quarta-feira, 26 de setembro de 2012

TIAHUANACO, A CIDADE MAIS ANTIGA DO MUNDO




O altiplano boliviano guarda em seu deserto arenoso, próximo ao lago Titicaca, a aproximadamente 4000 m de altitude, uma das obras mais misteriosas construídas pela mão do homem: TIAHUANACO.

Estudos baseados no eixo de inclinação da terra, levando em consideração a posição do sol, e o ângulo que as pedras das ruínas de Tiahuanaco apresentam durante um dia completo de sol, levaram o erudito boliviano Arthur Posnansky a calcular a idade da cidade de Tiahuanaco em 17 mil anos. Alguns anos depois e com a tecnologia astronômica mais avançada, novos cálculos foram feitos, dando a Tiahuanaco uma idade mais certa e, sem dúvida não menos interessante que a de Posnansky: 12 mil anos. O suficiente para alça-la ao status da CIDADE MAIS ANTIGA DO MUNDO!

Mas o que dizer sobre essa cidade que talvez guarde o segredo dos primeiros habitantes da América do Sul? Quem a construiu? Quem eram os tiahuanaquenhos? A resposta a essas perguntas gera ainda muita polêmica e algumas histórias um pouco fantasiosas. No momento, só temo suma certeza: a origem de Tiahuanaco encontra-se a milênios no passado.

Quando os espanhóis chegaram nos Andes, perguntaram aos Incas se eles haviam construído a cidade de Tiahuanaco e, para grande surpresa, a resposta foi “NÃO!”. E mais: afirmaram que eles já conheceram a antiga cidade como ruínas. Sabe-se, ainda, que os Aymaras, precedentes dos Incas e um dos povos mais antigos dos Andes, não atribuíam a si à construção da cidade. Pelo contrário: diziam que ela pertencia aos primeiros habitantes da terra, aqueles que haviam sido criados antes do sol, da lua e das estrelas.

Mitos a parte, pouco se sabe sobre os primeiros habitantes desta misteriosa cidade, como viviam, como se comportavam, quais eram seus hábitos. O que sabemos é que deixaram um legado histórico incompleto sobre os seus costumes e uma lista de mistérios que muitos até hoje tentam decifrar.

Em seu livro "Eine prahistoriche Metropole in Sud América" (Uma metrópole pré-histórica na América do Sul), Posnansky fazia notar que o Wiraqocha, "Deus encarnado", segundo a mitologia andina teria aparecido no lago sagrado – Titicaca – e ali fundou a nova terra logo depois do dilúvio. Posnansky sustenta que Tiahuanaco teria sido construída antes desse acontecimento – que ele situava em 9.500 a.C. De acordo com o austríaco, quando a cidade foi construída ficava à beira do lago. Só após os transtornos do dilúvio,o lago abaixou seu nível em aproximadamente 34 metros, privando assim a função portuária que era estava na origem da cidade.

As três construções mais importantes de Tiahuanaco são a pirâmide de AKAPANA, o templo KALASASAYA, o templo PUMA PUNKU e o TEMPLO SEMI-SUBTERRÂNEO.

É possível que Akapana fosse uma pirâmide com terraços escalonados, utilizada como fortaleza pelos antigos habitantes de Tiahuanaco. Os Aymaras o chamam de “Castillo” (Castelo). Já no século XVIII foi concedida ao espanhol Oyaldeburu o direito de efetuar escavações em Akapana, em busca de um suposto tesouro inca em seu interior. Foram encontrados condutos ou caminhos no interior da construção, mas nenhum tesouro. Uma das hipóteses sobre a construção desses canais, foi a de dar escoamento ao fluxo de água, de um grande lago artificial que havia em seu topo. Na opinião de Posnansky, os condutos de Akapana estariam conectados com outras estruturas de pedra encontradas na direção do lago.


O templo Kalasasaya, de 137 x 122 m, foi construído no eixo leste-oeste. Era, na opinião de Posnansky, um observatório astronômico de pedra. Ele demonstrou que os onze pilares que sustentavam a parede ocidental do templo marcam determinados dias do ano entre os dois solstícios. Dessa forma, os peritos e sábios tiahuanacos podiam determinar seus 20 meses.
 Para tal, o edifício precisou ser orientado com precisão para o meridiano, largura e comprimento, sendo ajustados ao ângulo máximo de declinação do sol entre os solstícios. Foi justamente esse estudo de Kalasasaya, que levou a Posnansky a surpreendentes conclusões sobre a época da construção da cidade: enquanto media a distância e os ângulos entre os pontos dos solstícios, percebeu de que a estrutura mesma do templo indicava uma inclinação da Terra em relação ao Sol de 23º 8´48" que não coincide com a inclinação eclíptica de 23º 5`. Conferindo com as indicações da Conferência Internacional das Efemérides de Paris (1911), a inclinação de 23º 8`48" da eclíptica corresponde a mais ou menos 15.000 anos a.C.



 
A incrível Porta do Sol, um dos mais conhecidos monumento de Tiahuanaco, é sem dúvida a maior obra dos primeiros povos andinos: um portal monolítico esculpido em uma grande pedra vulcânica com três metros de altura, quatro metros de largura e um metro de espessura, com o peso de 10 toneladas e cheia de símbolos desenhados em baixo relevo.Posnansky a estudou a fundo, afirmando que ela representava um calendário de vinte meses, sendo a figura central (reconhecida pela maioria dos especialistas como Wiraqocha) associada ao equinócio da primavera ou seja setembro no Hemisfério Sul – início do ano tiahunaco. A Porta do Sol, em conjunto com a parede do Kalasasaya, formavam, além do calendário solar, um complexo calendário lunar.

 
Relação entre a muralha de Pilares do Kalasasaya e a Porta do Sol

Imagem animada de "Las Caminantes"

Os 20 meses esculpidos na Porta do Sol
Em frente à entrada principal do templo Kalasasaya existe uma praça a uns dois metros abaixo do terreno, conhecida como Templo semi-subterráneo. Nas paredes desta praça existem 48 litoesculturas cefaliformes que representam cabeças antopomorfas e zoomorfas. A maioria destas últimas são totens felinos, mas também tem representações de peixes. O significado destas culturas cefaliformes encontra-se nos cultos totêmicos , muito importantes nas culturas arcaicas.

No centro de esta área semi-subterrânea existe um monólito, que chamamos Kon-Tiki: escultura antropomorfa com uma barba, o que é um enigma para os experts, uma vez que os indígenas do Novo Mundo em sua maioria não têm barba. Hoje em dia acredita-se que Kon-Tiki seja outra representação de Wiraqocha.

Se Posnansky estiver correto e Tiahuanaco foi realmente construída quinze milênios antes de Cristo, não somente a história do Novo Mundo, mas toda a história humana deveria ser reescrita.

Baseado em texto de Chalil Costa e de Yuri Leveratto

sábado, 15 de setembro de 2012

ANTROFAGIA À MODA DA CASA



Na década dos 20, o Brasil e os brasileiros foram “descobertos”. É emblemática desta descoberta a proposta de Oswaldo de Andrade de converter a data em que os aimorés comeram o bispo Sardinha em primeira manifestação brasileira. Festejar o ato canibal – suprema barbárie para o olhar europeu – em afirmação de uma protonacionalidade confere transcendência no comer o importado e o resulta desta transformação torna-se algo virtuoso. O gênio de Oswald transformou o tabu em totem: sabia que o escandaloso é pedagógico.

No século XIX, houve o esforço de buscar no índio a origem da nacionalidade brasileira. Gonçalves Dias transformou o ato canibal em ritual de perpetuação do inimigo valente. Em I-Juca Pirama a comida luta como herói grego em busca do resgate de sua imagem ante o pai. As virtudes do índio são cotejadas em convívio com o colonizador em José de Alencar, que cunha Iracema como “a virgem dos lábios de mel”. O índio de Alencar é uma réplica européia.

“Comer” a cultura importada não é um retorno à natureza. No plano simbólico, foi o colonizador que importou o bispo “comido”. O aimoré não tecnizado lançou mão do que sabia para “experimentar" o colonizador. Ao longo de séculos a colônia – através de sua elite de poder, de ter e de saber – importou cultura, no amplo sentido antropológico, e despiu o nativo de seus saberes e haveres, inclusive dos ventres de suas mulheres para produzir os caboclos mestiços. A importação de africanos – objeto de canibalização cultural – foi uma tentativa radical de o colonizador desconhecer o nativo. No terreiro do candomblé, o africano agradeceu ao “caboclo” a cessão da terra. O ingênuo movimento indianista procuro no nativo o “doador” de um Paraíso Tropical e legitimizou a propriedade do território brasileiro. Pedro II se coroou utilizando um manto de papos de tucanos e folhas de bananeira, estilizados e bordados com fios de ouro. Valorizou, superficialmente, apenas bugigangas do Paraíso Tropical, indisponíveis na Europa. Afirmou: “são minhas!”. Ao combinar o tucano nativo com a musa paradisíaca africana, não canibalizou, apenas importou o formato europeu; quem “canibalizou” o imperador foi o povão que, no século XX, reprocessa a história do império como enredo de escola de samba e combina baianas, índios, condessas, colombinas e o que mais dispuser na mistura antropofágica do carnaval. O prestígio europeu foi visceralmente abalado pela I Guerra Mundial. A Belle Époque seria a preliminar de um processo contínuo de ascese em direção à civilização. A Europa te domesticado os cavalos do Apocalipse e seus cavaleiros nos salões da burguesia ascendente. Com a I Guerra Mundial, o banho de sangue da juventude européia e as matanças industriais de populações civis desmentiram a profecia positivista. A razão e a ciência não eram dominantes, mas sim dominadas pela evolução capitalista. As guerras coloniais haviam sido introjetadas pela “civilização” européia.

Jovens brasileiros perceberam o fracasso cultural do Velho Mundo. Não precisaram, como Picasso, procurar inspiração nas esculturas de Benin, como Brancusi, nos totens esquimós ou como Matisse, no cromatismo japonês e polinésio. Estes jovens perceberam que, olhando para o “povão” brasileiro, tinham formas e conteúdos a serem deglutidos. Tarsila do Amaral busca a plasticidade das lendas índias; Di Cavalcanti busca a sensualidade da mestiça brasileira; Menotti Del Picchia, o linguajar caipira; Portinari, os pés do trabalhador do café; Villas Lobos, todas as tonalidades musicais; Câmara Cascudo, todo e qualquer folclore. Uma plêiade de escritores se debruça sobre fatos, coisas e falares regionais: o gaúcho, o jangadeiro, o mascate, o engenho açucareiro, a fazenda de cacau, a mulher nordestina, o cangaceiro, o mineiro, o colhedor de erva-mate, de borracha, etc. A antropofagia tropical resgata a versão colonial digerida de Portugal: descobre Ouro Preto, Mariana e o Aleijadinho. A feijoada e a goiabada com queijo caminham do trivial para o banquete orgulhoso. O violão substitui o piano na sala de visitas. O gigante Gilberto Freire faz a prospecção dos desvãos da casa senhorial como lugar de simbioses, sincretismos e metamorfoses de protobrasilidade; vê no senhor de escravos um canibal dominante e faminto e explicita uma dialética casa grande-senzala.

O Rio de Janeiro serve como ilustração da redescoberta. O francófilo Pereira Passos, apoiado pelo paulista Rodrigues Alves, fez do Rio um porto moderno e um cartão de visitas dizendo ao mundo que “somos civilizados; construímos a Paris dos Trópicos; temos um Theatro Municipal que copia a Ópera de Paris; temos uma Avenida Central”, com edifícios de telhado próprio para a neve escorregar. Não permitimos nenhuma perturbação tropical nos jardins geométricos da Beira Mar. Aclimatamos os pardais – uma praga – para evocar os Jardins de Luxemburgo. Na década de 30, o desfile das escolas de samba passou a ser um evento da cidade. Nos anos 50, o Rio, o fraque e a estola de vison (mantida climatizada pela Casa Canadá) para a frequência ao Municipal foram substituídos pelo pré-biquini e calção de banho em Copacabana, Princesinha do Mar. O Copacabana Palace permitiu a construção de um colar art déco de edifícios para emoldurar as areias; os “fechos” do colar, os fortes militares, completavam a ilusão que fez do Rio objeto de desejo. A Cidade Maravilhosa apagou a Paris Tropical.

A elite do poder, do ter e do saber importa desde a fórmula federativa (no Novo Mundo, os Estados Unidos da América do Norte e os Estados Unidos do Brasil) até o neoliberalismo, o modelo de metas de inflação, a sugestão de autonomia para o Banco Central, o baile funk, o jazz, sabores, tonalidades e amenidades. Importa cultura e o povão canibaliza para subsistir. Ao canibalizar, o povo cria. A geriatria do objeto durável faz o veículo automotor sobreviver à segunda, terceira, enésima mão – existe o neoartesão mecânico, que reproduz a peça de reposição do modelo fora de uso no primeiro mundo; existe o lanterneiro genial que, como um PItangy do povão, preserva geladeiras, televisões e, mais recentemente, computadores. Com a geriatria, o povão cria empregos e renda, microempresas e viabiliza o acesso popular às mercadorias importadas; a geriatria permite à montadora de veículos um mercado ampliado de primeira mão e ao banco endividar a família que não presta atenção ao juro, calcula apenas o valor da prestação.

A criatividade popular transformou o football importado pelo inglês colonizador. A elite do ter, com a miragem do anglicismo, fundou clubes de football e regatas. A bola é redonda, barata e pode ser improvisada com meia velha; o campo pode ser qualquer terreiro – e o povão canibalizador inventou o futebol. O inglês chutava a Ball, mas o brasileiro quer dominar a bola. Futebol virou paixão. Qualquer lugar pode ter seu time de várzea e disputar com o time do lugar vizinho fazendo o ritual de construção de identidade, que Lévi-Strauss identificou pela oposição ao idêntico. Viramos, em 1958, campeões do mundo. Garrincha, torto, surgiu em Pau Grande (RJ), a partir do time de uma fábrica de tecidos de propriedade britânica. No final dos 50, completamos nosso desempenho construindo Brasília mais além do território real ocupado.

Em resumo, o povão cria e a elite come criação. O povão foi expulso das escolas de samba do grupo especial; não tem renda para comprar a fantasia, nem para um lugar na arquibancada. O Sambródomo é negócio e o espetáculo é para a elite. O criativo povão já fez renascer o bloco de rua.

A feijoada é guloseima em hotéis de luxo para atrair turista, mas em qualquer botequim tem uma boa feijoada. O povão já superou o faast-food com a comida a quilo, que permite ao brasileiro canibal misturar feijão com sashimi, salada verde com talharim e o que mais a imaginação e o apetite permitirem.

O povão, com pouco ter e poder, preserva o saber cultural brasileiro. Recicla tudo naturalmente, do auto à latinha de alumínio. Inventa a favela, a música popular, idealiza o malandro, tropicaliza o salpicão e faz com este prato uma multiplicidade do frango. Organiza festas e novas religiões (é capaz de praticar várias ao mesmo tempo). Preserva o idioma, pois o maneja dinamicamente. O léxico é campo de aclimatação dos pedaços que canibaliza. Enquanto a elite procura uma residência alternativa em Miami, seus epígonos procuram reproduzir o subúrbio norte-americano nas Alphavilles e socializar seus filhos no condomínio e no shopping, o povão canibaliza o baile funk. O estudante brasileiro despreza Camões e, em vez de imprimir e pagar, “printa” e “deleta”; o povão pega no funk uma música importada que se refere a tonight e a transforma em “Melô do Tomate”. Ligado nas sonoridades, este cultor de Camões transmuta o sítio do irlandês O’Higgins em Favela do Arrelia; o sítio do escocês Willian em um bairro, a Ilha. O Visconde de Asseca deu origem à Praça Seca.

Ao invés de constatar um Brasil com uma elite que importa e um povão que canibaliza, espero um projeto nacional para o Brasil de amanhã, onde estaremos abertos ao mundo e conscientes de nossa identidade e soberania. Parafraseando Martinho da Vila, iremos “devagar, devagarinho” em direção à premonição de Duque Estrada, que intuiu o “berço esplêndido” e atribuiu aos nossos bosques mais vida e à nossa vida mais amores. Neste Brasil de amanhã, Zeca Pagodinho não precisará se referir a caviar como “não sei, nunca vi, eu só ouço falar”. Zeca, estamos precisando de um samba que fale do futuro, que veja no baiano a vanguarda da civilização brasileira; que veja no mineiro, a sabedoria; no paulista, o maquinista da locomotiva; no forró do nordestino, a criatividade lúdica do povão; no carioca, o brasileiro que não tem medo de praça cheia e que faz a maior festa mundial de fim de ano (três milhões reunidos, sem polícia nem violência) para recuperar o sonho de um futuro sempre postergado.

A sugestão modernista da Semana de Arte Moderna de 1922 combinada à genialidade de Gilberto Freire lastreou a redescoberta pela qual a elite canibalizou o povo. Nos últimos 25 anos, a elite praticamente deixou de lado o Brasil e mergulhou gostosamente na “Globalização”. Abandonou a cultura popular, da qual o culto à boa cachaça é a nova deglutição da elite. Tenho a esperança que estejamos próximos a um tempo em que, dialeticamente, povão e elite, juntos, superem o ritual recorrente da canibalização e haja a afirmação da identidade brasileira explicitando nosso potencial civilizatório.

Texto de Carlos Lessa

domingo, 9 de setembro de 2012

UNI PACHAKUTI, o dilúvio americano

Chegando à América, os cronista europeus ouviram todos o mesmo eco de um terrível DILÚVIO. A tradição oral a seu respeito era geral, desde as terras nórdicas dos pele-vermelhas até as possessões austrais dos Tehuelches, na Terra do Fogo.
 
Em sua “História da Cultura Peruana”, Atílio SIvirichi faz o balanço deste mito espalhado por todo o novo continente. O auto observa que    “as características especiais que o dilúvio adquire confirmam a hipótese de um dilúvio provocado por catalismos geológicos”. A arqueóloga peruana Rébecca Carrion Cachot fala de “certos fenômenos que revolucionaram todo o continente e deixaram traços palpáveis em sua amplitude”. Erupções vulcânicas acompanhadas de sismos e de chuvas torrenciais surpreenderam os velhos povos que vivam então “a idade do ouro de uma prosperidade marcada pelo desenvolvimento intensivo das belas-artes, especialmente de uma arquitetura monumental que não teve rival nos séculos vindouros”.
 
O padre Ávila ouviu dos indígenas de Cusco que tinham lembranças de “cinco dias de obscuridade” durante o dilúvio. Todas as versões dos cronistas coincidem no fato de que o mundo foi imerso nas trevas depois de um dilúvio.
 
Uma tradição ZUNI, recolhida por G. W. James, declara que “a despeito das advertências Daqueles do Alto, seus ancestrais perseveraram em suas práticas até que o Povo das Sombras resolveu apagá-lo da superfície da terra. As duas grandes fontes de água do mundo foram abertas: o reservatório do alto, de onde tombam as chuvas, e aquele de baixo, que alimenta as fontes, rios e regatos. As chuvas abateram-se e os rios transbordaram até que os Zuni refugiaram-se às presas sobre o cume do Tai-yo-al-la-ne (Monte do Trovão).
 
“O medo invadiu o coração de todas as pessoas. Em vão os sacerdotes cantaram, dançaram e fizeram grande fumarada; a cólera Daqueles do Alto não se acalmou. O chefe dos sacerdotes resolveu, então, retirar-se para o mais alto cume da montanha sagrada e ali meditar e interceder em favor de seu povo. Quando voltou, trazia uma resposta: Aqueles do Alto pediam o sacrifício do mais belo dos rapazes e da mais encantadora das moças.
 
“Ainda hoje, quando os Zuni contemplam o nascer ou o por do sol no cume da Montanha Sagrada, conseguem distinguir duas silhuetas em pé”.
 
Os YOWAS, que “viviam numa ilha onde nasce o Sol”, segundo suas crenças mais antiga, foram desalojados dela por um dilúvio que engoliu a maioria dos seus antepassados. O Grande Espírito precisou criar um novo casal do qual eles descendem.
 
A cosmogonia americana dá um lugar preponderante às diferentes idades geológicas que aparecem divididas em “sóis”. Padre Toríbio de Matolinia indica que os MAIAS contavam cinco idades ou sóis. A primeira delas é NAHUI-ATL, o Primeiro Sol desaparecido sob as águas que afogaram todas as pessoas. Segundo o Codex Chimalpopoca, “a duração deste Sol foi de seiscentos e setenta e seis anos, ao fim dos quais os homens foram em um só dia transformados em peixes. As montanhas desapareceram sob a água, que ficou tranqüila durante cinqüenta e duas primaveras”.
 
Segundo Pedrarias de Ávila, os indígenas de Santa Cruz, perto do Golfo de Araba, falavam de um grande senhor chamado Chiripa, que fez cair do céu a “grande chuva”. No Yucatã, um casal e seus filhos salvaram-se do dilúvio em uma canoa. Os indígenas das Caraíbas atribuíram a catástrofe ao pássaro íbis, que “revirou a Terra de cima para baixo”, formando um círculo de picos muito altos onde se refugiaram alguns indivíduos.
 
Os ARAWAK atribuíam o dilúvio a três grandes Espíritos: Mokanaima, Aimon-Kindi e Moerewana, que, batendo-se, desencadearam terríveis cataclismas de fogo e de água.
 
Na Colômbia, os CHIBCHAS conservam diversas crenças que se referem a fenômenos plutônicos. O mais importante remonta a Chibchacum que fez transbordar os rios Sopo e Tibito, formando um lago imenso. Refugiados sobre os cimos andinos, as pessoas imploraram o auxílio de Bochica, que lhes apareceu como um arco-íris. Com seu bastão de ouro, Bochica rompeu o Tequendama para que as águas pudessem escoar pela brecha. E condenou o Chibchacum a carregar o mundo sobre os ombros. Nesses altos montes dos Andes colombianos, geólogos encontraram esqueletos de animais pré-históricos que, fugindo das águas, morreram a 3.000 metros de altitude por falta de pastagem.
 
Os ACHAGUAS do Alto Orenoco acusam Catana, o dilúvio, de ter destruído todos os povos e os animais. Um grande lago subsistiu que, pouco a pouco, secando-se, forma ainda em nossos dias a laguna Catena-Manoa.
 
No Equador, o dilúvio ocupa um grande lugar sob o nome de HATUN TAMIAJUDNA PACHAPA, ou seja, “a época da Grande Chuva”. Este cataclismo teria sido provocado pela erupção conjunta de todos os vulcões da cinta do fogo do Pacífico, situados na linha do equador, que sopraram para o céu gigantescas colunas de vapor ardente. O ar saturado de nuvens sombrias e espessas, recaiu depois sob a forma de uma chuva diluviana, mortal para tudo quanto vivia. As correntes de alva obstruíram o curso dos rios que transbordaram, criando lagos que não cessavam de crescer. Levado pelas águas – o que lhe valeu o nome que intriga tantos americanistas ainda hoje – apareceu então um mensageiro de cabeça resplandecente, trazendo uma longa barba tão branca quanto a túnica longa: VIRACOCHA, que trouxe aos sobreviventes do cataclismo o reconforto da palavra e das leis estruturais para restabelecer a ordem da vida. Antonio de la Calancha menciona que em Gonzamana, no Equador, venerava-se um rochedo que guardaria a impressão das mãos de Viracocha.
 
Entre os CAÑARI, contasse que dois irmãos sobreviveram ao dilúvio subindo até o alto do Huayñan. Em Quito fala-se de Atacorupaqui e Cusicayo que também teriam sobrevivido no alto do monte Wakayñan. Ali, eles forma alimentados por dois guacamayos (papagaios). Os dois papagaios transformaram-se, por fim, em duas mulheres que revelaram terem sido enviadas por Viracocha. Por isso os Cañari veneram essas aves até hoje, depositando-lhes oferendas no alto do Wakayñan.
 
 
Marcos de Niza fala de uma outra versão equatoriana para o dilúvio: “Em tempos muito antigos, houve um naufrágio geral dos homens que foi provocado por uma enorme serpente que um caçador havia transpassado com suas flechas. A serpente vomitou uma tal quantidade de água que a terra inteira ficou recoberta por ela. Apenas uma mulher, chamada Pacha, e seus três filhos sobreviveram subindo ao alto do Pichincha, vulcão que domina a capital do Equador.
 
 
Entre os GUANARI o dilúvio chama-se IPORO; dele, apenas um casal sobreviveu refugiando-se no algo da Serra do Mar – uma muralha que se ergueu para deter o avanço das águas. Para os TUPI, o responsável pelo dilúvio foi Irinmaje, tentando apagar o fogo de Monan. Já os consideram o dilúvio obra de Anatiwa; os sobreviventes foram salvos por uma galinha d’água, que os guiou até o Pico Saracura... e depois lhes trouxe comida e sementes para fazer suas hortas.
 
Os ARAUCANOS atribuem a inundação à “guerra que se fazia entre duas gigantescas serpentes: uma habitava as grutas do monte Ten-Ten, um cume sagrado; a outra, nas profundezas do Caicai-Vilu. O Ten-Ten avisou os homens que o mar iria transbordar, mas eles não lhe deram crédito. Caicai fez, então, o mar subir e recobrir a terra, mas Ten-Ten fazia crescer os montes, para se erguerem acima das águas. Muitos homens tornaram-se seres aquáticos – baleias, atuns, peixes-espada, lisas, robalos, e Ten-Ten os ensinou a nadar”. Desde essa época, muitos povos no atual Chile, trazem nomes de peixes e mamífero aquáticos.
 
Os povos do Chaco argentino tem numerosos mito diluvianos. Em plena noite, para escapar à inundação, os homens, os avestruzes e os guanacos escalaram as montanhas. Em coro eles suplicavam ao Sol para iluminar seu caminho, para que eles não afundassem nos lagos de lama. O Deus enviou-lhes, então, a Lua que, caminhando sob a chuva, segurava em suas mãos uma tocha. Mas a água abundante enfraqueceu sua luz e é por isso que a Lua, atualmente, ilumina com um fogo fraco e sem calor.
 
Em TIAHUANACO o tempo geológico também eram dividido em sóis. O primeiro é o Sol da Água Diluviana. O padre Cristobal de Molina conta, em seu “Rito e Fábulas dos Incas”, de 1572, que os indígenas de Tiahuanaco diziam que antes do cataclismo, “os lhamas, guanacos e outros animais domésticos mostraram-se tristes. Dias e noite sem comer, eles olhavam para o céu. Um pasto que noto isso reuniu seus seis filhos e seu rebanho e conduziu-os para o mais alto cerro de ANKASMARKA, de onde eles contemplaram as chuvas que caiam interminavelmente. As águas elevavam-se sem cessar, porém a montanha também crescia. Este sobreviventes do desastre pudera repovoar a província”. Os KUYOS, de Pisac, no Vale Sagrao do Urubamba, afirmam ser os descendentes do pastor do Calca.
 
Francisco de Ávila nota a mesma tristeza lendária dos animais dos Andes, “até ao transbordamento do mar que recobri a terra”. Um só homem sobreviveu subindo o Villacota, na região de Huarohiri. Segundo outra versão, quem sobreviveu foi um casal, dentro de uma caixa de madeira, que, no final da inundação, “o vento os atirou para Tiahuanaco, a setenta léguas de Cuzco”.
 
Sarmiento de Gamboa informa que os andinos chamavam o dilúvio de UNI PACHACUTI, que significa “a destruição do mundo pela água” ou ainda, “a água que revoluciona o mundo”. Segundo ele, choveu durante sessenta dias e sessenta noite e tudo desapareceu. Entretanto, “pode-se ver nas ruínas de Pukara, situada a dez léguas do lago sagrado, as forma daqueles que foram petrificados por Viracocha em memória desse feito”.
 
Antônio de la Calancha fala do dilúvio em sua célebre “Crônica moralizada da Ordem de Santo Agostinho do Peru”. Segundo ele, os indígenas diziam que “o deus que criara o mundo e que eles chamam de Pachayachachic (O Senhor Invisível) foi desconsiderado pelos homens que adoravam as águas, as fontes, as montanhas, os rochedos, porque não fizeram mais caso do criador. Pachayachachic sofreu muito com tal afronta. Ele então vingou-se mandando raios ardentes. Mas os humanos continuaram a desconsiderá-lo. Então ele derramou sobre a humanidade uma quantidade tão grande de chuva que os afogou a todos, exceto alguns poucos, que ainda o procuravam. A esses ele mandou que subissem nos mais altos montes e se escondessem em cavernas e grutas.
“Quando a chuva cessou, ele disse-lhes que saíssem e fossem povoar a terra onde viveriam alegres e felizes. Estes foram, por sua vez, agradecidos aos montes, às grutas e aos outros esconderijos que eles começaram a venerar. E seus filhos os chamam de HUACA”.
 
Lopez de Gomara narra que “os homens que se refugiaram em certas cavernas das sierras muito altas, fecharam as entradas desses abrigos de modo que as chuvas ali não pudessem entrar. Eles colocaram no interior muita reserva de alimento e animais. Quando não ouvira mais cair a chuva, atiraram dois cachorro para fora. Eles voltaram sujos e molhados. Os homens compreenderam que as águas ainda não haviam baixado. Depois, eles atirara outros cachorros que voltaram sujos, mas secos, o que lhes indicou que as chuvas tinham por fim cessado e eles saíra de seus refúgios para repovoar a terra”.
 
As tradições URU, colhidas por Anello de Oliva, fazem alusão a um passado opulento “quando seus ancestrais habitavam a terra firme... Um castigo divino atingiu-os com um dilúvio que os obrigou doravante a viver sobre o lago Titicaca”.
 
Durante o dilúvio, conta o padre Cobo, o Sol escondeu-se sob um rochedo na ilha Titicaca, em companhia de alguns homens que ele quis proteger. Entre estes estava Manco Capac.
 
A lembrança de um dilúvio americano encontra-se igualmente na Amazônia. Os povos do Alto Napo contam a seus filhos que uma terrível inundação provocada pelo fechamento do curso do rio, formou um vasto mar interior, que fez desaparecer a árvore sagrada Sumaco, a mais alta da floresta. Os PAUMARI que habitam as margens do rio Purus, afluente do Amazonas, recordam-se de gigantesca tromba d’água que desceu das montanhas e fez perecer toda a humanidade. Somente os Paumari conseguiram escapar dela porque a tribo tem por costume viver constantemente sobre a água, a bordo de grandes jangadas de balsa que se elevaram com a corrente. Os MAYNA do rio Maranhão pretendem descender de um só casal que se salvou do dilúvio subindo aos galhos de um alto carvalho.
 
Os YUNGA da Bolívia contam que os deuses tinham proibido queimar as florestas que atapetavam o flanco da montanha. Mas procurando terras férteis, eles desobedecera... A espessa fumaça que coroou o fantástico incêndio cobriu o pico do Illimani e do Mururata. Viracocha, então, pediu que Kon desencadeasse uma chuva torrencial durante vários dias, destruindo as culturas, fazendo desabar as cabanas, apagando caminhos e tornando impossível toda comunicação com o alto planalto.
 
Baseado em texto de Simone Waisbard