domingo, 9 de março de 2014

A RELIGIÃO, OS DEUSES E OS MITOS

Para os índios, são os mitos que contêm a verdadeira história do mundo. Os mitos não são fantasia ou ficção, e sim a explicação do universo: a origem do cosmos, da humanidade, da sexualidade, dos astros, da caça, da agricultura, das mulheres, da arte e da música, de tudo que é possível conceber. Cerimônias, festas, rezas, cantos, proibições, regras de comportamento – tudo aquilo que faz parte do que costumamos chamar de religião – têm como chão um corpo mítico, inerente ao cotidiano, sem nítida distinção entre o sagrado e o profano, familiar para todos, embora os pajés detenham um conhecimento mais profundo e a prerrogativa das viagens místicas.

Na festa de cura e invocação de abundância na colheita e no plantio, como o HOEIETÊ dos Suruí-Paiter, o Lua, um homem, incorpora-se ao pajé, cantando e contando quem é, espetáculo para a comunidade inteira. Antes de existir o Lua, ele visitava sua irmã, que morava sozinha numa pequena oca, em reclusão de vários meses pela primeira menstruação, e namoravam em segredo, sem que ela soubesse quem era ele.

Aconselhada pela mãe, enquanto ele dormia, a moça pintou-o de jenipapo, tinta negra indelével. Desvendou-se a identidade do moço na manhã seguinte, quando a mãe o viu entre os homens da aldeia. Com a vergonha pelo incesto, os dois jovens subiram aos céus e transformaram-se na Lua, um astro assim criado no cosmos: as manchas escuras são o jenipapo, marca da transgressão e da paixão.

Nos povos de Rondônia, como em inúmeros outros, os criadores do universo costumam ser um par de companheiros ou irmãos. Um deles é mais folgado e preguiçoso, sempre na rede balançando; o outro, arteiro e desastrado, inventa e prega peças, mas traz novidades para os seres humanos. Assim é entre os Aruá, com ANDAROB, menos inteligente, o de cabeça vermelha, e PARICOT, assanhado. Não havia mulheres, embora tivessem uma irmã (mistério!). Para casar, Paricot copulou com o morro de cupim e, meses depois, do fundo da terra, nasceu a humanidade, que ele soltou abrindo um buraco nas rochas. Paricot inventou a agricultura, trouxe a água, o fogo, com seu irmão sempre atrapalhando, e até morreram queimados os dois, para depois renascer. Paricot ensinou uma só língua para todos os povos; Andarob fez confusão, fez cada grupo saber uma língua diferente. Juntos criaram o adultério, transformaram gente em animais, para brincar e para ter caça, inundaram a terra, e depois consertaram as modas esquisitas que desencadearam.

Nos Macurap, nos Jabuti, nos Tupari, nos Arikapu ou Ajuru, sempre há esse jogo de opostos; não são o bem e o mal, mas se trata de uma ordem e uma brincadeira criativas. Vale a pena conhecer as suas travessuras e desastres, e saber como chegam a ser punidos pelos homens por exagerar.

Lembremos que os criadores ou demiurgos, em todos esses povos, são sempre homens, nunca mulheres. Nos Suruí, as primeiras mulheres provêm de um homem e uma cabaça; esse homem já tinha mãe, personagem acessória, não aparecendo como ser primordial.
Em muitos povos, antigamente, a morte não existia. As pessoas morriam e retornavam. O grande mal é explicado em cada lugar de um jeito.

Os Macurap contam de um homem que morreu, foi enterrado na própria oca, como era costume, mas disse à mãe que não chorasse, pois voltaria, como de fato fez, na forma de uma criança que ia crescendo aos poucos, com as batatas com que a mãe o alimentava. Quando já estava quase na forma anterior adulta, sua mãe foi à roça, e ele ficou sozinho com uma velha gulosa e exigente que não cessava de lhe pedir o alimento. Ele deu enquanto tinha, mas a batata acabou. A velha ranzinza amaldiçoou-o: "Você não tinha morrido? Por que voltou? Fique lá embaixo!" Ofendido, ele se foi para o reino dos mortos. A mãe, desesperada, seguiu-o, mas teve que morrer, mordida por um escorpião, para ficar junto dele.

Desde então os mortos se afastaram para um domínio longínquo, e têm que ser chamados pelos pajés para serem homenageados. Cada morte, hoje em dia, exige complexos rituais e dedicação dos pajés, com muita dor e tristeza de todos.

Os Tupari contam que antigamente os mortos voltavam. Um homem, Patopkiá, havia proibido as irmãs de chorarem quando morresse. Mas quando elas o viram morto, quiseram aprender a chorar, porque só sabiam assobiar, e pediram à velha Ubaiped que lhes ensinasse. A velha ensinou um canto e um choro, só que no caminho elas sempre se esqueciam.

Tropeçavam repetidas vezes, e esqueciam. Até que a velha resolveu acompanhá-las, e quando encontraram Patopkiá saindo da sepultura, foi uma choradeira de fazer medo. Ele ficou furioso, atirou pedras na velha, porque não agüentava mais a barulheira dos lamúrios, e pendurou-a no meio do rio. Desde então existe a morte, por causa dessa velha.

Nos Tupari e nos Macurap é uma cobra ou um arco-íris a ponte que leva as almas dos mortos para a esfera imaterial, cruzando um grande rio. Nos Tupari, os mortos perdem a memória, ficam como criancinhas, vão para a casa de Patopkiá, o chefe dos mortos. Antes, porém, têm que passar por duas cobras e dois jacarés estirados, e enfrentam grandes perigos. Nos Macurap, a cobra-ponte é um arco-íris, que vem buscar de mansinho os espíritos dos mortos para levá-los às alturas. Não é simples o caminho, as almas sofrem demais até chegar ao seu destino.

Faz parte da espiritualidade dos índios um leque amplo de seres fantasmagóricos, assustadores, que as pessoas temem encontrar na floresta, sobretudo quando estão sozinhas, ou mesmo quando se afastam no escuro perto das ocas, para pequenas saídas noturnas biológicas ou para namoros camuflados. Nos Macurap, o TXOPOKOD, uma aparição, vive mudando de personagem. Um deles tem o papel de amante proibido; usando apenas a mão, faz o clitóris de uma mulher casada crescer de prazer até tornar-se descomunal. Nos Tupari, é o TARUPÁ o ser maléfico, tanto assim que esse é o nome atribuído ao colonizador não-índio, que trouxe doenças e invenções tecnológicas. Um dos Tarupás toma a aparência da avó de uma criança, oferecendo de carregá-la no colo enquanto a mãe dança, e a rouba. Há uma mulher Tarupá coberta de pelos que quer namorar o caçador. O WAINKÔ dos Ajuru também parece humano e finge ser a melhor amiga de uma menina para levá-la para uma velha malvada. Nos Suruí ou nos Gavião e Zoró, o GERBAI e o ZEREBÂI podem parecer gente inimiga, ou animais estranhos, que é preciso evitar, pois querem matar. É comum o ZAGAPUY dos Ikolen engravidar moças solteiras, que se apaixonam por eles, quando assumem contornos de sedutores.

Espectros capazes de destruir, a maioria desses entes são também pouco inteligentes e podem ser enganados por índios espertos. Dois amigos Tupari convencem um Tarupá que estão esmagando os próprios testículos para comê-los como ovos ou coquinhos de tucumã. O Tarupá guloso imita-os, espoca suas bolas... e morre, doido de dor. Suas cinzas têm o poder de tornar as pessoas invisíveis. (Há um episódio parecido em Macunaíma, de Mário de Andrade). Outro Tarupá é persuadido por dois amigos Tupari, que para ter um cabelo bonito como o deles deve submeter-se a um corte com um instrumento afiado, e os dois malandros o decepam. Enganar espíritos é uma arte que vale a pena aprender.

Chamam a atenção, nas aldeias tradicionais, como nas Suruí, as inúmeras reclusões a que devem obedecer as meninas na menarca, as mulheres menstruadas, as parturientes, as pessoas de luto, os pais de nenês pequenos e os que mataram. O isolamento chega a levar meses, com restrições alimentares. Se as regras são desobedecidas, acredita-se que podem advir males para todos ou doenças para os familiares.

Muitas mortes são atribuídas à quebra de tabus, sobretudo quanto à comida. O sangue representa um perigo, como o dos recém-nascidos e suas mães. Há em toda rotina cotidiana um clima sobrenatural, a ameaça permanente de quebrar uma ordem divina ou provocar visagens. As palavras podem desencadear processos indesejáveis, provenientes do invisível. Pronunciar o nome de certos parentes, por exemplo, nos Suruí, os filhos dizerem o dos pais, ou o dos mortos, traz conseqüências funestas, como se estivessem sendo invocadas aparições. Há pios ou ruídos, trovões ou luzes, que anunciam tragédias. O cenário mais calmo, da floresta ou da aldeia, é repleto de transformações virtuais, que fazem a paz desmoronar.

Para assegurar a fartura e a tranqüilidade, a saúde, é preciso providenciar numerosas festas com bebida e comida, unindo a comunidade, trazendo os deuses e honrando-os.

Festas como nos Suruí, o MAPIMAÍ, nos Ikolen, a dos céus GARPII, a do fogo ou dos jacarés para os GOIANEI das águas, e nos povos do Rio Guaporé e Rio Branco (Tupari, Macurap, Jabuti, Ajuru e outros), as reuniões de pajés, com longo preparo de alucinógenos, fazem parte da esfera da produção e do bem-estar, ponte entre os mortais e os eternos, da qual o efêmero arco-íris é uma bela imagem.

É temerário pincelar em poucas páginas o universo místico dos índios, que só de relance conseguimos adivinhar. Não foram sequer aflorados povos muito estudados, nem rituais famosos como o de morte e criação, o Kwarup do Alto Xingu, ou o drama da feitiçaria, com sua intricada relação como mecanismos do poder político, ou as cerimônias e festas proibidas às mulheres por razões religiosas, infundindo temor e reverência em certas ocasiões. Que leitores, índios e editores, invoquem os deuses das matas e campos brasileiros, abram-lhes o infinito espaço que é deles, preparem festas grandiosas e os convidem para beber e comer, conclamando-os a descer às feiras literárias e metamorfosear-se com seus dons mágicos em livros e bibliotecas, faldas e escritas

Texto de Betty Mindlin

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