivíduos que não pertencem ao seu grupo – ou o fazem de forma muito ponderada. Por isso os dados sobre a transição entre as duas Terras estão repletos de lacunas. Porém, cruzando informações entre vários autores, é possível dizer que na Primeira Terra os Mbyá-Guarani eram deuses. Contudo, existia uma hierarquia entre estes deuses. Isso se encaixa nas informações apresentadas por Leo Cadogan (1997), Pierre Clastres (1990) e Hélène Castres (1978). Segundo estes autores, na ocasião do iporum (dilúvio), a maioria dos seres que habitavam a Primeira Terra “ascenderam” ao mundo sobrenatural. Os seres que não levavam uma vida virtuosa foram deslocados para uma nova Terra, a Segunda Terra, que é a Terra Atual, chamada yvy pyau. Os seres em questão seriam os Mbyá-Guarani. Esta Segunda Terra foi criada especialmente para dar uma nova oportunidade aos Mbyá-Guarani “ascenderem” ao mundo sobrenatural. Esta é a razão da existência da Terra Atual.

Assim, os Mbyá-Guarani estão nesse mundo – yvy pyau – passando por uma espécie de prova (H. Clastres). Caso se portem em conformidade com os anseios divinos, também se tornarão deuses. A Terra Atual é imperfeita e habitada por seres também imperfeitos. O interessante é que nessa Terra imperfeita é que os Mbyá-Guarani buscam se transformarem em seres perfeitos. É o aguyje, estado de perfeição do ser, que possibilita a passagem deste mundo para o sobrenatural, ou a passagem para a divindade. Mas, mesmo habitando o mundo imperfeito, os Mbyá-Guarani se nutrem com alimentos perfeitos. Alimentos estes que foram criados pelos deuses e que alimentavam as divindades – muitos destes alimentos inclusive já existiam na yvy tenonde e foram simplesmente deslocados para a Terra Atual. Os deuses, “mandaram” estes alimentos para a Terra Atual para que os Mbyá-Guarani possam atingir a perfeição. Para serem perfeitos é preciso que comam alimentos perfeitos. Para serem deuses é preciso comer o alimento dos deuses.

Pode parecer um castigo divino o fato dos Mbyá-Guarani terem sido enviados para este mundo a fim de passar por uma espécie de prova, mas não é um castigo. Ao contrário, é uma bênção. É uma nova chance que os deuses generosos estão dando aos Mbyá-Guarani para que eles também se tornem deuses. E, para tanto, os deuses enviaram para este mundo, junto com os Mbyá-Guarani, os alimentos que auxiliam nesta empreitada. Os Mbyá-Guarani sempre destacam esta generosidade dos deuses e a gratidão para come lês. Trata-se de uma relação diferenciada com as divindades, que nenhum outro tipo de ser desse mundo possui. Ocorre que, como já havia sido destacado por Hélène Clastres e Pierre Clastras sobre a mitologia guarani em geral, os Mbyá-Guarani gozam do status de “escolhidos” pelos deuses, pois foram eles os primeiros a receber o adorno de plumas.

Os Mbyá-Guarani vivem neste mundo – yvy pyau – com os alimentos criados pelas divindades, porém as divindades responsáveis pela alma desses alimentos encontram-se no mundo sobrenatural. Estas divindades são geralmente designadas pelos Mbyá-Guarani como os dos alimentos – que em tradução literal siginifica “donos” ou “protetores”, como observou Ramón Fogel (1998). Então, os alimentos estão em um mundo, mas seus donos, seus controladores ou protetores residem em outro. Desta forma, o cultivo de qualquer alimento tradicional pelos Mbyá-Guarani passa obrigatoriamente pelo domínio do sobrenatural, por um respeito às prescrições divinas. Ocorre que ao “dispor” os alimentos na yvy pyau, os deuses também estabeleceram as formas que estes devem ser cultivados.

Cada espécie tem a sua forma peculiar de cultivo, em consonância com o estabelecido pelo seu . O respeito às técnicas prescritas é um dos determinantes do caráter sagrado dos alimentos tradicionais. O alimento não é sagrado apenas por ser originário dos deuses, mas é sagrado porque ele, também, é cultivado segundo as técnicas ensinadas pelos deuses. E os Mbyá-Guarani vêm mantendo essas técnicas desde tempos imemoriais – eles preservam as sementes das suas plantas tradicionais a partir da aplicação de técnicas tradicionais de cultivo. Essas técnicas são dominadas por todos os indivíduos do grupo: homens e mulheres, até mesmo crianças, demonstram profundo conhecimento sobre elas – muito porque todos os Mbyá-Guarani colaboram nas tarefas de obtenção dos alimentos.

Em linhas gerais, que se aplicam a todas as espécies da horticultura Mbyá-Guarani, pode-se observar uma ausência de limites rígidos entre os roçados, a mata e o espaço denominado como “pátio” das casas e/ou aldeia. As tekoá (aldeia) Mbyá-Guarani são constituídas de um espaço contínuo, com zonas de transição onde os três ambientes se fundem ou se confundem. Não há fronteiras entre os diferentes ambientes, mas sim um ambiente interpenetrado no outro. Isso não ocorre apenas nas suas roças, mas também em todo o espaço ocupado pelos Mbyá-Guarani. A espacialidade por eles construída não apresenta limites rígidos, não existindo fronteiras fixas entre um espaço e outro. Tudo é contínuo, fluído, tênue. Um ambiente não acaba em um determinado lugar e pronto. Ele vai acabando aos poucos, vai se metamorfoseando em um outro, através de zonas de transição que compreendem mistos de dois ou mais ambientes. Assim, o pátio de uma casa se estende e se confunde com o pátio da outra, que se confunde com as roças de um produto, com as roças de outro produto, com o campo, com o mato, etc., ao mesmo tempo em que tudo é caminho.

Diferente dos “nossos” modelos de plantio, nas roças dos Mbyá-Guarani não existem linhas retas. Os contornos do roçado seguem as inclinações do terreno, sendo que a limpeza da vegetação da área é feita apenas nas áreas mais planas. Geralmente os Mbyá-Guarani também optam por não avançar os seus roçados por áreas onde a vegetação é de difícil remoção. Sendo assim, os contornos dos roçados são extremamente sinuosos. Se é que se pode falar em contornos, uma vez que as áreas se interpenetram – o mato avança entre as roças e as roças adentram um pouco o mato; os roçados avançam sobre os pátios das casas e vice-versa. Onde são semeadas as plantas, parece que as sementes são distribuídas de modo aleatório no solo – porque não são semeadas em linhas. Mas existe toda uma ciência nesta distribuição. São formas que, segundo os Mbyá-Guarani, garantem um melhor aproveitamento do terreno, bem como a máxima rentabilidade das espécies cultivadas. Além disso, as plantas devem ser semeadas de maneira que se sintam “felizes umas com as outras, se plantar muito perto ela não fica alegre”. E, estas formas de plantio foram ensinadas por Ñanderu.

Também é característico dos roçados Mbyá-Guarani que diversas espécies partilhem a mesma área. Numa primeira olhada, tudo parece um caos, várias plantas misturadas, aparentemente sem nenhuma lógica. Abóboras crescem entre pés de mandioca. Batatas-doce entre pés de milho. Melancias são semeadas no meio da plantação de aipim. E assim por diante. Sem falar nos tocos remanescentes da limpeza do terreno. Ser para “nós”, no estanhamento, tudo parece caos, para os Mbyá-Guarani é o modelo perfeito. Inclusive esteticamente perfeito – o bonito são as plantas “misturadas”. Os diferentes tipos de plantas que podem dividir o mesmo espaço, o período de plantio de cada uma delas, o distanciamento entre elas, etc., tudo segue uma ciência secular, prescrita pelos deuses. E esta distribuição peculiar de plantas no terreno é que confere a tradicionalidade, a sacralidade e a “gostosura” dos laimentos Mbyá-Guarani

Os cultivos Mbyá-Guarani também se caracterizam pela ausência de adubos, agrotóxicos e irrigação. Estes são desnecessários. Os alimentos são criações dos deuses e são plantados como as divindades ensinaram aos Mbyá-Guarani. Além disso, os deuses (os de cada alimento) também são responsáveis pelo crescimento das plantas. Esta estreita ligação dos Mbyá-Guarani com as suas divindades faz com que todas as etapas da alimentação, desde o plantio até o consumo, sejam marcadas pro inúmeros ritos. O plantio tem início com ritos na opy – casa de rezas –, quando os Mbyá-Guarani solicitam aos deuses o crescimento das plantas. As sementes que serão plantadas participam deste rito – que alguns Mbyá-Guarani traduziram como o “batismo das sementes”. Depois, enquanto as plantas crescem na roça, outros ritos se repetem, também visando a produção dos alimentos. Por fim, após a colheita, período de festas entre os Mbyá-Guarani, novos ritos são feitos para agradecer os alimentos obtidos. Isso é muito significativo, pois o sucesso ou fracasso na produção dos alimentos está relacionado com o sucesso ou fracasso na execução dos rituais, na comunicação com os das plantas. E os das plantas possuem uma porção sua nas próprias plantas. Desta forma, como conclui Fogel (1998), para que as rezas (os ritos) produzam efeitos, elas precisam escutadas pelas plantas e pelos seus protetores sobrenaturais. Se os Mbyá-Guarani fizerem os ritos corretamente, não irão lhes faltar alimentos. Assim, irrigação, adubo e/ou agrotóxicos não fazem sentido entre os Mbyá-Guarani. Basta “rezar” para que as plantas cresçam. Realizando os ritos corretamente, é certo que os deuses farão as plantas crescerem. Não tem erro! Tanto é que alguns Mbyá-Guarani, ao falar desses ritos, afirmam que “mandam” as plantas levantarem.

Os deuses – e os de cada alimento – integram um verdadeiro sistema de colaboração entre eles para tornar possível a alimentação dos Mbyá-Guarani. Este é um ponto bastante delicado de ser abordado, posto que os Mbyá-Guarani, com o intuito de preservar a sua cultura e evitar estigmatizações, entre outros motivos, evitam falar sobre os eu sistema xamânico-cosmológico com os Juruá. E, nas poucas vezes que fizeram, geralmente apresentam um discurso medido, um misto de explicação (para pontuar a identidade étnica), simulacro e ocultação (para evitar estigmatizações). Quando os Mbyá-Guarani falam sobre as suas divindades, geralmente mencionam apenas o nome de Ñanderu. Este é a principal divindade dos Mbyá-Guarani, geralmente referido como “nosso pai eterno”. O fato de mencionar apenas o nome de Ñanderu e a ele atribuir as características e funções de todas as outras atividades e, para os Mbyá-Guarani, uma forma de simplificar as explicações para os Juruá. Como os Juruá são monoteístas, nada mais lógico, aos olhos dos Mbyá-Guarani, do que tentar traduzir o seu sistema xamânico-cosmológico nesses termos. Além disso, resumindo todo o seu sistema a uma única divindade, eles estão, de certa forma, impedindo que os Juruá dominem suas crenças e, assim, protegem a sua cultura e evitam estigmatizações. Ou seja: “pros brancos não entender”. Desta forma, tudo é Ñanderu. Quem criou o milho? Ñanderu. Quem ensinou a plantar? Ñanderu. E assim por diante... Entretanto, os Mbyá-Guarani são politeístas. Qualquer pesquisador que tenha uma vivência mais constante com eles observa facilmente que além de Ñanderu, existem Tupã, Jakaíra, Ñamandu (que também é um Ñanderu), entre muitos outros. Os kuery (grupos de indivíduos) encontrados nas tekoa Mbyá-Guarani também existem no domínio sobrenatural. Os também estão agrupados em kuéry. E existe uma hierarquia entre esses deuses, sendo que o – digamos – “líder” de todos é Ñanderu. Só que são milhares – ou talvez milhões – de deuses no panteão Mbyá-Guarani, pois muitos Mbyá-Guarani já se tornaram deuses. Todos bem posicionados na linha hierárquica. Os Tupã kuéry, por exemplo, são inúmeros seres que habitam o mundo sobrenatural e que estão subordinados a Tupã. Os Jakaíra kuéry, todos subordinados a Jakaíra. E assim por diante. O interessante é que essa hierarquia se estende até os Mbyá-Guarani que habitam este mundo, deuses em potencial.

Então, se é fato, como os Mbyá-Guarani costumam afirmar, que todos os seus alimentos tradicionais foram criados por Ñanderu, também é fato que os irmãos Kuaray e Jaxy dotaram estes alimentos de um nome, de uma alma, e com isso estabeleceram as divindades que são os dos alimentos. Como afirmou certa vez um Mbyá-Guarani: “toda comida tem seu dono... o seu próprio”. Assim, o milho tem um “dono”, o feijão outro, etc. São seres espraiados na hierarquia sobrenatural. A estes deuses específicos, o ao conjunto de deuses subordinados aos “donos” dos alimentos, que os Mbyá-Guarani dirigem os seus ritos. Mas os ritos podem ser dirigidos diretamente a Ñanderu, que é o “chefe” de todos os . Funciona mais ou menos assim: caso um não esteja atendendo as preces dos Mbyá-Guarani, o jeito é “reclamar” com o chefe desse . Então o sucesso no cultivo de cada diferente espécie alimentar depende da correta execução dos ritos, da perfeita comunicação com os e do bom “relacionamento” entre ambas as partes. Isso explica, segundo os Mbyá-Guarani, porque num mesmo período e terreno um cultivo pode render muito enquanto outro, quase nada. A safra de milho pode ser boa enquanto a de feijão, má. É porque são alimentos com “donos” diferentes.

O poder, a força vital e as características dos deuses se estendem para as espécies vegetais das quais eles são “donos”. É como se um pé de milho fosse uma parcela da divindade “dona” dele. Como já exposto, a alma é o nome, e o nome é o próprio ser. Por exemplo, um Mbyá-Guarani não se chama simplesmente Verá; ele É Verá. E, aplicando isso às plantas, temos que os alimentos cultivados nas roças são alma/nome/planta. A alma de uma planta é “uma parte” do seu . Ou, simplesmente, a alma é o . Assim, é interessante notar que a roça, para os Mbyá-Guarani, é um espaço extremamente importante, digno de todas as atenções. A roça é um ambiente onde a força e o poder sobrenatural se fazem presentes – grosso modo, as divindades estão plantadas lá. Considerando as características da horticultura Mbyá-Guarani, onde várias espécies dividem o mesmo terreno, podemos especular que a força de diversos “donos” se fundem neste ambiente. Se por um lado misturar espécies é aumentar o rendimento dos alimentos cultivados pela “cooperação” entre as diferentes plantas, por outro lado, ao semear diferentes plantas (com diferentes ), os Mbyá-Guarani estão aumentando o leque de forças sobrenaturais que incidem sobre o terreno. Enfim, a roça é um lugar “sagrado’ para os Mbyá-Guarani.

Nesse complicado quebra-cabeças de relação e colaboração de diversos deuses “donos” das espécies na produção dos alimentos Mbyá-Guarani, destaca-se o papel de Tupã e/ou dos Tupã kuéry. Eles são “donos” de vários elementos da natureza, inclusive alimentos. Tupã é geralmente mencionado pelos Mbyá-Guarani como o da chuva. E tal qual acontece com os alimentos, Tupã é a própria chuva. Sendo assim, neste contexto de colaboração entre deuses, Tupã é um colaborador importantíssimo na criação e produção dos alimentos dos Mbyá-Guarani. Antes de qualquer alimento ser criado, houve o aparecimento de Tupã, a chuva. Até hoje, para que qualquer planta brote, é indispensável o aparecimento de Tupã.

Esse quando Guarani fizeram a rocinha e não tem facão, bateram com esse pauzinho, bateram taquarinha, quebrando, quebrando tudo e depois secou e depois botaram foguinho e queimaram bem queimadinho e depois só cinza... Só virou cinza. Olhavam... O eu vamos plantar? O que vai ser, né? Pensando. O Karaí... o Karai que pensava. Kuña-karai pensava. E depois veio a chuva, a chuva forte, e... Derrampa os tronos, o Ñanderu, o Tupã. Chove bastante e depois choveram dois dias. Chuva forte. E depois passou e durava mais ou menos quatro, cinco dias. E depois eu caminhava, depois de passar o tempo chuvoso, a dona da rocinha, né? Não foi plantado não. Eles nasceram por si.

Ai despejaram Tupã. Ai depois outro parte tem... Nasceram melancia. Depois outro parte nasceram abóbora. E, e assim (...) já achava importante e... Cuidava aquele, cuidava muito, muito, muito, e depois grande tem (...) Grande e depois no fim granando, que já tem grão. Quando seco, juntamos aquele, não comeram, e depois acha bonito, espiga bonita, deixou para semente, aí brotou de novo.

É a chuva! Tupã é o deus que tá no trono e se derrampa, né? Derrampa e faz o trono e semia algum parte que quer bem o deus. É ele que traz semente. Então esse ai que o governo não querem compreender... Só de... Queria que compreendesse... Do fundo, do fundo do corpo, do fundo dos cadáveres do ar, e quando na conversa, da sabedoria que ele podia espalhar por todo o mundo. Ele não pensa pro índio. É isso ai. Tô dizendo essa maneira porque eu sei (Mbyá-Guarani, 2005)

O interessante do trecho acima é que Tupã colaborou com as outras divindades para o surgimento das primeiras plantas e desde então colabora – com outros – para a reprodução destas plantas. Outro fato interessante é que, pela narrativa, desde o princípio os Mbyá-Guarani praticam o modelo horticultor que eles chamam de tradicional – limpando o terreno e queimando os restos da vegetação. E, mais interessante ainda, a forma tradicional de preparar as roças surgiu antes mesmo de serem criadas as plantas tradicionais.

Tupã (ou os Tupã kuéry) também é colaborador nos alimentos de origem animal. Ocorre que, segundo os Mbyá-Guarani, toda água que existe nesta terra é oriunda da chuva e todo animal precisa de água para sobreviver. Assim, Tupã é fundamental em toda a alimentação Mbyá-Guarani. E, como os Mbyá-Guarani também precisam consumir água para sobreviver, Tupã é condição necessária para a sobrevivência deles neste mundo. Sem a colaboração de Tupã, não haveria água para beber, para o crescimento dos alimentos cultivados nas roças e dos coletados nas matas, para o crescimento dos peixes e animais caçados. Em suma, sem Tupã não haveria alimentos. E isso também se aplica aos outros inúmeros dos alimentos Mbyá-Guarani. É por isso que os Mbyá-Guarani precisam manter um bom relacionamento com os diferentes , preposto dos deuses. E esse bom relacionamento passa por uma boa comunicação ritual.

Portanto, cada planta cultivada pelos Mbyá-Guarani em suas roças possui uma posição precisa na cosmologia Mbyá-Guarani, uma alma. Isso faz com que a “reza” – como falam os Mbyá-Guarani para os Juruá compreenderem – seja um dos elementos das técnicas de cutlivo.

Texto de Mártin César Tempass,
in “Quanto mais doce, melhor – um estudo antropológico das práticas alimentares da doce sociedade Mbyá Guarani”


AGUYJE - TORNAR-SE DEUS

O objetivo de todo Mbyá Guarani nessa “terra imperfeita” (yvy pyau) é alcançar o AGUYJE, é tornar-se também uma divindade. Eles são descendentes dos deuses. Dentre todos os seres que habitam a porção telúrica da yvy pyau, os Mbyá Guarani se consideram como “os escolhidos dos deuses” (P.Clastres, 1990; H. Clastres, 1978). Escolhidos para também se tornarem deuses. A divindade é uma possibilidade para os Mbyá Guarani, desde que respeitem algumas regras cosmológicas, estabelecidas pelos deuses exclusivamente para o aguyje Mbyá Guarani. São uma série de regras que estão estreitamente interligadas, sendo eu as mais elementares são as regras alimentares. Assim sendo, com as regras interligadas, resulta que todas as regras para o aguyje estão direta ou indiretamente relacionadas à alimentação do grupo. E, em sentido inverso, a partir da alimentação pode-se compreender toda a organização sócio-cosmológica dos Mbyá Guarani.

O caráter dual da alma Mbyá Guarani é consenso. Porém não se resume apenas à alma, mas também ao corpo. Entre os Mbyá Guarani não se pode isolar os domínios da natureza, da sociedade e da sobrenatureza. O mesmo se aplica na relação corpo e alma: eles são construídos e operados em conjunto. Um define o outro. O aguyje (a perfeição do ser) só é alcançado se corpo e alma estiverem “perfeitos”, pois não é apenas a alma que “vai” para a morada dos deuses; o corpo precisa “ir” junto.

Se todos concordam com o caráter dual da alma Mbyá Guarani, não há consenso sobre o número de almas que eles possuem. Esse número varia de informante para informante, variando entre uma e quatro. Mas independente do número de almas declaradas, sempre há ao menos uma alma de origem sagrada e outra de origem telúrica. Os Mbyá Guarani costumam se referir às suas almas simplesmente como “a alma”, talvez por uma alegoria didática, talvez porque efetivamente há apenas uma alma, mas com duas porções distintas, uma telúrica e outra sagrada. Em suma, em qualquer uma das configurações, os Mbyá Guarani sempre possuem alma(s) híbrida(s) de natureza (telúrica) e de sobrenatureza (sagrada). E, mesmo nesse foco reduzido, ambas as almas – ou ambas porções da alma – nunca podem ser analisadas separadamente, posto que operam em um mesmo veículo, o corpo. Neste caso, o corpo pode ser comparado a uma gangorra: quando a alma sagrada “sobe”, a alma telúrica “baixa”. Não há condições para que ambas “subam” ao mesmo tempo.

O corpo é o veículo da(s) alma(s), é o seu habitat. Mas, como tudo é “caminho” para os Mbyá Guarani, é possível afirmar que a(s) alma(s) “circulam” pelo corpo dos indivíduos dessa etnia. E, de fato, se “caminhar” é manter-se vivo (Pissolato, 2007), a(s) alma(s) precisam “circular” pelo corpo para também se manterem vivas. Mas cada diferente alma – ou porção da lama – possui o seu “caminho”. Ocorre que o corpo, por associação, também é dividido em porções telúricas e sagradas. Agrupando as diferentes partes do corpo humano, podemos estabelecer que o conjunto carne e sangue é o “caminho” da(s) alma(s) telúricas, enquanto o esqueleto é o “caminho” da(s) alma(s) sagradas.

A circulação da alma sagrada é que mantém o esqueleto e, consequentemente, os Mbyá Guarani, eretos. Ela é a “alma-palavra” (Ferreira, 2001; H.Clastres, 1978), somente “eretos” os Mbyá Guarani podem pronunciar palavras. É ela que mantém “erguido o fluir do dizer” (Cadogan, 1997). O esqueleto e a fala são condições da alma sagrada. Tanto a palavra quanto o andar ereto são distintivos dos Mbyá Guarani frente aos animais. O Mbyá Guarani que não puder falar não poderá andar, e vice-versa. A fala circula pelo esqueleto ereto. Qualquer um dos sintomas – não andar e/ou não falar – é um sinal que a alma sagrada está abandonando o corpo Mbyá Guarani, ou está sendo vencida pela alma telúrica. Isso para o Mbyá Guarani significa a morte! Ou significa adentrar o domínio da animalidade, posto que não falar e/ou não andar ereto é característico dos animais.

A perfeição do ser objetivada pelos Mbyá Guarani – que é o AGUYJE –, consiste em ampliar a porção sagrada do conjunto corpo e alma e, com isso, diminuir a porção telúrica. Segundo Hélène Clastres (1978), o aguyje é a aniquilação da má natureza, restando apenas o esqueleto e a palavra nele contida. O aguyje é alcançado quando o conjunto sagrado aumentar a ponto de “eliminar” o telúrico. A alma sagrada deve ser cem por cento da alma dos Mbyá Guarani. A porção sagrada do corpo também, por associação, precisa atingir a completude do corpo. O interessante é que a alma sagrada “aumenta” e, com isso, ocupa o “lugar” da alma telúrica, mas no corpo isso não ocorre, pois a porção sagrada não pode ocupar a telúrica. Assim, o corpo precisa, obrigatoriamente, diminuir. Deve restar, quase, somente o esqueleto. Em suma: no processo do aguyje, o corpo diminui enquanto a alma aumenta – sempre no que tange as porções sagradas.

Os alimentos tradicionais proporcionam isso. Eles alimentam mais as porções sagradas do que as telúricas. “Para os Guarani, alimentar o corpo também significa alimentar a alma; não se alimenta um sem alimentar o outro, não há, no pensamento mítico guarani, uma dicotomia, uma oposição monolítica entre alma e corpo” (Carvalho, 2005).

A magreza é, então, a condição do aguyje. Somente com um corpo “leve” e “limpo” é que se pode ascender ao mundo sobrenatural. Esse ascender, literalmente, significa que, com a perfeição, os Mbyá Guarani podem “levitar” ou “flutuar” até a morada dos deuses. Isto ocorre com eles ainda “vivos”, pois o aguyje também pode ser considerado o vencimento da morte. O “leve” significa poder vencer a gravidade; e o “limpo” significa “limpar” o corpo das porções telúricas indesejadas. Nos dois casos, só se obtém êxito a partir do controle da alimentação.

Ocorre que o conjunto corpo-alma de um Mbyá Guarani nunca “é”, ele sempre “está”. Ele “está” magro e/ou limpo. Os corpos e almas, sempre ambos na mesma direção, são construídos e reconstruídos diariamente. É um processo longo em que cada dia se “caminha” bem pouco. O que hoje pode estar mais “leve”, mais “limpo” e mais “sagrado”, amanhã pode estar o contrário. Tudo depende da alimentação.

Para atingir o aguyje, em primeiro lugar, é preciso evitar os alimentos que possam levar á animalidade. Aliás, o que pode levar à animalidade nem é considerado “alimento” pelos Mbyá Guarani, são tabus alimentares. Em segundo lugar é preciso comer apenas alimentos tradicionais, apenas orérembiú. Mas, dentre os alimentos tradicionais existem os que são mais e os que são menos indicados para alcançar o aguyje. Tal qual o corpo humano, os Mbyá Guarani também classificam seus alimentos em duas categorias: os do “esqueleto” e os da “carne-sangue”. Grosso modo, os alimentos de origem vegetal são os do esqueleto. Também o mel, o ixó, os peixes e o koxi fazem parte dessa categoria. As carnes de caça e todos os alimentos de fora dos sistema culinário tradicional Mbyá Guarani são considerados como da carne e do sangue. Mas, mesmo dentro dessas categorias, existem hierarquias, sendo que alguns alimentos são melhores do que outros para atingir o aguyje.

Os alimentos mais indicados para aperfeiçoar corpos e almas são os que também são os menos “temidos”, ou os menos complexos em relações recíprocas entre seres dos diferentes domínios. Quanto maior a cadeia alimentar de uma comida – e/ou a sua variedade de alimentação –, maiores são as relações recíprocas contidas nela. É por isso que se alimentar de vegetais exige menos cuidados do que a alimentação com carnes de caça. Na carne de caça estão contidas “marcas” dos inúmeros que propiciam a caça e de outros , donos de outros seres, como as plantas, por exemplo, que proporcionam a vivência da caça em seu habitat. Também na caça ficam as marcas dos alimentos, que também possuem , que o animal come. Como para a existência de cada alimento é preciso que haja reciprocidade entre vários , no caso “dos alimentos dos alimentos” (cadeia alimentar) este número de relações recíprocas é muito maior, posto que a atuação dos seres é cumulativa. Temos, assim, que quanto mais estiverem em uma comida, menos indicada ela será para alcançar o aguyje.

Os vegetais envolvem menos , posto que têm reduzidas possibilidades alimentares (terra, água, ar e sol). Os ixó, por exemplo, também são altamente indicados para o aguyje. Eles se alimentam unicamente da madeira da pindó. Eles só precisam da pindó para viver, pois eles vivem dentro do tronco desta palmeira. Sendo assim, eles têm poucos envolvidos na sua existência. Os Mbyá Guarani se referem o ixó como o alimento mais “limpo e puro” que pode existir. O mesmo vale para o pirapé, peixe que segundo os Mbyá Guarani é o mais limpo de todos, pois ele come apenas o limo das pedras do fundo dos rios.

(...) pirapé, ele é peixe muito boa. Ele é considerado sagrado porque ele não come muita coisa. Prá nós é sagrado porque criou deus, mas ele tem uma comida só. Por isso ele é sagrado. Ele não tem dente, só boca. Por isso é sagrado. A gente se alimenta de tudo o que vem, ta estragando o corpo. Se tem uma comida certa, tem saúde. Mas se come várias coisas, não é alimento sagrado. Cada bicho sagrado tem um alimento só. Por isso o alimento é muito bom. A carne é muito saudável. Não é contaminado. (Mbyá Guarani, 2008)

Temos, então, que quanto mais limitadas as opções de alimentação de um animal ou vegetal, mais limpo ele será enquanto “comida”.

Mas isso não se aplica apenas aos ingredientes em si, mas a todas as etapas que resultam na elaboração de uma comida. Não é só o milho que deve ser o mais limpo possível, mas também os pratos preparados a partir do milho, como o rorá, o mbojapé, o kagueji, etc.

Além do ingrediente propriamente dito, também os pratos preparados com ele, juntamente com outros ingredientes, possuem uma hierarquia no que diz respeito à obtenção do aguyje. Na junção de vários ingredientes podem haver mudanças na hierarquia. O milho pode ser o mais recomendado para alcançar o aguyje, mas um prato que misture milho com amendoim, em uma farofa (pixé), pode ser menos recomendado. Tudo depende de quais os ingredientes que são misturados. O kagueji, por exemplo, pode ser feito de milho misturado com batata-doce, e é considerado um dos alimentos mais indicados para a obtenção do aguyje. No entanto, apesar desta possibilidade, a grande maioria dos pratos da culinária Mbyá Guarani envolve apenas um ingrediente, como por exemplo, rorá, xipá, andai mimói, avaxi mbity, avaxi cuí, etc.

O simples é que é o belo, que é o gostoso. Quanto mais simples, menos se “modifica” a criação divina. Em suma, quanto mais simples, mais sagrado. Mas, de simples mesmo é só o reduzido número de ingredientes. Câmara Cascudo, falando dos “indígenas em geral”, observou que estes grupos não misturavam os seus muitos ingredientes para a preparação de um único prato. Nas palavras do autor, os indígenas “não cozinham os alimentos conjuntos. Feijão é só feijão. Milho é só milho” (Cascudo, 1983). Para o autor, isto representa uma limitação culinária dos indígenas que, ao não misturarem ingredientes, perderiam de elaborar pratos melhores. Entretanto, no caso dos Mbyá Guarani, o “melhor”, tanto em termos cosmológicos como de paladar, é o simples, é o que possui apenas um ingrediente ou poucos ingredientes.

Mas de nenhuma maneira isso significa que os indígenas não possuam elaborações culinárias com vários ingredientes ou que estas não sejam muito apreciadas. Pelo contrário, existe uma infinidade de pratos com vários ingredientes. Apenas, no cômputo geral, estes pratos são menos expressivos no que tange o gosto e a busca do aguyje. De forma nenhuma pode-se pensar que a ausência de pratos mais “elaborados” em termos de ingredientes significa uma incapacidade culinária deste povo. A sua culinária possui pratos muito elaborados, mesmo que com poucos ingredientes.

Mesmo combinando poucos ingredientes, o ideal para os Mbyá Guarani é que haja “mistura”. Aliás, arrisco afirmar que a mistura alimentar ocorre em todas as sociedades indígenas. Basta lembrar que a farinha de mandioca (também a de milho) é de origem indígena, sendo um dos emblemas culinários destes grupos. Pois bem, como observou Roberto DaMatta (1984), a farinha de mandioca proporciona as misturas, sendo por isso considerada como um alimento relacional. Ela serve para unir em um único conjunto as diferentes comidas.

Os Mbyá Guarani podem comer, sem nenhum problema, apenas jety mbijy (batata-doce assada) em uma refeição. Mas isso ocorre somente em casos excepcionais, durante uma expedição à mata ou um período de escassez. O ideal é sempre ter no mínimo dois “pratos” numa refeição (e nunca mais de quatro pratos). Por exemplo: a jety mbijy fica melhor se acompanhada por uma carne de caça. Ou o mbojapé é melhor se for regado com mel. Ocorre que para os Mbyá Guarani comer apenas um alimento repetidas vezes – três ou quatro refeições seguidas – leva ao aparecimento de vermes em seu sistema digestivo. Com os vermes o ventre se avoluma e com isso a porção de carne e sangue do corpo aumenta em relação ao esqueleto. Assim sendo, os vermes podem ser fatais. O interessante é que os “alimentos’ preferidos para o aguyje são os que comem apenas um único alimento, como o ixó e o pirapé. Mas se os Mbyá Guarani comem apenas um alimento repetidas vezes, não atingirão o aguyje e ainda correrão o risco de se transformarem em animais. O risco da animalidade está sempre presente quando são aumentadas as dimensões corporais, pois um corpo muito pesado não pode ser suportado pelo esqueleto que, então, perdendo sua condição de ereto, desapropria dos Mbyá Guarani a condição de andarem eretos e falarem, condições delimitadoras da humanidade.

É também por essa razão que os Mbyá Guarani comem com parcimônia. Eles comem muito pouco em comparação ao volume alimentar da sociedade envolvente. Os animais devem ser “gordos”, os humanos magros. Mais uma vez a comida e o comedor se encontram em posições antagônicas. A “comida” deve se alimentar sem misturas, enquanto os comedores precisam misturar comidas. A “comida” gorda é apreciada, mas os comedores devem ser magros. Seria isso um embodiment ao contrário? Não, o “gordo” da comida levará ao “gordo” do corpo. A chave de tudo está na quantidade ingerida. Comer pouco é mais importante que comer muito dos alimentos recomendados para o aguyje. O pouco leva à divindade; o muito, à animalidade.

É justamente na comunicação com a divindade que se deve ingerir poucos alimentos. Os Mbyá Guarani realizam os seus ritos na opy à noite. Os ritos consistem em uma comunicação com o mundo sobrenatural. Para ter êxito nesta comunicação, os Mbyá Guarani afirmaram nunca comer nada à noite. Jantar atrapalha. Ocorre que os ritos Mbyá Guarani sempre são acompanhados de danças. Para poder dançar é preciso estar com o corpo leve. Já Elizabeth Pissolato (2007) assinala como problema apenas o consumo de carne nas refeições vespertinas, pois as carnes deixam os Mbyá Guarani cansados, os impedindo de dançar a contento.

O corpo “pesado” atrapalha a dança, mas também, ao contrário, a dança deixa o corpo leve. Ela é um dos “antídotos” contra equívocos alimentares. Com o exercício da dança são gastas as calorias ingeridas a mais. A dança também faz o corpo suar. Juntamente com o suor são eliminadas as impurezas do corpo. O suor é salgado e o salgado é “impuro”, enquanto o “doce” é puro. O suor limpa o corpo, ele dessalga o corpo, deixa o corpo doce. Em suma, a dança limpa e dá leveza ao corpo. A dança faz parte da alimentação Mbyá Guarani.

Outro “antídoto” empregado pelos Mbyá Guarani para comer pouco é a caá, a erva-mate. Embora os Mbyá Guarani considerem a caá um dos seus mais importantes alimentos, ela, na realidade, constitui um anti-alimento. É o comer para não-comer. Ela é ingerida em grande quantidade para que outras comidas possam ser ingeridas em pequena quantidade. Ela ameniza a fome e o cansaço. Ocorre que a erva-mate, também conhecida yerba, contém carboidratos, proteínas, potássio, ferro, cálcio, vitaminas A, B2 e C. Também tem flavonóides que lhe dão a propriedade antioxidante.

A preparação do caá é a primeira atividade dos Mbyá Guarani após acordarem, ainda no koenjú. Seu consumo logo pela manhã é justificado porque os Mbyá Guarani já acordam com fome, depois de terem se alimentado pouco – ou nada – e dançarem algumas horas na opy, na noite anterior. O seu consumo pela manhã retarda o consumo do “desjejum”, fazendo também com que uma menor quantidade de alimentos seja ingerida nesta ocasião. O consumo da caá também é um momento de intensa sociabilidade entre os membros da unidade de comida. É pela manhã, em torno da fogueira, quando a cuia de caá circula de mão em mão, que um grande grupo de indivíduos se reúne para conversar, sobretudo sobre os sonhos que tiveram na noite anterior. É interessante que durante o consumo da caá pode-se conversar livremente, já na ingestão de qualquer outra comida os Mbyá Guarani se mantém quietos.

A caá é um dos itens que os Mbyá Guarani mais sentem falta, pois além do efeito de amenizar a fome, ela propicia alegrias, as conversas sempre são mais animadas quando uma cuia está em circulação. Para os menores de doze ou treze anos não é recomendado o consumo de caá, pois nessas idade elas precisam comer para se desenvolver. Já para os adultos, a caá tem premência sobre os outros alimentos.

o kagueji também é considerado um alimento “antídoto” contra equívocos alimentares. Ele limpa o corpo, mantém e proporciona à alma sagrada uma boa comunicação com as divindades. Por kageji compreende-se um conjunto de bebidas tradicionais de uso ritual, que possui como ingrediente base o milho. Kageji é, então, uma designação genérica. Ele pode ser tomado a qualquer momento do dia, na quantidade que o consumidor desejar. O excesso de kagueji não faz mal. Pelo contrário, quanto mais, melhor. A única regra que limita o consumo é que o kagueji disponível deve ser consumido de forma equivalente por todos os membros da unidade de comida. Uma pessoa não pode tomar muito kagueji de forma que não sobre para os demais. O kagueji pode ser “forte” (fermentado, alcoólico) ou “fraco” (sem fermentação), dependendo do tipo e do tempo de descanso entre a preparação e o consumo. Nas palavras de um Mbyá Guarani: “Fica bêbado também. O kagueji é nossa bebida. Deixa dois, três dias... já fortinho. Dá assim a mesma coisa que bebida de álcool. (Mas) essa é natural” (Adorfo, 2005). Forte ou fraco, todos os tipos de kagueji podem ser bebidos por todos os indivíduos. Não há restrições nem para as crianças, que adoram a bebida. “Pode tomar todo o dia, ou se não de manhã, se não de meio dia ou de tarde. A hora que quiser, né?” (Adorfo, 2005).

No entanto, o kagueji deve ser consumido nos contextos rituais, o que ocorre geralmente à noite dentro da opy. O seu consumo dá sensação de leveza ao corpo, alterando de certa forma o estado de consciência. Ele propicia felicidade aos bebedores, fazendo com que as rezas/danças na opy sejam melhor executadas. Combinando com o consumo do tabaco, ele abre os canais de comunicação com os deuses, o que faz dos xamãs os maiores consumidores da bebida. Não existe xamã sem kagueji. Por extensão – já que a comunicação com os deuses proporciona os alimentos – não existe comida sem o kagueji. Ele é a principal de todas as comidas, ele proporciona as outras comidas e ele alimenta apenas a parte sagrada do conjunto corpo-alma dos Mbyá Guarani.

Grosso modo, qualquer pessoa pode preparar o kagueji. Inclusive os homens poderiam, porém, são sempre as mulheres que preparam. Mas, dependendo do tipo de kagueji e da sua finalidade ritual, o ideal é que seja preparado por pessoas de “corpo limpo” e “respeitadas” na sociedade. Isso porque quem prepara o kagueji transmite suas características à bebida. Os kagueji consumidos no dia-a-dia, como “refresco”, não precisam de muitos cuidados. Já os que serão consumidos na opy devem ser preparados por indivíduos que estejam quanto mais “limpo” possível. Mulheres menstruadas, por exemplo, não podem preparar o kagueji.

O kagueji “mais poderoso” para o uso ritual tem como ingrediente principal o milho verde. Os outros dois ingredientes são a saliva e a água. O milho verde deve ser mastigado por meninas novas (que ainda não menstruaram nem tiveram relações sexuais) e logo depois cuspido em um coxo. A mastigação atribui saliva ao milho, que irá promover a fermentação. Então é só esperar o período necessário a esta fermentação para poder ser consumido. Este kagueji fica bem “forte” e com os sabores realçados. Como observou Cascudo, “na diástase da saliva a ptialina transforma o amido das raízes e dos frutos em maltose e dextrina, provocando a sacarificação, resultante dos ácidos orgânicos sobre os açúcares” (Cascudo, 1937).

O seu Adorfo é karaí (xamã), mas por uma série de razões, a sua unidade de comida é bastante reduzida. Até outubro de 2006 ele vivia apenas com sua esposa e dois netos. E, não havendo uma menina, eles não tinham como produzir o kagueji “mais poderoso”. Sendo seu Adorfo um karaí, ele necessitava muito do consumo desse kagueji para poder entrar em contato com o mundo sobrenatural. A solução para este problema veio do estado do Espírito Santo: uma de suas netas, de apenas cinco anos, foi designada para ir morar com o avô e mastigar o milho para o kagueji.

Há, também, o kagueji guaxu, feito de milho “seco” pilado bem fino e cozido brevemente. Este kagueji deve ser preparado com no mínimo um dia de antecedência ao seu consumo, para poder fermentar. Ele fica “um pouquinho forte”. Em uma outra variedade deste kagueji pode ser misturado um pouco de milho “quebrado” (tipo canjica) ao cozimento. Em oposição ao kagueji guaxu, existe o kagueji mirim, que pode ser consumido logo após o seu preparo, mesmo aidna quente. Para a preparação do kageji mirim um pouco de milho “seco” é pilado e depois são acrescentados pedaços de batata-doce, continuando o trabalho com o pilão até que tudo vier uma única pasta. Como resultado, obtem-se uma bebida muito cremosa. O kagueji mirim é também conhecido como kagueji obaipy, ou simplesmente obaipy. Outros tipos de kagueji também podem ser produzidos como o kagueji mirim, substituindo a batata-doece por abóbora ou simplesmente acrescentando um pouco de abóbora. Também pode ser empregado o milho verde e/ou a canjica em acréscimo ou substituição ao milho “seco” pilado bem fino. De qualquer forma, milho sempre tem que ter.

Sob hipótese alguma pode-se desperdiçar kagueji . Sobretudo jogá-lo no chão; é uma afronta ao seu dono. Além disso, oferecer kagueji a um Juruá (branco) é, de certa forma, um desperdício. O kagueji é para os Mbyá Guarani, não serve para os Juruá.

Dentre outras bebidas produzidas pelos Mbyá Guarani, destacam-se a aroka e a mbypety. A aroka é o “hidromel”: água adoçada com mel. Porém os Mbyá Guarani preparam a bebida usando favos de mel. Depois de extrair o mel, para não desperdiçar o mel que fica retido nas reentrâncias dos favos, estes são “lavados” em água. Esta água então é tomada como suco, “suco de mel”. E os favos lavados são utilizados na fabricação de velas e trabalhos artesanais. Ocorre que os favos também soltam um gosto muito agradável no suco, melhor do que quando empregam apenas o mel. Nos dias frios, sobretudo nas primeiras horas da manhã, esta bebida pode ser preparada com água quente, adquirindo status de chá.

O mbypety é o suco feito com o fruto da palmeira pindó. Os frutos maduros são triturados no pilão, sendo depois acrescentada água fresca. Esta é uma bebida emblemática dos Mbyá Guarani, sendo considerada um poderoso alimento para a porção sagrada do conjunto corpo-alma. Alias, todo alimento proveniente da palmeira pindó só faz bem aos Mbyá Guarani. E ela proporciona muitos alimentos. O ixó é um dos alimentos mais limpos que existe, sendo consumido preferencialmente assado ou frito em banha de animal de caça. Todavia, só é possível comer ixó em dois meses do ano, setembro e janeiro, seus meses de safra. O ixó não existe em outras árvores, ele cresce apenas na palmeira pindó. Para obtê-lo basta encontrar um tronco de palmeira em decomposição com pequenos orifícios (por onde os ixó entraram na madeira). Então, é preciso “escutar” o barulho das larvas comendo o tronco. Localizados os ixó pela audição, é só quebrar a madeira e coletar o alimento – o que é bastante fácil posto que a madeira está em decomposição.

O palmito da palmeira pindó, chamado pindóruã, também é um alimento muito saudável e apreciado. Ele pode ser consumido cru, embora para os Mbyá Guarani não exista pindóruã cru. Ele “já é cozido natural”, não é preciso cozinhar. Neste caso, ele é muito apreciado se for coberto com mel. Mas, na maioria das preparações com o pindóruã ele passa por um segundo cozimento. Ele pode ser assado e comido acompanhado de mel e/ou carnes de caça; pode entrar em cozidos de peixes ou de carnes de caça, ou pode ser um ingrediente de sopa.

Os frutos da palmeira pindó – guãpitá – são muito apreciados. Eles são considerados “as balas dos Mbyá Guarani”, com a vantagem de serem balas naturais. Os Mbyá Guarani não se importam de coletar frutos do chão; o chão “não é sujo”. Mesmo estando danificados ou já mordidos por outros animais, os frutos podem ser aproveitados. A polpa do fruto se resume a uma fina camada que envolve um grande caroço. Dentro desse caroço há uma amêndoa muito apreciada pelos Mbyá Guarani. Então, mesmo com a polpa inaproveitável, os Mbyá Guarani coletam o guãpitá. Estas amêndoas não entram em nenhuma elaboração culinária, sendo comida ao natural. Porém o caroço do fruto é bastante duro, sendo necessário o emprego de duas pesadas pedras para poder extrair a amêndoa. Mas até crianças de três ou quatro anos possuem habilidade para obter a amêndoa.

Texto de Mártin César Tempass,
in “Quanto mais doce, melhor – um estudo antropológico das práticas alimentares da doce sociedade Mbyá Guarani”

RITUAL TUKANO DO YURUPARI


YURUPARI, ou RITO DE FRUTAS, é um ritual de iniciação dos jovens Tukano. É realizado geralmente na ocasião da maturação de certas frutas. Grande quantidade de frutas são trazidas pelos homens ao som dos instrumentos musicais. O ritual propriamente dito acontece no fim da estação seca e no início da estação chuvosa e dura três dias Durante o ritual as flautas que representam os ancestrais são mostradas aos jovens. Os mais velhos da comunidade tocam o instrumento dentro da casa, ao passo que os mais jovens (já iniciados) tocam fora da casa. As mulheres não podem ver essas flautas, sob pena de morte. Por isso durante o rito elas ficam na parte de trás da casa, atrás de uma parede de folha de palmeiras entrelaçadas, colocadas na ocasião, ou então embrenhando-se mata a dentro. As flautas são tiradas do rio, onde habitualmente são guardadas fora dos períodos rituais.


Durante a noite, o xamã purifica todas as substâncias que serão utilizadas durante o ritual (tabaco, coca, ervas de poder, tinta preta e vermelha, etc). No dia seguinte, as flautas são, de novo, colocadas dentro da água e os xamãs distribuem o fumo cerimonial, a coca, o tabaco e a tinta preta para todos os participantes. O dia passa-se em cantos. No início da noite, os iniciados, de cabelos raspados, corpos pintados de preto, entram na casa nos ombros dos mais velhos. Durante a noite, os homens lhes apresentam as flautas (que simbolizam os ancestrais) ensinando-lhes a tocá-las. Mais tarde, um xamã açoita todos os participantes para os tornar mais fortes. Estes se pintam de novo com tinta negra e passam o resto da noite e o dia seguinte tocando flautas e cantando. No terceiro dia os iniciados vão dormir, pela primeira vez, perto da parede de folhas de palmeira, colocadas na parte de trás da casa.

Assim que o dia amanhece, os iniciados vão tomar banho no rio e ao retornarem, entram novamente na casa, carregados novamente pelos mais velhos, e as mulheres lhes servem formigas saúvas e beiju de fécula de tapioca. As flautas são colocadas dentro das folhas de palmeira e imergidas novamente no rio. Os iniciados são isolados durante dois ou três meses em um compartimento especial da casa. O período de reclusão é consagrado à aprendizagem dos mitos e tradições orais. O fim da reclusão pubertária é marcado, também, por um banho ritual no rio. Depois, com o corpo pintado de vermelho pelas mulheres, entram novamente na casa, carregados pelos mais velhos como ”recém-nascidos”, e lhes dão para comer peixe cozido na água com sal e pimenta. Pouco depois ocorre uma dança comunitária, com a participação das mulheres, durante a qual são distribuídos beijus a todos os participantes. Esse rito marca a reintegração do iniciado no grupo patrilinear. O iniciado retorna depois, progressivamente, à alimentação normal.


Texto de Berta G. Ribeiro

sábado, 23 de agosto de 2014

CORPO TRANÇADO – CESTARIA E A RELAÇÃO MBYÁ-JURUÁ



O encontro entre duas culturas, que pode ser compreendido pela categoria interculturalidade, cujo prefixo inter expressa o sentido de interação, troca, reciprocidade, indica a possibilidade de integração entre elas sem anular sua diversidade, ao contrário, fomentando o potencial criativo e vital resultante das relações entre diferentes agentes e seus respectivos contextos, conforme argumenta Reinaldo Matias Fleuri (2005). É nesta perspectiva que proponho pensar o corpo trançado, que na contemporaneidade se estabelece a partir da relação mbyá-juruá, considerando seu fundamento mítico original, sendo tal fundamento conectado às novas experimentações que inspiram uma criação seriada, contínua e acrescida de outros elementos. Frade e Reis (2010) argumentam que não se pode pensar nos artefatos produzidos pelos Mbyá-Guarani sem levar em conta o esforço tradutório e interpretativo sobre o que se encontra no mundo externo e o que se pode esperar dessa relação.

A arte do corpo trançado encontra sua potência na cestaria, que é considerada como marca identitária dos três grupos Guarani – Mbyá, Kaiowá e Nhandeva. O cesto (ajaka) é confeccionado com as lascas do bambu, que por sua vez surgiu do orvalho, símbolo de Jachuka. Da planta porongo, também símbolo de Jachuka, fabrica-se o mbaracá dos homens. Da mesma fonte nasce o bambu, do qual se produz o bastão de ritmo das mulheres. Dessas duas plantas surgiram a humanidade, homem e mulher (CHAMORRO ARGÜELLO, 2008). Corroborando essa interação, Ivori Garlet revela a relação intrínseca existente entre o homem e a mulher. “O Ser Criador bateu com seu arco no cesto e dessa ação originou-se o homem, que é um corpo (rete) em forma de arco (guyrapa). Ele bateu no cesto pela segunda vez, dessa vez com a taquara, e dessa ação surgiu a mulher, que é corpo (rete) em forma de cesto (ajaka)” (GARLET, 1997).

Os Guarani acreditam que o trançado, que dá origem ao cesto, foi ensinado por Nhanderu para que pudessem carregar as sementes do milho sagrado para serem plantados na roça ou para guardarem o pão sagrado feito de milho (mboejape), referendado no batizado das crianças – um ensinamento para a realização da vida. Segundo o cacique guarani Vera Nhamandu Miri, é feito o mboejape (pão sagrado de milho), que é posto no adjaka (cesto) e fica durante 24 horas na Opy (Casa de Reza), o lugar mais sagrado da aldeia. Depois o oypirigua (pajé) chama as crianças que irão receber o nome. Neste momento, o cesto proporcionará alimento para o espírito. E, satisfazendo o espírito, o nome será bem cuidado, bem recebido. No dia seguinte, os pãezinhos de milho serão dados aos pais e às crianças.

No tekoa, o adjaká é mais que coisa, mas ente, um corpo/memória, possuindo a condição de sujeito/objeto. A espiritualização do adjaká possui uma ontologia ambígua. O corpo-forma do cesto contribui na geração da palavra, objeto pensado como extensão da pessoa, objeto trançado como ato sagrado. (FRADE; CAMPOS, 2008).

Em tempos remotos, as mulheres guarani utilizavam pigmentos naturais na coloração dos filetes de taquara (da família do bambu) que contribuíam na formação dos desenhos básicos tradicionais. O professor indígena Eloir Werá Xondaro traduz no papel os grafismos mais recorrentes visualizados nos cestos mbyá-guarani: Ipara kora: grafismo fechado, simboliza a pele de algumas cobras; Ipara korente: grafismo em forma de corrente, simboliza as relações entre as comunidades Guarani, seja de parentesco ou de amizade; Tanambi pepo: simboliza as asas de um tipo de borboleta; Ipara ryxi: grafismo em fila, simboliza pessoas em fila indo para a caça, para a coleta de frutos, para a pesca, para a busca de material para a confecção do artesanato.

Os adjaká usados nos rituais realizados na Opy não podem ser afetados por nenhum elemento externo. Devem ser criados com “elementos crus”, ou seja, as lascas retiradas do bambu e do porongo não devem receber tintura artificial, sendo assim, diferenciados daqueles que entram no circuito comercial.

Na Aldeia Tekoa Mbo’yty, Dona Lídia e sua mãe, Dona Juventina, exercitam sua sabedoria na arte do trançado, uma matemática complexa geradora de superfícies ritmadas. Cada trançado tem seu próprio autor, apontado através de grafismos identificadores de determinadas famílias. As formas evoluem no cotidiano, novas combinações são criadas e compartilhadas pelo grupo que as incluem em seu repertório cesteiro.

Apesar de designar tradicionalmente uma produção feminina, na Aldeia Tekoa Mbo’yty, alguns homens colaboram na feitura dos cestos: uns vão à reserva mais próxima coletar a taquara, uns ajudam no tingimento, outros na amarração inicial das fibras de taquara, ou até mesmo na produção total de cestos. É também comum contar com a colaboração de outras pessoas (homens ou mulheres), desde que pertencentes ao mesmo núcleo familiar, no processo de preparação das fibras, que são lascadas com a ajuda de uma lâmina delicada e afiada. Cada núcleo familiar desenvolve esse processo próximo a sua habitação-oca, estabelecendo seu território de criação coletiva. Uma trama resultante do entrelaçamento de fibras e também de corpos.

Os cestos, junto com outros objetos artísticos, encontram-se dispostos em uma ampla bancada para serem comercializados aos turistas que visitam a aldeia. Os objetos são dispostos por aproximações de categoria e autoria, que por sua vez são agrupados de acordo com os núcleos familiares. Conferem um modo de exposição segundo critérios estéticos autóctones. Essa disposição e agrupamento se aproximam do modo como os Guarani concebem a organização social e cosmológica do grupo no espaço/tempo (Ara Ypy), uma organização que prima por seus núcleos familiares, sejam eles da ordem da natureza ou da sobrenatureza.

A comercialização dos objetos artísticos se constitui como modo primordial de subsistência, tornando a vida dos mbo’yty cada vez mais entrelaçada à dos não-índios. Além do recurso material obtido pela venda dos objetos, essa interação estabelece um espaço de diálogo intercultural, uma comunicação estética mais ampla com o mundo externo e interno à sociedade mbyá-guarani. Um modo de subsistir pela via da arte – uma economia que se dá na produção de artefatos para o consumo externo – requer a ressignificação de sua cultura material, um entendimento que permita incorporar esse novo significado do nhanderekó mbyá-guarani, como argumenta Frade e Reis (2010).

O cesto adquire outro estatuto. A vida dos objetos relaciona-se diretamente ao universo que se pretende invocar. O sentido muda conforme o contexto no qual cada objeto se insere. “Os contextos podem mudar de forma radical, como acontece quando objetos e artefatos entram no circuito comercial interétnico, quando se tornam emblemas de identidade étnica, peças de museus ou ‘obras de arte’ ” (LAGROU, 2007).

Em comparação à disposição e significação dos cestos tingidos e os tradicionalmente sagrados no espaço da aldeia, é importante destacar as modificações operadas sobre esses itens ao mudarem de contexto. Ao serem transportados e reorganizados em museus, os cestos adquirem contornos de artefatos componentes, a partir de então, da dinâmica que se realiza na interação com um espaço reservado às instituições identitárias da arte institucional. O espaço de projeção da arte do corpo trançado configura-se, assim, em um ambiente imersivo, paisagem a ser desvendada pela incursão do espectador, privilegiando-se sua dimensão estética.

Os objetos da cultura material que no contexto tradicional tinham frequentemente, valor espiritual, são apreendidos como objetos estéticos, ao mesmo tempo em que são submetidos às leis de mercado do mundo da arte, conforme argumenta Stocking Jr. (1985). Blanca Dian Brum (2004) pontua que inserir esses objetos em outro sistema de representação quebra o elo de uma cadeia de significações, muitas vezes inoperante, capaz mesmo de criar barreiras epistemológicas no sentido da compreensão desses objetos e das sociedades que os produzem. Dessa forma, ambos, propõem a ampliação das categorias de apreensão e compreensão dessas produções estéticas, dessas sociedades e das práticas que as envolvem, compreendendo-as como textos simbólicos, como discursos que são uma dimensão fundada na oralidade. “Tudo significa, tudo é texto, que devemos aprender a ler, tudo é discurso que devemos aprender a ouvir para poder efetivamente mergulhar nessas culturas, compreendê-las e respeitá-las” (BRUM, 2004).

Os professores guarani Arnildo Werá e Eloir Werá Xondaro, ao visitarem a exposição no Museu do Índio – RJ, reclamaram da falta de um monitor nativo para falar um pouco sobre o contexto em que os objetos são produzidos – “apresentar seu olhar sobre si mesmo”. Estranharam também a seleção dos objetos expostos no museu, pois concebiam que veriam “coisas de antigamente”, que remetessem à história de seus ancestrais, como arcos, flechas e lanças; panelas produzidas com argila; pratos, colheres e canecas confeccionadas com sementes; colchão feito de folha de palmeira trançada; instrumentos, entre outros, que a memória dos jovens não alcança.

Não sei, talvez eu possa estar errado. É algo importante que está sendo mostrado aqui, mas isso é da atualidade. Se a gente voltasse um pouco para a antiguidade, para a história dos nossos ancestrais, veríamos coisas diferentes aqui, uns instrumentos diferentes e até mesmo o artesanato um pouco mais diferente. Mas isso não quer dizer que isso aqui não é importante para a sociedade guarani hoje em dia. Isso aqui é uma exposição de grande importância para nós. Através dessa exposição talvez a sociedade dos juruás dê mais importância ao povo Guarani. Não só aqui no Rio de Janeiro, mas em todo o território nacional. Isso é de muita importância para nós. São iniciativas assim que nos fortalecem. Os Guarani estão sendo um pouco esquecidos. Muito se fala de índio, mas pouco se fala dos Guarani. Existem várias etnias no Brasil. Principalmente os Guarani do Sul, de onde eu venho, é pouco falado, pouco lembrado. Os Guarani estão aqui no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Sul, em Santa Catarina, na Argentina e no Paraguai. O povo Guarani está vivo, sua cultura está viva, seus costumes estão vivos. Então, isso nos fortalece, não só fortalece como uma aldeia, mas como um todo, o povo no geral assim. Eu fico feliz pelos meus parentes terem conseguido esta oportunidade de estar mostrando um pouco das aldeias. E eu parabenizo esses guerreiros pela coragem também de estar expondo isso assim. Também fico muito feliz. Mas, o importante é mostrar a iniciativa, mostrar o suficiente para a sociedade conhecer um pouco da cultura guarani, mas isso não é suficiente (Depoimento de Eloir Werá Xondaro, 2010).

Há ainda muito a se fazer no campo da patrimonialização e/ou musealização dos bens materiais e imateriais indígenas dos Mbyá-Guarani. Há que se pensar outras políticas públicas de valorização, reconhecimento e conservação da cultura material e imaterial indígena, mas certamente políticas que contemplem o protagonismo indígena. Nesse sentido, o Museu do Índio apresenta algumas iniciativas como essa exposição, ainda que com uma participação “tímida” dos índios, bem como com oferecimento de cursos no campo museológico que qualifique, os próprios Guarani, como pesquisadores de sua cultura, conforme dito por José Carlos Levinho (2010), diretor do Museu do Índio: “Tem que ter formação, tem que ter qualificação, fornecer as ferramentas e deixá-los administrar e mostrar também os caminhos, porque não adianta fazer um feijão com arroz sem qualidade”. Mas como o próprio Guarani Eloir (2010) salienta: “isso não é suficiente”.

Baseado em texto de Maria Cristina Rezende de Campos –
“A arte do corpo mbyá-guarani: processos de negociação, patrimonialização e circulação de memória”