Pois é isto, meus irmãos, minhas irmãs, para obtermos
as normas de obstinação,
normas da completude,
as normas da completude para que nós chegássemos à completude
nós nos erguemos no esforço.
Como deveremos nos conduzir à verdade?
O que disse, na verdade, Nhande Ru Papari?
Como ele viveu, na verdade?
Como Nhande Ru Papari, para o seu próprio futuro tão
bem soube, na verdade?
Conformemente a isso, de novo vamos nos conduzir meus
irmãos, minhas irmãs.
Graças a isso já nos erguemos no esforço
com o bastão – insígnia que Nhande Ru Caraí Ete concebeu
Nós o brandimos, nós nos abaixamos, nós nos
reerguermos, nós – os eleitos.
A Hélène Clastres alguns aparentes
silêncios dos índios Tupi chamam a atenção. E que segundo os primeiros relatos
de missionários e outros colonizadores, eles pareciam ser "gente sem
lei": povo e cultura sem a idéia de um deus, sem o seu temor, sem mais
nada do que vagos nomes dados a algum fenômeno da natureza. A própria noção do
sagrado parecia ser desconhecida aos tupi-guarani. Ali estava uma gente que ao
contrário de outros índios encontrados na rota dos descobrimentos, parecia não
possuir ritual algum de qualquer tipo de culto religioso. Não possuindo em
aparência o conhecimento de um deus, não pareciam ter crença alguma em outros
seres: maléficos ou demoníacos. E se aos primeiros jesuítas espantava uma
"gente sem fé”, consolava a desconfiança de que, pelo menos entre eles,
não seria necessário combater "falsas crenças", pois, a um primeiro
olhar piedoso, parecia não haver nenhuma.
Depois do padre Manoel da Nóbrega e
dos primeiros missionários, todos os viajantes que visitaram os índios corroboraram
esta afirmação: não somente eles não tinham conhecimento algum do deus
verdadeiro – o que, tratando-se de selvagens, a ninguém surpreendia – mas
tampouco tinham falsas crenças. Esse traço notável das nações pós-guarani
espanta – ainda que anime, pelo menos, os missionários: sua tarefa de
evangelização vê-se simplificada, por não terem de combater crenças já
estabelecidas. Rebeldes à idéia corrente sobre o que deveriam ser os pagãos –
adoradores de divindades múltiplas e praticantes de cultos idolatras – esses
índios em nada acreditavam, não adoravam astros, nem animais, nem plantas, nem
contando com padres ou lugares sacros.
"Gente
sem fé", teriam
dito dos tupi-guarani os primeiros missionários. "Teólogos da América do Sul", escreve-se hoje, com alguma
freqüência, a respeito dos Guarani. Que religião afinal era a deles? Em que
crêem hoje e o que buscam? Em que as suas crenças se perderam do ritual antigo
e da memória? No que se transformaram?
As palavras ñandé rekó, como sinônimas de algo como "modo de
ser", "o nosso modo de ser", que o Guarani emprega para dizer em
que, como e porquê se reconhece diferente dos demais, designa-se também a
religião. Isto é o mesmo que dizer que entre os seus sub-grupos, um modo
peculiar de ser, assumido e proclamado como uma identidade realizada como um
sistema ancestral de crenças destinado a conduzir tanto a história de um povo
quanto a conduta cotidiana de cada uma de suas pessoas, é definido como uma religião.
Esta seria uma das razões pelas quais um mesmo sistema religioso, em
princípio unívoco entre vários subgrupos e tribos, é bastante resistente a
ponto de ser ainda quase integralmente a religião Guarani,após um tempo
entre 450 e 300 anos de evangelização cristã. A oposição
entre esta resistência nativa e uma criativa incorporação de temas e sujeitos
do cristianismo é o que nos obrigará a um segundo momento de descrição
etnográfica, adiante.
Guardadas as diferenças entre as
culturas do sub-grupos Guarani, o que Egon Schaden resume a respeito da
religião estudada por ele entre os Kayaowá do Mato Grosso do Sul, poderia ser
estendido aos outros grupos.
Um lugar intermediário, morada de
inúmeros deuses e espíritos que habitam os seus vários sub-espaços superpostos
e a que os Guarani dão o nome de Yváraquy,
existe entre a superfície da Terra onde vivem os humanos – Yvy-Yvíkatú – e algo equivalente
ao firmamento, não exatamente pensado como um homem cristão do povo imagina o
céu de sua fé – Yvá, Yvága, Yvánga –. Entre os dois lugares extremos, no Yváraguy estão os deuses
e os espíritos que amiude se comunicam com os vivos e que podem ser benéficos
ou perigosos.
De acordo com certos sub-grupos
Kayowá, Mbyá e Ñandeva, existe um deus supremo, um criador indiscutível do
mundo terreno, sua ordem e a totalidade dos seus habitantes: Ñame Ramõi Papá. Os
Kayowá do Amambabí, estudados por Egon Schaden, reconhecem em Ñamé Rumó Papá
a pessoa de uma divindade suprema, mas não propriamente um criador. Um
orvalho primitivo – Ysapy –
deu origem ao embrião da Terra – Yví
Reñoi – e também aos deuses que, tal como os humanos, surgiram
de uma mesma "origem impessoal das coisas", criadora e não criada por
deus algum: Djasaká.
Um casal de deuses supremos –
criadores, ordenadores ou não do mundo terreno – estabelecem com os homens uma
distanciada relação afetivamente parental: Ñané
Ramói Papá é traduzido como "nosso avô", "nosso
ancestral" e Ñandé Djary,
sua esposa – mas não sua equivalente em poder e posição celestial – é
traduzida como "nossa avó". Distribuídos por outras regiões
celestiais, deuses menores prestam serviços a Ñamé Ramõi Papá na
qualidade de Yvyrâidjá, os
"senhores dos pequenos bastões".
Ñamé Ramõi possui deuses-filhos e entre eles
merece destaque a pessoa de Pai Kwara,
o deus lunar. É ele quem se relaciona com os homens e, desde a região
superior do centro do céu, dirige suas vidas terrenas. E a ele – ou a seu
equivalente em outros sub-grupos – que Guarani se sente estabelecendo uma
relação cuja tradução católica seria a do devoto; "e a maior ventura que o
devoto pode almejar é ver o sem plante de Pay Kwara. O empenho com que
se pratica o culto, dizem os índios, visa, em última instância, a obter essa
graça".
Afora esta divindade mais humanizada e
mais diretamente próxima dos homens do que da natureza, os outros deuses
intermediários vêm do Yváraguy à
Terra. Suas visitas são percebidas por mudanças no ambiente natural,
pois eis que são eles os responsáveis pelas tempestades, pelos trovões, pelo
granizo e assim por diante. Mais longe do que o lugar dos deuses
intermediários, existe uma espécie de região do Alto habitada pelo povo dos
"Kayowá celestes", espíritos (dos mortos? de quem?) estreitamente
ligados com os seres vivos da Terra. Estes Tavyterã
eram sem morada definida e desconhecem o seu próprio destino.
Um pouco adiante chegaremos, com os
Guarani, à Terra Sem Mal, cuja busca incessante bem poderia ser o
símbolo do sentido de vida deste povo. O seu equivalente interior, subjetivo e
pessoal poderia ser a idéia de aqwjdjé:
tornar-se próximo, purificar-se como o divino; no limite, chegar ao lugar
do Paraíso sem passar antes pela morte. Diversa de ser uma religião utilitária,
centrada na relação cotidianamente mensurada pela distância entre as
necessidades dos humanos, o seu poder de obter dos deuses ou intermediários a
proteção, e a resposta a cada caso favorável por parte deles, aos Guarani o
sagrado sugere a busca de um estado de proximidade da perfeição, que mais a
aproxima das religiões de purificação do que de outras religiões tribais. Os
deuses e, mais do que todos, Pay Kawrá são, como os humanos, pessoas corpóreas,
vivas e atuantes, ainda que seus corpos sejam incorruptíveis e seus atos
perfeitos, ou pelo menos próximos da perfeição. Esta similitude não apenas de
aspectos, mas de destinos e relações sugere aos humanos serem como os deuses,
não em poder – porque justamente esta distância estabelece a realidade das duas
naturezas – mas em perfeição interior. Este sistema de crenças, tomado a partir
de um exemplo de uma das tribos Guarani representa alguma mescla com o
imaginário cristão. Mas que nada nos impeça de adiantar aqui uma conclusão de
Egon Schaden e que, com diferenças de um para o outro, os estudiosos da cultura
Guarani irão corroborar:
Certo é que a religião de todos os
grupos da tribo que hoje vivem no Brasil, no Paraguai e na Argentina não
cristã, mas a Guarani. De tudo o que de possível cristã se possa descobrir no
conjunto de suas crenças, ritos e cerimônias conservaram-se apenas aspectos
tangíveis e formais. O conteúdo é pagão.
Texto de Carlos Rodrigues Brandão