Um rapaz, de nome Wira'i, esgava passarinhando perto de casa. De repente, seguiu uma coruja que o desviou de seu caminho conhecido. Ele se perdeu. A coruja Bacurau, então, o engoliu com sua boca muito grande, e o levou para o outro lado de um rio enomrme que era por ele desconhecido.
O rapaz
se encontrou sozinho e procurou achar um meio para atravessar o rio, mas em
vão. Estava anoitecendo e o rapaz subiu num pau e começou a pensar no que
fazer. De repente ouviu o canto de um pássaro: era uma coruja.
Pensou:
“Se essa coruja fosse gente, ela poderia me levar do outro lado do rio”.
A
coruja perguntou o que ele havia dito e respondeu-lhe que era muito pesado e
não conseguiria. Outros pássaros vieram durante a noite, mas todos eles responderam
a mesma coisa.
Pela
manhã, ouviu o canto do pica-pau e outra vez pensou: “se o pica-pau fosse gente
me carregaria para o outro lado do rio”.
O
pica-pau se aproximou e lhe perguntou o que ele havia dito. Este falou, mas
ouviu a mesma resposta de sempre. Mais tarde ouviu o canto do paturi. O paturi,
desta vez, tentou levantar vôo com o rapaz, mas não conseguiu. Então disse que
ele conhecia alguém que conseguiria atravessá-lo. No entanto, o rapaz deveria
procurar não responder às perguntas que esse bicho ia lhe fazer, do contrário o
bicho o comeria.
Pouco
depois, o paturi voltou com um jacaré enorme, o qual carregava uma imbaúba nas
costas, e se ofereceu para levá-lo. O rapaz saltou e se segurou no pé de
imbaúba. De vez em quanto o jacaré perguntava alguma coisa para o rapaz, mas
este não lhe respondia.
Ao
chegar na outra margem, o jacaré disse que ele podia saltar para a terra, mas o
rapaz pediu que ele o levasse mais perto da beira. Assim ele fez, e o rapaz aproveitou
o momento melhor e pulou longe do rio, correndo, em seguida, para não ser
alcançado pelo jacaré.
Logo
adiante encontrou um socó, que o engoliu. Chegou o jacaré e perguntou-lhe se
havia visto um rapaz fugindo. Esse disse que não e então o jacaré o acusou de
tê-lo engolido. O socó disse que não e como prova disso, regurgitou alguns
peixes que havia engolido vivos. Conformado, o jacaré voltou. O socó, então
regurgitou o rapaz e disse-lhe que, se quisesse chegar à casa do pai, teria que
sempre seguir o caminho.
À noite
ele procura um abrigo debaixo de uma grande pedra. Pela manhã descobriu que não
se tratava de pedra mas de um grande sapo cururu e foge. Para se alimentar
comia toda fruta do mato: sapucaia, inajá e outras.
Mais adiante
ele ouviu algo como alguém que estava pisando num pilão: era uma cutia que
estava batendo o pé na porta de uma laje de pedra. Já era de tardezinha, e
falou para a cutia lhe dar um fogo. Ela disse que não podia, porque quem mandava
ali era uma grande jibóia, que morava junto com a cutia. Esta ficaria brava e
iria comê-lo.
Ele
entrou no buraco da cobra para pegar um tição e fazer fogo, para se esquentar de
noite. A jibóia (moizuhu)
tampou a porta, colocando-se à sua frente. O rapaz tentou sair, mas não podia.
A cobra ameaçou engoli-lo. Naquele instante, Wira’i ouviu o canto do gavião: coan, coan, aí ele disse para a
cobra que o gavião iria matá-la. Assim, a cobra saiu da porta e ele fugiu.
Adiante
enxergou uma casa onde havia uma mulher sozinha. Esta lhe perguntou: o que você
faz por aqui?
Estou
há muito tempo procurando por meus pais, e não sei onde eles estão. A mulher,
que era uma coelha (morotói),
disse que ele deveria ficar com ela e trabalhar para ela. O rapaz aceitou. Mais
tarde chegaram os caititus, que lhe ofereceram batata, inhame, macaxeira, milho
assado, especialmente para engordar o rapaz que estava muito magro por causa da
fome, e convidaram a coelha para ir com eles, pela manhã, até à roça.
Na
manhã seguinte, às cinco horas, chamaram a coelha, mas ela não quis ir, porque
estava com sono. Os dias se seguiram até que os caititus convidaram o rapaz a
ir com eles até à roça: “rapaz, o que você faz com essa mulher aí? Ela vai te
matar de fome! Nós vamos te indicar o caminho que leva até à casa de teu pai”.
Pela
manhã, chamaram-no e ele se levantou depressa e os acompanhou. Estes foram até
à roça, que era do pai do rapaz, e lhe indicaram o caminho para chegar até a
casa dele.
Este,
chegando, entrou no quarto e começou a mexer nas coisas. A mãe ouviu o barulho
e foi até lá. Ela viu, reconheceu o filho e queria abraçá-lo. Mas ele disse que
não podia. Em seguida chegou seu pai, que também reconheceu o filho, se
aproximou dele e o abraçou. O filho entrou no corpo do pai, que ficou com duas
cabeças conversando entre si.
O filho
convidou o pai para ir embora daquele lugar. Aí, ele cantou três noites e dois
dias e foram embora com as casas. Viraram passarinhos andando em bando como a
andorinha, o recongo, o xexéu e foram embora para longe.
Há uma relação
estreita entre o simbolismo mítico e o simbolismo ritual. Enquanto um se
manifesta numa linguagem literária/oral o outro se manifesta numa linguagem
plástica – através dos adornos, musicas, dança e gestos. Os dois, porém, se
complementam: o mito dá suporte ao ritual e o ritual, cada vez que é celebrado,
renova o mito.
Lévi-Strauss assim
relaciona os mitos com os rituais: Os
mitos e os ritos podem ser tratados como modos de comunicação: deuses com os
homens (mitos), ou homens com os deuses (ritos) com esta diferença, contudo,
que os interlocutores divinos não são parceiros como os outros, no seio de um
mesmo sistema de comunicação.
O mito de Wira‘i, “gavião pequeno”, do povo
Tenetehara permite estabelecer essa relação entre mito e rito e confrontar seu
simbolismo. Entre o mundo dos homens – a aldeia – e o dos animais - a floresta
- estabelecem-se relações de interdependência. Lévéque afirma que “nas sociedades arcaicas vivas, os grandes
poderes animais é que dominam a floresta”. Estas relações se manifestam
através de um simbolismo presente, especialmente, nos mitos. Estes, de fato,
tornam vivas, continuamente, atitudes indispensáveis à sobrevivência desses
dois mundos.
Se o homem depende da
caça e da coleta para sua sobrevivência, necessariamente precisa estabelecer
uma ligação entre seu mundo e o mundo da floresta, entre o mundo humano e o dos
espíritos dos animais e das plantas. Sua vida social, estabelecida através de
rituais, também está intimamente ligada aos espíritos da floresta, seu meio
natural, com os quais convive diariamente.
O simbólico é uma tentativa
de “interpretar/transformar o real em que
vive e do qual faz inelutavelmente parte...” (SANTOS & LUCAS, 1982).
Assim, as imagens, os símbolos e os mitos revelam aspectos da realidade
(ELIADE, 1982). Lévi-Strauss afirma que “como
a linguagem, o social é uma realidade autônoma; os símbolos são mais reais do
que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado”
e continua: “a condição do pensamento
simbólico é que o significante disponível e o significado referenciado permaneçam
entre si numa relação de complementaridade”.
Mas qual é a relação
entre mito, símbolo e sociedade? Os mitos geram determinadas práticas
simbólicas e estas se traduzem em relações sociais. (GODELIER, 1985) Nesse
sentido, há uma relação estreita entre estes campos, os quais se complementam,
sendo que o mito vem confirmar uma prática social anterior, mas, ao mesmo
tempo, a determina em sua relação com o cotidiano. Portanto, o símbolo, como
produto cultural, de um determinado grupo ou sociedade, funciona como unidade
de comunicação, “pois o símbolo ‘evolui’,
modifica-se, apresenta-se sempre como uma espécie de linguagem nova para o seu
manipulador (...). Quer dizer, desencadeia sempre emoções novas” (LIMA,
1983).
O simbolismo presente
nos mitos tenetehara deve ser considerado um produto cultural, estabelecendo-se
uma relação paradigmática entre os significados que são transmitidos para a
sociedade e a práxis dessa sociedade que dá corpo aos mitos. Nesse sentido,
eles operam, também, como um sistema pedagógico para essa cultura. Ao falarmos
de alianças simbólicas com o mundo animal, não podemos esquecer que estas
manifestam uma práxis de vida da comunidade.
Existe uma versão
deste mito transcrita por Wagley & Galvão chamada “Aventuras de Wiraí”, recolhida na década de 1940 entre os
Tenetehara/Guajajara, e outra de Nimuendaju, “O menino e o bacurau” recolhida entre os Tenetehara/Tembé em 1915.
Essas duas versões, salvo algumas variantes, são praticamente iguais às contadas
em 1999. E estão relacionadas a um mito shipaia: “Aventuras de um índio”,
recolhido por Nimuendaju e um mito kayapó: “Aventuras de Sakawãpö”, recolhido
por Métraux (1992).
Lévi-Strauss analisa
o final do mito transmitido por Wagley & Galvão como uma relação de união e
separação: “o herói perdido e achado se torna, assim, animal”. Segundo
Lévi-Strauss, nos mitos por ele analisados, a oposição que se estabelece é
entre os sexos: no caso a heroína encontra o pai, e o herói a mãe. Mas, no
nosso caso, podemos ver que nosso informante vai na casa da mãe, mas não
permite que esta se aproxime dele, enquanto aceita receber os abraços do pai,
ao qual se une definitivamente.
Ao falar sobre o tema
do personagem com duas cabeças, Carvalho diz que este tema está ligado aos
mitos tipo “Viagem ao céu”:
Estamos
pensando no tema dos personagens com duas cabeças, e isto porque, por um mito
taulipáng, sabemos que uma delas é uma ”cabeça rolante”. O tema está ligado aos
mitos tipo “Viagem ao céu”, em que um sogro ou uma sogra colocam à prova um
jovem marido.
A
explicação da ausência deste tipo de mito no Uapés é óbvia: ele só ocorre em sociedades
matrilocais.
E a sociedade Tenetehara é matrilocal e, portanto, cabe a reflexão de Carvalho. Quanto às diferentes versões sobre o tema "Viagem ao Céu", a autora diz qaue resulta num "modelo mítico intimamente libado a técnicas xamânicas" (iniciação de xamãs e curas).
O narrador dessa
versão do mito diz que, no momento em que o rapaz se encontra com o pai, ele
vira pajé, se encanta e entra no corpo deste. De fato, após este episódio, ele
convida os familiares a abandonarem esse lugar. Para isto ele canta e dança
durante três noites e dois dias, até voarem como passarinhos. Isto é, o grupo
realiza sua “viajem ao céu”.
Como se vê, o tema
xamânico encerra essa narração. Isto nos leva a uma reflexão importante sobre o
mito. Como dissemos no início da análise, há uma ligação importantíssima entre
mito, rito e símbolo. Nesse caso, entre essa narrativa e o ritual de iniciação
masculina no qual o rapaz é iniciado como guerreiro, cantor e pajé. O mito em
questão, portanto, pode ser definido como mito de passagem. Afinal, o
pequeno gavião – Wira’i – apresentado como o herói do mito, participa e
constrói sua formação através das provações. Provações estas que duram alguns
dias: o tempo de formação do neófito Tenetehara.
Turner, citando Van
Geenep, explicita os ritos de passagem como uma sucessão de três fases
distintas: a primeira (separação) significa afastamento do indivíduo do
convívio social; a segunda (liminaridade ou trânsito) é ambígua sendo que não
tem características nem passadas nem futuras, é, afinal, um período de provação
e formação; a terceira (reagregação) é a consumação da passagem a partir da
qual ele passa a ter direitos e obrigações.
No primeiro momento
do mito, acontece o afastamento: o bacurau o introduz num lugar desconhecido no
qual ele está sozinho. Lá, não conhece ninguém igual a ele. Ninguém pode
ajudá-lo. É, portanto, privado de suas relações com o passado: com os
familiares. Ele perde-se da mãe no caminho para a roça e é levado pela coruja
bacurau para a outra margem de um rio intransponível, de onde ele jamais sairia
sem a ajuda de alguém.
É interessante notar
que, como bem define Lévi-Strauss em “A oleira ciumenta”, a coruja bacurau faz
parte dos pássaros símbolos da morte, na América do Sul, que o autor chama de “engole-vento”.
Os temas míticos principais desses são avidez, ciúme e explosão. Se a coruja
está associada à morte, aqui representa a separação, o afastamento, isto é,
também a morte simbólica do neófito para poder renascer como adulto. E é este o
ponto principal dos ritos de passagem: sem a morte não haveria ressurreição.
A primeira atitude é
a de encontrar os meios para poder sair da obscuridade: poder atravessar o
grande rio. Pede ajuda aos pássaros. Isto é, apela em primeiro lugar para os
habitantes do céu. Não poderia ser diferente, visto ser seu nome, também, o de
um pequeno habitante dessa esfera. Alguns deles colocam-se à disposição mas não
conseguem o intento, e assim o jovem permanece até o dia seguinte do outro lado
do rio. O único que consegue fazer a travessia é o jacaré. Há aqui um outro
simbolismo importante: a água. Esta associada com os mortos, indicando que o
rapaz atravessou a barreira da morte.
A partir desse
momento inicia-se o período do trânsito, isto é da liminaridade durante o qual Wira’i
é posto à prova. Nessas provas ele se defronta com a natureza e aprende,
com ela, a superar as dificuldades. A primeira é com o jacaré. O jovem consegue
ser esperto e engana a fera que queria devorá-lo. Depois é ajudado pelo socó,
que lhe indica o caminho para a casa do pai. Também este, como a coruja
bacurau, o engole. No entanto, o socó representa não a morte, mas a vida.
Mais adiante o sapo
cururu lhe dá abrigo durante a noite, embora Wira’i achasse tratar-se de
uma pedra. O sapo, nesse caso, representaria o abrigo seguro, uma vez que são
raros os animais que se atrevem a enfrentá-lo.
No outro dia
encontra-se com a cutia e a grande cobra, a jibóia, que quer engoli-lo. Este
foge novamente, depois de roubar um tição de fogo ajudado pelo canto do gavião.
A força da cobra é vencida pela astúcia do “gaviãozinho” e pela força
representada pelo gavião: o caçador temido pelas cobras.
Encontra-se com a
coelha com a qual passa a conviver. Em se tratando de um noviço, ou iniciado no
“ofício” de xamã, Wira’i não poderia coabitar com mulheres. A coelha
aparece como um obstáculo, ao persistir em conter o jovem na sua “toca”. Se ele
tivesse optado por permanecer na toca, não teria completado o processo de
iniciação. Poderia, inclusive, ter sido “aliciado” e ficaria definitivamente na
esfera natural.
Os caititus o
libertam conduzindo-o até o roçado (do pai). Pela primeira vez, depois de muito
vagar, Wira’i restabelece seus contatos com a cultura. O próximo passo é
a aldeia, sua casa.
São os caititus que
estabelecem a ponte que introduz o neófito à terceira parte, isto é, à
reagregação. Um dado interessante a ser analisado é a alimentação do neófito.
Durante o período de “trânsito”, ele se alimenta de “frutas do mato” (sapucaia,
inajá e outras), e se abstém de carnes, pois o neófito, conforme mencionamos
anteriormente, vive uma fase de transição, de ambigüidade. Por isso, seu corpo
acha-se vulnerável aos poderes sobrenaturais que emanam da fauna. Afinal, ele
está na esfera da natureza e deve aprender a se relacionar com esta, porque
desse aprendizado depende a própria sobrevivência e a da sociedade. No momento
em que ele está terminando esse período e entrando no do retorno à sociedade,
só se alimenta de “produtos culturais”, isto é, não mais de frutos silvestres,
mas cultivados.
É neste sentido, que
os caititus fazem a ponte entre os dois estados do neófito. Estes se alimentam
de “frutos do mato” mas, também, de produtos que são propositalmente deixados
na roça para este fim. Assim, o jovem consegue encontrar o caminho de volta
para casa, a re-inserção na sociedade de onde ficou afastado o período
necessário para seu retorno, com suas obrigações.
Um outro aspecto,
também interessante, é o fato de Wira’i ter mantido contato com a fauna
ornitológica dos diferentes habitats: coruja, pica-pau, paturi, socó. Todos
compreenderam sua situação, mas apenas o paturi e o socó – duas espécies de
aves aquáticas – o ajudaram. Depois foi a vez do réptil crocodiliano – o jacaré
–, que involuntariamente o ajudou, porém, poderia tê-lo devorado, se o paturi
não o tivesse orientado. Mais uma vez ele foi ameaçado por um réptil, a jibóia,
mas, recuperando sua identidade, a ameaçou mencionando o nome da acauã,
predador de cobras. Seu ponto final é um batráquio, o sapo cururu. O espírito
desse animal é um dos mais perigosos, porém, em caso de necessidade, ele pode
ajudar, pois é também um dos mais poderosos.
Wira’i, enquanto iniciante
ao xamanismo, completou um ciclo. Ao regressar, repele a figura da mulher
representada por sua mãe. Não poderia ser de outra maneira, pois ele não é
apenas um homem, é também símbolo capaz de manipular veículos de comunicação
com os espíritos, como por exemplo, o maracá.
Estreitando seus
laços com o pai, os dois voam juntos. Nesse vôo eles conduzem toda a família,
pois o status de pajé é individual, mas afeta toda a família dele. Voar, levar
embora, pode significar mudar de status.
Para terminar, nossa
análise merece mais uma reflexão a partir do ritual de iniciação masculina.
Neste, o neófito é preparado para ser guerreiro/caçador, cantor e pajé, todas
estas tarefas exclusivamente masculinas na sociedade Tenetehara. Os enfeites
usados para adornar o corpo do rapaz são de penas pequenas de arara para o
cocar e penugem de gavião real para enfeitar a cabeça; braçadeira e
tornozeleiras são feitas com casca de tucumã e/ou catolé; a pintura corporal é
realizada com suco de jenipapo e com urucu, o primeiro de cor preto-azulado significaria
o desprendimento, enquanto a cor vermelho do urucu está relacionada ao
guerreiro.
O momento importante
do ritual é quando estes neófitos tomam, um de cada vez, o maracá e entoam uma
cantiga relacionada aos animais da floresta. Nestas cantigas, que puderam
aprender durante o período de formação, eles evocam as proezas e as qualidades
de cada animal. Cantar, portanto, significa manifestar seu relacionamento com a
natureza e, ao mesmo tempo, saber compreendê-la. É esta, aliás, tarefa do
caçador, que deve servir-se da natureza para providenciar a alimentação, ao
mesmo tempo em que deve respeitá-la; e tarefa do pajé, o qual precisa dominar
os espíritos da natureza em prol da sociedade a que pertence.
Na mitologia
Tenetehara, a figura do gavião tem um destaque especial. Este pássaro predador
faz parte da maioria dos temas tratados nos mitos. No mito “A caçada do
moqueado e o dono das caças” (ZANNONI, 2002) ele está presente num sentido
invertido, isto é, passa a representar um azang, um espírito mau que deve ser
eliminado. No mito “O tenetehara que virou gavião” (ZANNONI, 2002) ele
representa a figura do guerreiro, do caçador. Neste mito ajuda o herói Wira’i
a se livrar da grande cobra que o queria engolir e está presente,
especialmente, no nome: “gavião pequeno”. Um outro papel representado pelo
gavião é o do “vingador” das más ações.
Mas o maior
simbolismo apresentado nos mitos refere-se à analogia entre o gavião e o
caçador. “Virar gavião” significa assumir seus poderes, isto é, identificar-se
com suas qualidades. Haveria outro animal mais importante para um Tenetehara do
que um gavião? Sabemos que as mitologias americanas, especialmente amazônicas,
identificam a figura do caçador com dois animais: a onça e o gavião. Para o
Tenetehara, a onça tem um papel muito mais secundário do que o gavião que
aparece em muitos mitos. A onça não é um animal a ser caçado visto que sua
carne não faz parte da dieta alimentar desse povo. Um caçador Tenetehara me
dizia que a onça pode ser morta pelo caçador em legítima defesa, mas precisa
ter respeito para com esta: “Não pode mangar dela em momento algum, senão seu
espírito se revolta contra você”. O gavião, também, não é animal a ser caçado
mas sim a ser “imitado”. Ele é o caçador por excelência: o predador da
floresta. Num mito Tenetehara/Tembé, “A
festa dos animais”, transcrito por Nimuendaju (1951), a figura principal da
festa é o gavião: “Ouviu-se o grande
gavião Wyrohueté que de longe tocava sua corneta: bu-bu-bu! Os animais se
regozijaram e disseram: ‘O grande gavião também vem dançar conosco!’ O gavião
estava ainda enfeitando-se e preparando-se para a dança”. No entanto, a
onça (jaguar) toma a cena e começa a cantar, desprezando os outros animais, com
palavras inconvenientes. Assim a festa acabou. “Se naquele tempo o jaguar não se tivesse comportado desse modo, os
animais seriam ainda como homens e poderiam cantar”.
Durante os rituais
tenetehara, o ponto alto da festa é marcado pela penugem de gavião real
colocada nas cabeças não só dos iniciados mas de todos os participantes do
ritual. Um exemplo típico são os rituais de iniciação masculina e feminina
quando, pela manhã, antes do alvorecer, as cabeças dos iniciados e parte dos
seus corpos são enfeitados com as penas de gavião, a significar a chegada do
sol. Assim, pode-se relacionar sem sombra de dúvida o gavião ao astro solar.
Com sua imponência de vôo, ele representa a presença viva do sol na abóbada
celeste. Podemos dizer, portanto, que este, além de Maíra (ZANNONI, 2002), para
o mundo humano, é o paradigma do homem Tenetehara no mundo animal.
No mito de Wira’i aparece ressaltada a relação
entre o mundo dos homens e o mundo dos animais, entre o mundo da floresta e o
mundo da aldeia, entre o mundo da natureza e o mundo da cultura. Estes se complementam
através de ações recíprocas. Assim, o respeito ao mundo de cada um é a
prerrogativa principal. Preservar a natureza significa preservar a vida humana,
ao mesmo tempo em que a vida humana contribui para a continuação do ciclo da
natureza, no que concerne tanto à fauna quanto à flora.
Todos os mitos
tenetehara referem-se a uma época em que os animais, como os homens, falavam.
Época essa que, como todos os narradores apontam, já acabou. No entanto, ela
está presente ainda nos mitos. Neles, todos os personagens falam, dialogam
entre si, se manifestam. Assim, representa para os Tenetehara o “tempo perdido”,
um tempo em que havia harmonia e entendimento entre os mundos da natureza e da
cultura. É, porém, o tempo a ser perseguido ainda. Se eles não falam mais com o
homem, os seus espíritos se manifestam aos homens e, assim, o homem pode falar
com eles através destes. Assim o pajé, ao mesmo tempo em que precisa dominar os
espíritos dos animais, se comunica com eles em favor da sociedade.
Esta manifestação
mítica, embora pareça saudosa, representa o desejo de todo Tenetehara de que
dois mundos, que parecem tão diferentes, voltem a se “entender” na construção
da harmonia vital. Por isso, os mitos são preservados.
Baseado em texto de Claudio Zannoni