Para
os índios, são os mitos que contêm a verdadeira história do mundo. Os mitos não
são fantasia ou ficção, e sim a explicação do universo: a origem do cosmos, da
humanidade, da sexualidade, dos astros, da caça, da agricultura, das mulheres,
da arte e da música, de tudo que é possível conceber. Cerimônias, festas,
rezas, cantos, proibições, regras de comportamento – tudo aquilo que faz parte
do que costumamos chamar de religião – têm como chão um corpo mítico, inerente
ao cotidiano, sem nítida distinção entre o sagrado e o profano, familiar para
todos, embora os pajés detenham um conhecimento mais profundo e a prerrogativa das
viagens místicas.
Na
festa de cura e invocação de abundância na colheita e no plantio, como o HOEIETÊ dos Suruí-Paiter, o Lua, um
homem, incorpora-se ao pajé, cantando e contando quem é, espetáculo para a
comunidade inteira. Antes de existir o Lua, ele visitava sua irmã, que morava
sozinha numa pequena oca, em reclusão de vários meses pela primeira
menstruação, e namoravam em segredo, sem que ela soubesse quem era ele.
Aconselhada
pela mãe, enquanto ele dormia, a moça pintou-o de jenipapo, tinta negra
indelével. Desvendou-se a identidade do moço na manhã seguinte, quando a mãe o
viu entre os homens da aldeia. Com a vergonha pelo incesto, os dois jovens
subiram aos céus e transformaram-se na Lua, um astro assim criado no cosmos: as
manchas escuras são o jenipapo, marca da transgressão e da paixão.
Nos
povos de Rondônia, como em inúmeros outros, os criadores do universo costumam
ser um par de companheiros ou irmãos. Um deles é mais folgado e preguiçoso,
sempre na rede balançando; o outro, arteiro e desastrado, inventa e prega
peças, mas traz novidades para os seres humanos. Assim é entre os Aruá, com ANDAROB, menos inteligente, o de cabeça vermelha, e PARICOT, assanhado. Não havia mulheres,
embora tivessem uma irmã (mistério!). Para casar, Paricot copulou com o morro
de cupim e, meses depois, do fundo da terra, nasceu a humanidade, que ele
soltou abrindo um buraco nas rochas. Paricot inventou a agricultura, trouxe a água,
o fogo, com seu irmão sempre atrapalhando, e até morreram queimados os dois,
para depois renascer. Paricot ensinou uma só língua para todos os povos;
Andarob fez confusão, fez cada grupo saber uma língua diferente. Juntos criaram
o adultério, transformaram gente em animais, para brincar e para ter caça,
inundaram a terra, e depois consertaram as modas esquisitas que desencadearam.
Nos
Macurap, nos Jabuti, nos Tupari, nos Arikapu ou Ajuru, sempre há esse jogo de opostos; não são o bem e o mal, mas se
trata de uma ordem e uma brincadeira criativas. Vale a pena conhecer as suas
travessuras e desastres, e saber como chegam a ser punidos pelos homens por
exagerar.
Lembremos
que os criadores ou demiurgos, em todos esses povos, são sempre homens, nunca
mulheres. Nos Suruí, as primeiras mulheres provêm de um homem e uma cabaça; esse
homem já tinha mãe, personagem acessória, não aparecendo como ser primordial.
Em
muitos povos, antigamente, a morte não existia. As pessoas morriam e
retornavam. O grande mal é explicado em cada lugar de um jeito.
Os
Macurap contam de um homem que
morreu, foi enterrado na própria oca, como era costume, mas disse à mãe que não
chorasse, pois voltaria, como de fato fez, na forma de uma criança que ia
crescendo aos poucos, com as batatas com que a mãe o alimentava. Quando já estava
quase na forma anterior adulta, sua mãe foi à roça, e ele ficou sozinho com uma
velha gulosa e exigente que não cessava de lhe pedir o alimento. Ele deu
enquanto tinha, mas a batata acabou. A velha ranzinza amaldiçoou-o: "Você não tinha morrido? Por que
voltou? Fique lá embaixo!" Ofendido, ele se foi para o reino dos
mortos. A mãe, desesperada, seguiu-o, mas teve que morrer, mordida por um escorpião,
para ficar junto dele.
Desde
então os mortos se afastaram para um domínio longínquo, e têm que ser chamados
pelos pajés para serem homenageados. Cada morte, hoje em dia, exige complexos rituais
e dedicação dos pajés, com muita dor e tristeza de todos.
Os
Tupari contam que antigamente os
mortos voltavam. Um homem, Patopkiá,
havia proibido as irmãs de chorarem quando morresse. Mas quando elas o viram
morto, quiseram aprender a chorar, porque só sabiam assobiar, e pediram à velha
Ubaiped que lhes ensinasse. A velha
ensinou um canto e um choro, só que no caminho elas sempre se esqueciam.
Tropeçavam
repetidas vezes, e esqueciam. Até que a velha resolveu acompanhá-las, e quando
encontraram Patopkiá saindo da sepultura, foi uma choradeira de fazer medo. Ele
ficou furioso, atirou pedras na velha, porque não agüentava mais a barulheira
dos lamúrios, e pendurou-a no meio do rio. Desde
então existe a morte, por causa dessa velha.
Nos
Tupari e nos Macurap é uma cobra ou um arco-íris a ponte que leva as almas dos
mortos para a esfera imaterial, cruzando um grande rio. Nos Tupari, os mortos
perdem a memória, ficam como criancinhas, vão para a casa de Patopkiá, o chefe
dos mortos. Antes, porém, têm que passar por duas cobras e dois jacarés
estirados, e enfrentam grandes perigos. Nos Macurap, a cobra-ponte é um
arco-íris, que vem buscar de mansinho os espíritos dos mortos para levá-los às
alturas. Não é simples o caminho, as almas sofrem demais até chegar ao seu
destino.
Faz
parte da espiritualidade dos índios um leque amplo de seres fantasmagóricos,
assustadores, que as pessoas temem encontrar na floresta, sobretudo quando
estão sozinhas, ou mesmo quando se afastam no escuro perto das ocas, para pequenas
saídas noturnas biológicas ou para namoros camuflados. Nos Macurap, o TXOPOKOD, uma
aparição, vive mudando de personagem. Um deles tem o papel de amante proibido;
usando apenas a mão, faz o clitóris de uma mulher casada crescer de prazer até
tornar-se descomunal. Nos Tupari, é o TARUPÁ
o ser maléfico, tanto assim que esse é o nome atribuído ao colonizador não-índio,
que trouxe doenças e invenções tecnológicas. Um dos Tarupás toma a aparência da
avó de uma criança, oferecendo de carregá-la no colo enquanto a mãe dança, e a
rouba. Há uma mulher Tarupá coberta de pelos que quer namorar o caçador. O WAINKÔ dos Ajuru também parece humano e finge ser a melhor amiga de uma menina
para levá-la para uma velha malvada. Nos Suruí ou nos Gavião e Zoró, o GERBAI e o ZEREBÂI podem parecer gente inimiga, ou animais estranhos, que é
preciso evitar, pois querem matar. É comum o ZAGAPUY dos Ikolen engravidar moças solteiras, que se apaixonam por
eles, quando assumem contornos de sedutores.
Espectros
capazes de destruir, a maioria desses entes são também pouco inteligentes e
podem ser enganados por índios espertos. Dois amigos Tupari convencem um Tarupá
que estão esmagando os próprios testículos para comê-los como ovos ou coquinhos
de tucumã. O Tarupá guloso imita-os, espoca suas bolas... e morre, doido de
dor. Suas cinzas têm o poder de tornar as pessoas invisíveis. (Há um episódio parecido
em Macunaíma, de Mário de Andrade). Outro Tarupá é persuadido por dois amigos
Tupari, que para ter um cabelo bonito como o deles deve submeter-se a um corte
com um instrumento afiado, e os dois malandros o decepam. Enganar espíritos é
uma arte que vale a pena aprender.
Chamam
a atenção, nas aldeias tradicionais, como nas Suruí, as inúmeras reclusões a
que devem obedecer as meninas na menarca, as mulheres menstruadas, as
parturientes, as pessoas de luto, os pais de nenês pequenos e os que mataram. O
isolamento chega a levar meses, com restrições alimentares. Se as regras são
desobedecidas, acredita-se que podem advir males para todos ou doenças para os
familiares.
Muitas
mortes são atribuídas à quebra de tabus, sobretudo quanto à comida. O sangue
representa um perigo, como o dos recém-nascidos e suas mães. Há em toda rotina
cotidiana um clima sobrenatural, a ameaça permanente de quebrar uma ordem
divina ou provocar visagens. As palavras podem desencadear processos
indesejáveis, provenientes do invisível. Pronunciar o nome de certos parentes,
por exemplo, nos Suruí, os filhos dizerem o dos pais, ou o dos mortos, traz conseqüências
funestas, como se estivessem sendo invocadas aparições. Há pios ou ruídos,
trovões ou luzes, que anunciam tragédias. O cenário mais calmo, da floresta ou
da aldeia, é repleto de transformações virtuais, que fazem a paz desmoronar.
Para
assegurar a fartura e a tranqüilidade, a saúde, é preciso providenciar
numerosas festas com bebida e comida, unindo a comunidade, trazendo os deuses e
honrando-os.
Festas
como nos Suruí, o MAPIMAÍ, nos Ikolen, a dos céus GARPII,
a do fogo ou dos jacarés para os GOIANEI
das águas, e nos povos do Rio Guaporé e Rio Branco (Tupari, Macurap, Jabuti,
Ajuru e outros), as reuniões de pajés, com longo preparo de alucinógenos, fazem
parte da esfera da produção e do bem-estar, ponte entre os mortais e os
eternos, da qual o efêmero arco-íris é uma bela imagem.
É
temerário pincelar em poucas páginas o universo místico dos índios, que só de
relance conseguimos adivinhar. Não foram sequer aflorados povos muito
estudados, nem rituais famosos como o de morte e criação, o Kwarup do Alto
Xingu, ou o drama da feitiçaria, com sua intricada relação como mecanismos do
poder político, ou as cerimônias e festas proibidas às mulheres por razões religiosas,
infundindo temor e reverência em certas ocasiões. Que leitores, índios e
editores, invoquem os deuses das matas e campos brasileiros, abram-lhes o
infinito espaço que é deles, preparem festas grandiosas e os convidem para
beber e comer, conclamando-os a descer às feiras literárias e metamorfosear-se
com seus dons mágicos em livros e bibliotecas, faldas e escritas
Texto de Betty
Mindlin
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