Todo entardecer é saudado dos Guarani por cantos prolongados e invocações a ÑAMANDU RU TENONDÉ, o Verdadeiro Pai Primeiro. Ele é a figura central da cosmogonia das matas; representa o desdobrar de um brilho incomensuravel a surgir de uma fonte de luz fulgurante que ainda não é o sol - pois naqueles tempos primordiais, Kuarahy nem sequer existia - porém que é o fulgor do seu próprio coração. Desconhecidos ainda os dias e as noites, o único manancial de luz era o que refletia o py'aguassu (grande coração) de Ñamandu.
Os anciãos contam às gerações mais novas, em volta do fogo, que no seio das trevas primigênitas - Pytu yma - antes da existência do céu e da terrra, surgiu a Grande Escuta chamada Ñamandu. E durante sua passagem, com o desdobrar do corpo de Ñamandu, foram se desenvolvendo miríades de maravilhas: o sol, a lua, as estrelas e todas as luminárias, as grandes árvores e as plantas, as fontes e os córregos, os mares, as montanhas e as colinas, e todas as demais manifestações irrompendo aos borbotões, incessasntes. E do desobrar de Ñamandu foram emanados também todos aqueles que seriam os companheiros da sua divindade. Cada ser, ao surgir, cantando sua própria melodia, exalando seu próprio aroma.
Todos os ñanderu (sábios, sacerdote, curandeiro) afirma que a dádiva maior do desenrolar de Ñamandu é a FALA, embutida no âmago de cada habitante da mata. Essa preeminência da oalavra-revestida-de-alma é notável em toda a cosmogonia Guarani. Contam esses sábios que o peito de Ñamandu foi parindo melodias sem fim, desabrochando em lumiárias celestes, em rios e colinas, em chuvas e ventos, em todas as formas pulsantes de vida. Foi assim que a Linguagem Sagrada espalhou-se em todas as direções, nessse ímpeto gerador que, em determinado momento, fez surgir as quatro forças primordiais da vara-cetro que Ñamandu leva nas mãos, como símbolo do surgimento espontâneo dos seres. Cada força manifesta-se como uma deidade, com sua companheira, incumbida de uma tarefa específica, continuamente sendo cumprida no ciclo a brotar, infinito, do seio das trevas.
Sobre essas forças primeiras há várias versões. A mais comum fala que os ancestrais divinos mais importantes são os que assinalaram os quadro cantos do mundo:
JAKAIRA RU ETÉ e sua esposa YSAPY, portadores da neblina vivificante, do orvalho e da primavera, fonte de vida para todos os seres, cujo reino se estende ao leste do mundo.
KUARAHY RU ETÉ e sua esposa JACHUKÁ, portadores da luz, desenvolvem o brilho maior; seu reino abrange o norte, de onde projetam as ondas quentes de seu bafo.
KARAI RU ETÉ e sua esposa KERECHU, portadores do fogo e das chamas, contém as labaredas em suas manifestações visíveis, vivificam todos os seres em seu caminhar, e seu reino se alastra para o oeste.
TUPÃ RU ETÉ e sua esposa PARÁ, portadores da água, dos trovões, dos relâmpagos e das tempestades, irrompem, implacáveis, em estrondos e raios, e seu reino se espalha pelos espaços do sul.
O zênite, o meio-do-céu, é a morada de ÑAMANDU e sua esposa ÑANDECY.
O símbolo dessa cosmogonia é a CRUZ GUARANI, de braços iguais dentro de um círculo - o YVYRÁ JOAÇÁ RECÓ YPÝ. Ela representa as quadro direções, os quatro cantos do mundo, que se desdobram a partir do meio.
Os pensamentos vão desfiando uma trilha de brilho contínuo, semelhante à senda que Jacy (o Lua) lança sobre as águas, no plenilúnio: será que as emanações de Ñamandu foram recendo a consciência das divindades, gerando poesias? Seria esta a fonte inspiradora dos seus filhos diletos? Os antepassados divinos devem certamente zelar para repartir as suas dádivas entre seus amados filhos, homens, e entre suas amadas filhas, as mulheres.
A neblina vivificante de Jakaíra, o calor irradiande de Kuarahy, as chamas flamejantes de Karaí e as águas refrescantes de Tupã: estas quatro forças certamente são as que constituem o fundamento do bem-estar humano. Através desses sublimes dons, ao ser humano é dado o privilégio de se erguer e de caminhar e, mais ainda, lhe é concedida a dádiva maior: a sua FALA. Receptáculos de tantas bem-aventuranças, a relação entre os humanos e seus ancestrais só pode ser a de solidariedade e amor. E para retribuir tantas dádivas recebidas, o seu primeiro dever seria depurar a sua fala: está é uma tarefa sagrada! Todas as outras, se comparadas, carecem de relevância. Pois é a expressão verbal que comprova o pulsar da origem divina. Cada ser é embalado por uam voz só sua, é dotado de uma imaginação própria, de modo a poder transitar em espirais de melodias. O DIZER de um ser humano é primordial!
Os quatro pilares essenciais da vida foram se posicionando naturalmente, cada qual na direção que melhor lhe convinha, de modo a sustentar o desenfreado fluxo de tantos fenômenos palpitantes surgindo num emaranhado estonteante de sons, texturas e aromas entrelaçados. Ao centro da torrente estrepitante brotou PINDOJU, a palmeira sagrada, para orientar os quatro primeiros Pais da Palavra.
Baseado no texto de Yara Miowa, no livro "Kuarahycorá - O Círculo do Sol"
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