O que terá passado pela cabeça dos índios em seus primeiros encontros com os europeus, nos séculos XV e XVI? O que terão pensado ao se depararem com aqueles estranhos seres recém-chegados ao seu mundo?
Estas são questões intrigantes para qualquer pessoa que tente reconstituir aqueles episódios marcantes para a história mundial. Mas nem sempre houve tal curiosidade. Pelo contrário: até pouco tempo atrás, ninguém estava preocupado com o que pensaram os indígenas sobre a conquista ou sobre qualquer outro assunto. Vem daí a dificuldade de historiadores e antropólogos acessarem este tipo de informação, afinal, a maior parte dos povos americanos da época de Colombo e Cabral não possuía a escrita (eram ágrafos), e os colonizadores fizeram o que puderam para eliminar seus modos de vida. Restaram raros materiais para tentar fazer essa interpretação.
Havia os maias, os incas e os astecas. Eles, sim, tinham escrita, e quando houve interesse em saber o que os índios pensavam, foram essas sociedades que pautaram o que se acreditava ser “o” pensamento dos povos americanos. Mas será que diante da enorme quantidade de povos do continente, com línguas, costumes e práticas diferentes, existiam apenas essas formas de pensar?
Além de limitado e sujeito a generalizações, o conhecimento sobre aqueles povos ainda por cima é estereotipado. Todos os materiais produzidos – por nativos americanos ou europeus – foram lidos segundo um padrão que estipulava a superioridade da Europa em relação a outros modos de viver. Seja por acreditarem no cristianismo como única verdade religiosa, seja por valorizarem o progresso tecnológico e a ideia de evolução social, os colonizadores construíram uma hierarquia entre sociedades, na qual o mais avançado modelo era a Europa. O resto do mundo era entendido por este parâmetro: mais perto ou mais longe do ideal europeu. Vem daí a desqualificação radical de qualquer informação advinda dos índios, vistos como bárbaros por viverem de acordo com outros parâmetros de “fé, lei e rei”.
Apesar dessas limitações e distorções, é possível levantar hipóteses bem próximas do pensar dos índios daquela época. Os grupos indígenas que estavam na costa do que hoje é o Brasil eram, em absoluta maioria, da família linguística tupi-guarani. Pertencer à mesma família linguística não quer dizer fazer parte do mesmo grupo indígena. Assim como o português é da mesma família linguística que o espanhol e o francês, eles eram temiminós, tamoios, potiguares, tupinambás, entre outros, com muitas diferenças entre si, inimizades e guerras. E as culturas desses grupos se aproximavam em outras coisas, como as referências sobre a origem do mundo e de certas crenças. Uma delas é a Terra sem Males, mito que conduzia os tupis-guaranis para leste – indo ao encontro do mar, teriam uma terra de fartura e todos seriam preservados de infortúnios.
A Terra sem Males se inscreve numa prática usual dos tupis-guaranis: deslocar-se para superar uma situação desfavorável, como a morte de um chefe ou a carência de alimentos. Deste modo, os grupos que contataram os portugueses vinham de uma longa caminhada em busca desse lugar especial e, ao se depararem com seres repletos de novidades, julgaram que poderiam incorporá-los ao seu mundo, tornando-os mais fortes e melhores diante de seus inimigos.
É difícil supor que os índios da América portuguesa acreditassem que os europeus fossem deuses – da forma como os entendemos, habitantes de uma intransponível distância. Para os tupis-guaranis, homens e deuses são estágios de uma mesma experiência, fazem parte um do outro. Caminhar para a Terra sem Mal – e encontrá-la – poderia ser um mecanismo de transformação de índios em deuses sem passarem pela morte. Não há evidências que o comprovem, mas podemos supor que, por chegarem do leste e serem portadores de novidades, os portugueses fossem vistos como homens já transformados em deuses. Mas é bom lembrar que para aqueles índios essa situação não significa uma cega submissão: mais provável seria a atitude de garantir um contato que os fizessem descobrir como os portugueses conseguiram fazer essa passagem de homens a deuses sem a morte.
Mas há pistas de que a percepção dos índios sobre os conquistadores estava mais próxima da humanidade europeia. Durante muito tempo os nativos se utilizaram de uma estratégia mal compreendida pelos portugueses. Além de considerarem os índios preguiçosos, os registros lusos dizem que as índias eram dadas à sensualidade e se ofereciam aos europeus. Como ninguém estava interessado em saber o que pensavam esses índios, não se considerou que a ideia de preguiça disseminada pelo colonizador era uma recusa fundada na divisão de papéis masculinos e femininos: a agricultura era uma atividade feminina e os índios não queriam assumi-la nas roças portuguesas. Do mesmo modo, o “oferecimento” das mulheres refletia um dos principais mecanismos de fortalecimento de alianças entre grupos nativos, por meio do casamento. Um chefe era poderoso pelo número de filhas que possuía, pois elas seriam uma importante moeda na consolidação de alianças guerreiras. Como os registros indicam a estratégia de aproximação das mulheres índias, o mais correto é imaginarmos que, na percepção dos nativos, os portugueses não eram divindades, mas talvez homens poderosos com os quais valia a pena fazer aliança.
Outro estereótipo recorrente é o do “índio puro” maculado pelo contato com o europeu. Esta ideia pressupõe que os índios eram todos iguais e que não entravam em contato com outros grupos. Na verdade, o que havia era uma enorme diversidade de povos em contato, transformando-se historicamente por meio de trocas e atritos. Não eram sociedades estáticas, mas povos preparados para um contato.
Ailton Krenak, atual liderança indígena, reforça esta perspectiva ao comentar as narrativas nativas acerca da chegada europeia: “Em cada uma dessas narrativas antigas já havia profecias sobre a vinda, a chegada dos brancos. Assim, algumas dessas narrativas, que datam de 2, 3, 4 mil anos atrás, já falavam da vinda desse outro nosso irmão, sempre identificando ele como alguém que saiu do nosso convívio e nós não sabíamos mais onde estava. Ele foi para muito longe e ficou vivendo por muitas e muitas gerações longe da gente. Ele aprendeu outra tecnologia, desenvolveu outras linguagens e aprendeu a se organizar de maneira diferente de nós. E nas narrativas antigas ele aparecia de novo como um sujeito que estava voltando para casa, mas não se sabia mais o que ele pensava, nem o que ele estava buscando”.
Um outro irmão, e não um deus. Deixemos de lado histórias famosas como a do capitão inglês James Cook sendo recebido como um deus pelos polinésios no século XVIII. O que houve foi o contato inédito de sociedades e culturas diferentes.
Texto de Eunícia Fernandes