As mulheres mandaram as meninas pegarem sapinhos e peixinhos numa lagoa, para assarem e comerem. A meninada obedeceu contente, viram as água nas margens escurecem de tantos bichinhos nadando de um lado para o outro.
Já estavam apanhando grandes bocados de sapinhos novos, quando no meio da lagoa apareceu uma velha boiando, chamada Katxuréu. Viu as meninas catando peixinhos:
– Minhas netinhas, vocês estão estragando nossa música e nosso jenipapo!
– Não estamos estragando nada, vovó! Nossas mães nos mandaram pescar para comermos!
– Vocês estão pensando que apanham peixinhos e sapinhos, mas essa é nossa música, nosso jenipapo de pintar o corpo! Vou ensinar vocês a cantarem.
A velha Katxuréu pôs-se a cantar e a música era tão linda que as meninas mal respiravam, seduzidas, tentando aprender.
– Agora vão chamar as mães de vocês para aprenderem também os meus cantos, minhas mocinhas, expliquem que vocês estavam roubando, não os sapinhos novos da lagoa, mas nossa música e nossa tinta de pintar!
As meninas voltaram à maloca e as mães resmungaram ao ver que não traziam nada.
– Como podíamos ter pescado? – explicaram. – Lá nas águas há uma velha chamada Katxuréu, que mandou buscar vocês para aprenderem umas cantigas belíssimas, e nos avisou que os sapinhos novos eram sua música e seu jenipapo e não devíamos levar nada embora!
As mães, curiosas, acompanharam as filhas na visita à velha Katxuréu.
– Elas falaram a verdade, minhas filhas – confirmou a dona da lagoa – Nadando nas minhas águas está a nossa música e o nosso jenipapo, não são peixes. Venham, vou ensinar vocês.
Meninas e mulheres foram dançando e cantando em toda horas a fio, transportadas a uma esfera encantada. Tão entretidas estavam, possuídas pela música, que nem viam o tempo passar – mas foram sentindo fome.
A velha Katxuréu aparecia quase inteira boiando na água, ensinando os cantos numa forte. Os cabelos dela eram pretíssimos, compridos até os pés, quase assustadores de tão bastos, mas muito bonitos. A velha viu que estavam gostando e ordenou:
– Amanhã vocês vêm de novo para cantar bem afinado comigo a cantiga Koman. Antes, passem a matar os maridos de vocês, um a cada dia, para comermos enquanto cantamos. Essa é a verdadeira comida, não os nossos peixinhos e sapinhos.
As mulheres ficaram chocadas, mas foram pensando, pensando, lembrando da música, e em pouco tempo ficaram animadíssimas para começar a matar os homens.
– Quem vai ser a primeira a matar? Quem vai mata hoje?
– Sou eu, sou eu! – várias vozes responderam ao mesmo tempo. Escolheram uma delas.
De madrugada, uma mulher matou o marido adormecido, botou-o no marico e tampou com palha. Cedinho, disse que ia para a roça com as outras. Levaram o cesto, cozinharam num panelão de barro, e comeram com a velha da lagoa.
Assim foi acontecendo todas as noites. Cada vez um outro homem desaparecia, e as mulheres passavam o dia na lagoa, cantando com a velha e comendo a carne dos maridos.
Os homens não entendiam o que estava acontecendo, porque iam sumindo um a um. As mulheres diziam para eles que iam para a roça, mas demoravam tanto, voltavam tão estranhas, que começaram a desconfiar que andavam mentindo.
Combinaram entre si que precisavam descobrir qual era o mistério. Não podiam mais deixar acontecer tanto sumiço sem fazer nada. Cada vez que um deles ia buscar palha para fazer o cocar com que se enfeitavam durantes as festas de tomar chicha, acabava desaparecendo para sempre. E enquanto isso as mulheres saíam para fazer a chicha e ir à roça... Seria verdade? Daqui a pouco não ia restar homem nenhum, só as mulheres! Elas não sentiriam falta de namorar, de deitar com aqueles-com-quem-sempre-brincavam? Teriam outras brincadeiras?
Ficou assentado que iriam todos caçar, para elas ficarem bem desprevenidas, e que só um rapaz ia ficar na maloca, tentando desvendar o segredo.
Quando todos saíram para a caçada, o moço fingiu que estava com febre e deitou-se perto do fogo, tiritando. As mulheres, com pena, cuidaram dele – mesmo as mulheres que já tinham matado o próprio marido. Puseram para ele uma panela de chicha e o deixaram estirado na rede. Vendo-o largado, saíram da maloca.
A mulherada matara o marido de uma delas na véspera, escondendo o corpo numa sapopemba bem próxima da casa. Foram correndo buscar, antes de ir cantar com Katxuréu. Supunham estar a salvo dos olhos masculinos, pois só havia por perto o rapaz doente, incapaz de se mover.
Ele, no entanto, assim que se viu sozinho, trepou no jirau de armazenar milho e entreabriu as palhas do telhado, procurando enxergar lá de cima as recém-saídas. Viu muito bem a mulher retirar o marido morto do esconderijo, jogar no marico e carregar nas costas.
Desceu mais que depressa e foi procurar os homens no acampamento da caçada.
– São mesmo elas que estão acabando conosco, nos matam um a um!
Uma fúria sem tamanho tomou o grupo. Prepararam as aljavas, que encheram de flechas de mamuí, e seguiram pelas trilhas atrás das mulheres, prontos para desgraçadas!
– Vamos matar essas desgraçadas!
Pelos sinais e pegadas no chão, logo chegaram à lagoa, caminhando num silêncio propositado, ameaçador.
Ainda na mata, cercaram as mulheres. Estavam todas em roda, dançando e comendo, bem cozidinho, um dos homens que haviam matado. Cantavam, tomadas pó uma alegria feroz, ao som da taboca da velha Katxuréu. Mesmo em meio ao ódio e dor, os homens ficaram impressionados pela força da música, a da cantiga Koman, a da velha. Ela dançava também, soprando a taboca, o cabelão preto bem solto, cobrindo o peito enrugado.
Os ossos dos homens mortos estavam pendurados em fios, ou enfeitavam as pernas da velha e das dançarinas. Já de longe se ouvia a zoada dos pés no chão, na roda: “pá, pá, pá...”
– Quem vai matar hoje? Quem quer dar um marido para comermos?
Nesse minuto, em meio à dança, a corda dos ossos se quebrou. Foi como se adivinhassem que estavam cercadas, ao receberem o aviso repentino. Os homens a um só tempo flecharam a mulherada. Mataram todas e reuniram os cadáveres das mulheres e chamaram Katxuréu, que conseguira escapar para a água:
– Vovó, saia da lagoa, venha nos ensinar a cantar! Achamos a sua música tão bonita!
Chamavam e chamavam, mas a velha nada de aparecer. Não era boba; caíra no fundo do poço onde morava. Os homens insistiram e rogaram tanto, que ela acabou boiando, com água pela cintura, levando sua tabocas muito bem-feitas.
– Cante para nós ouvirmos!
A velha cantou o mesmo que para a mulherada e os homens também ouviram em êxtase. Queriam mais e mais, mas se lembraram do que acontecera:
– É lindo esse canto, vovó, mas você matou muitos homens, temos que nos vingar!
Katxuréu abria a boca, arreganhava os dentes e se gabava:
– É com esses dentes afiados que eu comi vocês, comi muitos homens!
Os dentes branquinhos luziam no meio da lagoa, quando um homem, com pontaria certeira, atirou uma flecha na dentadura e quebrou-a. mesmo assim a velha não morreu, continua viva até hoje.
Os homens voltaram para a maloca, agora sem mulheres para cozinhar e namorar.
Na hora em que as mulheres foram flechadas, só haviam sobrado duas menininhas, abrigadas atrás de um tronco. Apenas o cacique as viu – eram suas irmãs. Percebeu que choravam, e elas disseram que era pelo irmão e pelo tio que a mãe e a tia tinham matado.
– Vocês comeram seu tio, seu irmão?
– Não, mamãe não deixou a gente comer, não!
O cacique conseguiu levar as duas e esconder num jirau alto. Só elas escaparam da vingança. Ninguém sabia delas, foram crescendo.
Agora os homens é que cozinhavam a chicha, mascavam o milho, cará ou mandioca para fermentar a bebida. O gosto era muito ruim, sem doce, mas que outro jeito haveria sem mulheres? Reclamavam, cuspiam a chicha, mas não havia outra.
Iam se revezando, cada vez um ficava na cozinha em vez de ir fazer as tarefas de homem, caçar ou ir à roça. Por fim o cacique se ofereceu para cozinhar. Mandou todo mundo ir caçar no outro dia.
Sozinho na maloca, sabendo que todos estavam no mato, desceu as duas irmãs do esconderijo. Queria que o ajudassem a cozinhar, mascassem pedacinhos de milho para adoçar a chicha, o que os homens não sabiam fazer.
Desceram contentes, trabalharam e voltaram à sua toca no alto. O cacique varreu bem todos os restos de farelo ou casca para não deixar vestígios.
Todos adoraram a chicha:
– Que diferente! Agora, sim, está uma delícia! O nosso cacique faz chicha doce, gostosa, enquanto a nossa não presta.
– É que sei fazer, aprendi, meus amigos – respondia modesto.
Não sabiam que estavam tomando chicha de mulher de verdade.
O cacique passou a mandar que caçassem sempre que era preciso fazer chicha, cada três ou quatro dias. As meninas, já grandinhas, desciam, faziam o tempero, mascavam para adoçar a chicha. Os outros bebiam com gosto ao chegar.
Tanta caçada os fez, por fim, que o cacique está nos ocultando!
O cacique terminou por contar a verdade.
– Não deixei matarem minhas irmãzinhas, que não tinham comido carne de homem!
– É bem verdade que chicha feita por homem não tem esse gosto especial!
Desceram as meninas, duas mulherzinhas. Casaram e o povo foi aumentando outra vez. O irmão, o cacique, não arrumou família logo – só bem mais tarde, quando já havia mulheres que não eram mais suas irmãs, quando suas sobrinhas cresceram.
Se não fossem essas duas irmãs, não haveria mais gente Macurap no mundo. Elas não esqueceram, ensinaram às mulheres a cantiga Koman, que tinham aprendido com a velha Katxuréu. Até hoje cantamos a cantiga Koman.
Mitologia do Povo Macurap
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