Segundo
os Mbyá-Guarani, antes da Terra Atual (yvy
pyau), existiu uma outra, um primeiro mundo, chamado yvy tenondé, que foi destruído pelo dilúvio (iporum). A yvy tenondé
era perfeita e habitada pelos deuses. Mas um incesto entre dois dos principais
personagens cosmológicos Mbyá-Guarani despertou a ira das demais divindades,
que acabaram destruindo a Primeira Terra. Os Mbyá-Guarani já existiam quando
ocorreu o iporum. Com a destruição da
yvy tenondé foi criada a Terra Atual,
yvy pyau, para os Mbyá-Guarani
viverem e, junto com a Nova Terra, foram criadas todas as condições necessárias
para a sobrevivência dos Mbyá-Guarani, inclusive os alimentos que hoje eles
consideram tradicionais.
A
história de Kuaray e Jaxi, tidos como irmãos, embora o
primeiro tenha cirado o segundo, é um dos mitos fundadores da cosmologia
Mbyá-Guarani, no qual são definidas algumas divindades e estabelecidas suas
posições no cosmo. O mito narra uma grande aventura que é finalizada com os
irmãos caminhando pelo mundo que acabaram de criar – yvy pyau – e denominando as coisas, com ênfase na nominação dos
alimentos.
Resumindo
o mito: a mãe de Kuaray (o futuro Sol), quando grávida, se põe no caminho a
procura do pai de Kuaray. De dentro do ventre da mãe, Kuaray vai indicando o
caminho correto que devia ser seguido. No caminho Kuaray pedia para que sua mãe
lhe colhesse algumas flores. Kuaray era então “criança” e sempre tinha os seus
pedidos atendidos. Numa das flores solicitadas havia um zangão que picou sua
mãe. Esta ficou irada com Kuaray, julgando que a culpa era do filho que havia
lhe pedido aquela flor e acabou batendo em sua própria barriga. Então, Kuaray
parou de indicar o caminho correto que eles deveriam seguir. Tomando o caminho
errado, eles foram parar na morada dos jaguares. Chegando lá só havia uma
jaguar velha em casa, que lhes disse para não ficarem ali para não serem
comidos por seus filhos, que logo retornariam. Só que a mãe de Kuaray não deu
ouvidos à velha e ficou lá. Então, voltaram os filhos da velha Jaguar e comeram
a mãe de Kuaray. Estes separaram o feto para que a velha jaguar comesse, mas
não conseguiram matar Kuaray, mesmo apões várias tentativas. Sendo assim, a
velha jaguar decidiu criar Kuaray. Ele criou o primeiro arco e fez três
flechas, passando a caçar para alimentar a velha jaguar, que então ele julgava
ser a sua mãe. Aliás, com a caça ele alimentava toda a família dos jaguares.
Depois Kuaray criou um irmão para ele, o Jaxy (futuro Lua). Ambos vão caçar em
uma ilha distante, desrespeitando as ordens da jaguar que julgam ser sua mãe.
na ilha tentam matar um papagaio que lhes conta que a jaguar não é a mãe deles,
que na verdade a jaguar comeu a sua progenitora. Entoa Kuaray e Jaxy, com ajuda
do lobo marinho, construíram uma ponte-armadilha. Quando os jaguares estavam
atravessando a ponte os dois irmãos a derrubaram, jogando os jaguares na água.
Porém, nem todos morreram afogados e o plano dos irmãos de extinguir os
jaguares fracassou. Assim, eles decidiram sair de perto dos jaguares procurando
seu pai, morador de uma outra comunidade. No caminho, os irmãos vão dando os
nomes para as plantas e animais, nomeando também os alimentos. Só depois é que
o Sol e o Lua vão para o céu, partilhando a função de iluminar o mundo. O Sol,
mais velho e poderoso, ilumina o dia. O Lua, irmão menor e não tão poderoso
quanto o Sol, ilumina a noite. Mas o Lua, mais fraco, fica cansado e tem que
descansar. É por isso que existem as fases “do Lua”.
Os
Mbyá-Guarani possuem duas porções de alma: uma sagrada e outra telúrica. A alma
sagrada é chamada ñe’e e significa, literalmente, alma-palavra. Na
linguagem Mbyá-Guarani os termos “alma” e “palavra” tem o mesmo significado, o
mesmo valor semântico. O ñe’e é a
alma e a palavra, a fala dos Mbyá-Guarani é a expressão de sua alma. Os pais
das almas-palavras, divindades chamadas ñe’eng ru eté enviam uma nova ñe’e para esse mundo quando cada nova
criança Mbyá-Guarani é concebida. Do nascimento de uma criança os Mbyá-Guarani
dizem que a alma-palavra tomou assento. Quando a criança, com cerca de um ano,
começar a falar (expressão da alma palavra) e andar (manter erguido o fluir de
seu dizer), ela será batizada – no ritual do nimongaraí. Neste momento
o nome da criança será revelado pelo karai
(xamã). O nome da criança tem a ver com o ñe’eng ru eté que enviou a ñe’e
dela. Para cada ñe’eng ru eté existe
um conjunto de nomes que podem ser dados à criança.
É
interessante que o Mbyá-Guarani não possuiu simplesmente um nome; ele é o próprio
nome. O nome é sua ñe’e. Como
escreveu Cristian Pio Ávila, “um Mbyá não
se hcama Karaí, por exemplo, ele é
Karaí, ele é o próprio nome” (Avila, 2005). E este nome veio de uma
divindade que tem um lugar preciso no cosmo Mbyá-Guarani, correspondente a uma
direção ordenada segundo os pontos cardeais. Por exemplo, os ñanderu kuéry (filhos de Ñanderu) moram
na direção leste, no nascente; já os tupã
kuery (filhos deTupã) moram no outro lado, onde o sol se esconde, no oeste;
os karai kuéry se encontram no leste,
relacionados com o paraguaçu, o
grande mar, isso também pode ser aplicado aos alimentos.
Voltando
aos alimentos Mbyá-Guarani e à narrativa sobre a aventura vivida pelos irmãos Kuaray e Jaxy, ao abandonarem a morada dos jaguares, ao iniciarem uma nova
vida longe da “animalidade”, os irmãos vão pelo “caminho” nomeando as coisas
que encontram, com destaque para os alimentos. Tem-se, então, que neste momento
mítico, ao nomear os alimentos, Kuaray
e Jaxy também os estão dotando de
almas. O que tem nome tem alma! O nome é a alma. E, mais do que isso, os irmãos
estão designando a divindade correspondente a cada alimento, com seu local de
origem, sua posição precisa no cosmos.
Isso
tudo ocorreu na transição da Primeira Terra (yvy tenonde) para a segunda (yvy
pyau). Os Mbyá-Guarani não costumam falar sobre o seu sistema xamânico
cosmológico com indivíduos que não pertencem ao seu grupo – ou o fazem de forma
muito ponderada. Por isso os dados sobre a transição entre as duas Terras estão
repletos de lacunas. Porém, cruzando informações entre vários autores, é
possível dizer que na Primeira Terra os Mbyá-Guarani eram deuses. Contudo,
existia uma hierarquia entre estes deuses. Isso se encaixa nas informações
apresentadas por Leo Cadogan (1997), Pierre Clastres (1990) e Hélène Castres
(1978). Segundo estes autores, na ocasião do iporum (dilúvio), a maioria dos seres que habitavam a Primeira
Terra “ascenderam” ao mundo sobrenatural. Os seres que não levavam uma vida
virtuosa foram deslocados para uma nova Terra, a Segunda Terra, que é a Terra
Atual, chamada yvy pyau. Os seres em
questão seriam os Mbyá-Guarani. Esta Segunda Terra foi criada especialmente
para dar uma nova oportunidade aos Mbyá-Guarani “ascenderem” ao mundo
sobrenatural. Esta é a razão da existência da Terra Atual.
Assim,
os Mbyá-Guarani estão nesse mundo – yvy
pyau – passando por uma espécie de prova (H. Clastres). Caso se portem em
conformidade com os anseios divinos, também se tornarão deuses. A Terra Atual é
imperfeita e habitada por seres também imperfeitos. O interessante é que nessa
Terra imperfeita é que os Mbyá-Guarani buscam se transformarem em seres
perfeitos. É o aguyje, estado de
perfeição do ser, que possibilita a passagem deste mundo para o sobrenatural,
ou a passagem para a divindade. Mas, mesmo habitando o mundo imperfeito, os
Mbyá-Guarani se nutrem com alimentos perfeitos. Alimentos estes que foram
criados pelos deuses e que alimentavam as divindades – muitos destes alimentos
inclusive já existiam na yvy tenonde
e foram simplesmente deslocados para a Terra Atual. Os deuses, “mandaram” estes
alimentos para a Terra Atual para que os Mbyá-Guarani possam atingir a
perfeição. Para serem perfeitos é preciso que comam alimentos perfeitos. Para
serem deuses é preciso comer o alimento dos deuses.
Pode
parecer um castigo divino o fato dos Mbyá-Guarani terem sido enviados para este
mundo a fim de passar por uma espécie de prova, mas não é um castigo. Ao
contrário, é uma bênção. É uma nova chance que os deuses generosos estão dando
aos Mbyá-Guarani para que eles também se tornem deuses. E, para tanto, os
deuses enviaram para este mundo, junto com os Mbyá-Guarani, os alimentos que
auxiliam nesta empreitada. Os Mbyá-Guarani sempre destacam esta generosidade
dos deuses e a gratidão para come lês. Trata-se de uma relação diferenciada com
as divindades, que nenhum outro tipo de ser desse mundo possui. Ocorre que,
como já havia sido destacado por Hélène Clastres e Pierre Clastras sobre a
mitologia guarani em geral, os Mbyá-Guarani gozam do status de “escolhidos”
pelos deuses, pois foram eles os primeiros a receber o adorno de plumas.
Os
Mbyá-Guarani vivem neste mundo – yvy pyau
– com os alimentos criados pelas divindades, porém as divindades responsáveis
pela alma desses alimentos encontram-se no mundo sobrenatural. Estas divindades
são geralmente designadas pelos Mbyá-Guarani como os JÁ dos alimentos – que em
tradução literal siginifica “donos”
ou “protetores”, como observou Ramón
Fogel (1998). Então, os alimentos estão em um mundo, mas seus donos, seus
controladores ou protetores residem em outro. Desta forma, o cultivo de
qualquer alimento tradicional pelos Mbyá-Guarani passa obrigatoriamente pelo
domínio do sobrenatural, por um respeito às prescrições divinas. Ocorre que ao “dispor”
os alimentos na yvy pyau, os deuses
também estabeleceram as formas que estes devem ser cultivados.
Cada
espécie tem a sua forma peculiar de cultivo, em consonância com o estabelecido
pelo seu já. O respeito às técnicas
prescritas é um dos determinantes do caráter sagrado dos alimentos
tradicionais. O alimento não é sagrado apenas por ser originário dos deuses,
mas é sagrado porque ele, também, é cultivado segundo as técnicas ensinadas
pelos deuses. E os Mbyá-Guarani vêm mantendo essas técnicas desde tempos imemoriais
– eles preservam as sementes das suas plantas tradicionais a partir da
aplicação de técnicas tradicionais de cultivo. Essas técnicas são dominadas por
todos os indivíduos do grupo: homens e mulheres, até mesmo crianças, demonstram
profundo conhecimento sobre elas – muito porque todos os Mbyá-Guarani colaboram
nas tarefas de obtenção dos alimentos.
Em
linhas gerais, que se aplicam a todas as espécies da horticultura Mbyá-Guarani,
pode-se observar uma ausência de limites rígidos entre os roçados, a mata e o
espaço denominado como “pátio” das casas e/ou aldeia. As tekoá (aldeia) Mbyá-Guarani são constituídas de um espaço contínuo,
com zonas de transição onde os três ambientes se fundem ou se confundem. Não há
fronteiras entre os diferentes ambientes, mas sim um ambiente interpenetrado no
outro. Isso não ocorre apenas nas suas roças, mas também em todo o espaço
ocupado pelos Mbyá-Guarani. A espacialidade por eles construída não apresenta
limites rígidos, não existindo fronteiras fixas entre um espaço e outro. Tudo é
contínuo, fluído, tênue. Um ambiente não acaba em um determinado lugar e
pronto. Ele vai acabando aos poucos, vai se metamorfoseando em um outro,
através de zonas de transição que compreendem mistos de dois ou mais ambientes.
Assim, o pátio de uma casa se estende e se confunde com o pátio da outra, que
se confunde com as roças de um produto, com as roças de outro produto, com o
campo, com o mato, etc., ao mesmo tempo em que tudo é caminho.
Diferente
dos “nossos” modelos de plantio, nas roças dos Mbyá-Guarani não existem linhas
retas. Os contornos do roçado seguem as inclinações do terreno, sendo que a
limpeza da vegetação da área é feita apenas nas áreas mais planas. Geralmente
os Mbyá-Guarani também optam por não avançar os seus roçados por áreas onde a
vegetação é de difícil remoção. Sendo assim, os contornos dos roçados são
extremamente sinuosos. Se é que se pode falar em contornos, uma vez que as
áreas se interpenetram – o mato avança entre as roças e as roças adentram um
pouco o mato; os roçados avançam sobre os pátios das casas e vice-versa. Onde são
semeadas as plantas, parece que as sementes são distribuídas de modo aleatório
no solo – porque não são semeadas em linhas. Mas existe toda uma ciência nesta
distribuição. São formas que, segundo os Mbyá-Guarani, garantem um melhor
aproveitamento do terreno, bem como a máxima rentabilidade das espécies
cultivadas. Além disso, as plantas devem ser semeadas de maneira que se sintam “felizes
umas com as outras, se plantar muito perto ela não fica alegre”. E, estas
formas de plantio foram ensinadas por Ñanderu.
Também
é característico dos roçados Mbyá-Guarani que diversas espécies partilhem a
mesma área. Numa primeira olhada, tudo parece um caos, várias plantas
misturadas, aparentemente sem nenhuma lógica. Abóboras crescem entre pés de
mandioca. Batatas-doce entre pés de milho. Melancias são semeadas no meio da
plantação de aipim. E assim por diante. Sem falar nos tocos remanescentes da
limpeza do terreno. Ser para “nós”, no estanhamento, tudo parece caos, para os Mbyá-Guarani
é o modelo perfeito. Inclusive esteticamente perfeito – o bonito são as plantas
“misturadas”. Os diferentes tipos de plantas que podem dividir o mesmo espaço,
o período de plantio de cada uma delas, o distanciamento entre elas, etc., tudo
segue uma ciência secular, prescrita pelos deuses. E esta distribuição peculiar
de plantas no terreno é que confere a tradicionalidade, a sacralidade e a “gostosura”
dos laimentos Mbyá-Guarani
Os
cultivos Mbyá-Guarani também se caracterizam pela ausência de adubos,
agrotóxicos e irrigação. Estes são desnecessários. Os alimentos são criações
dos deuses e são plantados como as divindades ensinaram aos Mbyá-Guarani. Além disso,
os deuses (os já de cada alimento) também são responsáveis pelo crescimento
das plantas. Esta estreita ligação dos Mbyá-Guarani com as suas divindades faz
com que todas as etapas da alimentação, desde o plantio até o consumo, sejam
marcadas pro inúmeros ritos. O plantio tem início com ritos na opy – casa de rezas –, quando os Mbyá-Guarani
solicitam aos deuses o crescimento das plantas. As sementes que serão plantadas
participam deste rito – que alguns Mbyá-Guarani traduziram como o “batismo das
sementes”. Depois, enquanto as plantas crescem na roça, outros ritos se
repetem, também visando a produção dos alimentos. Por fim, após a colheita,
período de festas entre os Mbyá-Guarani, novos ritos são feitos para agradecer
os alimentos obtidos. Isso é muito significativo, pois o sucesso ou fracasso na
produção dos alimentos está relacionado com o sucesso ou fracasso na execução
dos rituais, na comunicação com os já
das plantas. E os já das plantas
possuem uma porção sua nas próprias plantas. Desta forma, como conclui Fogel
(1998), para que as rezas (os ritos) produzam efeitos, elas precisam escutadas
pelas plantas e pelos seus protetores sobrenaturais. Se os Mbyá-Guarani fizerem
os ritos corretamente, não irão lhes faltar alimentos. Assim, irrigação, adubo
e/ou agrotóxicos não fazem sentido entre os Mbyá-Guarani. Basta “rezar” para
que as plantas cresçam. Realizando os ritos corretamente, é certo que os deuses
farão as plantas crescerem. Não tem erro! Tanto é que alguns Mbyá-Guarani, ao
falar desses ritos, afirmam que “mandam” as plantas levantarem.
Os
deuses – e os já de cada alimento –
integram um verdadeiro sistema de colaboração entre eles para tornar possível a
alimentação dos Mbyá-Guarani. Este é um ponto bastante delicado de ser
abordado, posto que os Mbyá-Guarani, com o intuito de preservar a sua cultura e
evitar estigmatizações, entre outros motivos, evitam falar sobre os eu sistema
xamânico-cosmológico com os Juruá. E,
nas poucas vezes que fizeram, geralmente apresentam um discurso medido, um
misto de explicação (para pontuar a identidade étnica), simulacro e ocultação
(para evitar estigmatizações). Quando os Mbyá-Guarani falam sobre as suas
divindades, geralmente mencionam apenas o nome de Ñanderu. Este é a principal divindade dos Mbyá-Guarani, geralmente
referido como “nosso pai eterno”. O fato de mencionar apenas o nome de Ñanderu e a ele atribuir as
características e funções de todas as outras atividades e, para os Mbyá-Guarani,
uma forma de simplificar as explicações para os Juruá. Como os Juruá são
monoteístas, nada mais lógico, aos olhos dos Mbyá-Guarani, do que tentar traduzir
o seu sistema xamânico-cosmológico nesses termos. Além disso, resumindo todo o
seu sistema a uma única divindade, eles estão, de certa forma, impedindo que os
Juruá dominem suas crenças e, assim,
protegem a sua cultura e evitam estigmatizações. Ou seja: “pros brancos não
entender”. Desta forma, tudo é Ñanderu.
Quem criou o milho? Ñanderu. Quem
ensinou a plantar? Ñanderu. E assim
por diante... Entretanto, os Mbyá-Guarani são politeístas. Qualquer pesquisador
que tenha uma vivência mais constante com eles observa facilmente que além de Ñanderu, existem Tupã, Jakaíra, Ñamandu (que também é um Ñanderu), entre muitos outros. Os kuery (grupos de indivíduos) encontrados
nas tekoa Mbyá-Guarani também existem
no domínio sobrenatural. Os já também
estão agrupados em kuéry. E existe
uma hierarquia entre esses deuses, sendo que o – digamos – “líder” de todos é Ñanderu. Só que são milhares – ou talvez
milhões – de deuses no panteão Mbyá-Guarani, pois muitos Mbyá-Guarani já se
tornaram deuses. Todos bem posicionados na linha hierárquica. Os Tupã kuéry, por exemplo, são inúmeros
seres que habitam o mundo sobrenatural e que estão subordinados a Tupã. Os Jakaíra kuéry, todos subordinados a Jakaíra. E assim por diante. O interessante é que essa hierarquia
se estende até os Mbyá-Guarani que habitam este mundo, deuses em potencial.
Então,
se é fato, como os Mbyá-Guarani costumam afirmar, que todos os seus alimentos
tradicionais foram criados por Ñanderu,
também é fato que os irmãos Kuaray e Jaxy dotaram estes alimentos de um nome,
de uma alma, e com isso estabeleceram as divindades que são os já dos alimentos. Como afirmou certa vez
um Mbyá-Guarani: “toda comida tem seu
dono... o seu próprio”. Assim, o milho tem um “dono”, o feijão outro, etc.
São seres espraiados na hierarquia sobrenatural. A estes deuses específicos, o
ao conjunto de deuses subordinados aos “donos” dos alimentos, que os Mbyá-Guarani
dirigem os seus ritos. Mas os ritos podem ser dirigidos diretamente a Ñanderu, que é o “chefe” de todos os já. Funciona mais ou menos assim: caso
um já não esteja atendendo as preces
dos Mbyá-Guarani, o jeito é “reclamar” com o chefe desse já. Então o sucesso no cultivo de cada diferente espécie alimentar
depende da correta execução dos ritos, da perfeita comunicação com os já e do bom “relacionamento” entre ambas
as partes. Isso explica, segundo os Mbyá-Guarani, porque num mesmo período e
terreno um cultivo pode render muito enquanto outro, quase nada. A safra de
milho pode ser boa enquanto a de feijão, má. É porque são alimentos com “donos”
diferentes.
O
poder, a força vital e as características dos deuses se estendem para as
espécies vegetais das quais eles são “donos”. É como se um pé de milho fosse
uma parcela da divindade “dona” dele. Como já exposto, a alma é o nome, e o
nome é o próprio ser. Por exemplo, um Mbyá-Guarani não se chama simplesmente
Verá; ele É Verá. E, aplicando isso às plantas, temos que os alimentos cultivados
nas roças são alma/nome/planta. A alma de uma planta é “uma parte” do seu já. Ou, simplesmente, a alma é o já. Assim, é interessante notar que a
roça, para os Mbyá-Guarani, é um espaço extremamente importante, digno de todas
as atenções. A roça é um ambiente onde a força e o poder sobrenatural se fazem
presentes – grosso modo, as divindades estão plantadas lá. Considerando as
características da horticultura Mbyá-Guarani, onde várias espécies dividem o mesmo
terreno, podemos especular que a força de diversos “donos” se fundem neste
ambiente. Se por um lado misturar espécies é aumentar o rendimento dos
alimentos cultivados pela “cooperação” entre as diferentes plantas, por outro
lado, ao semear diferentes plantas (com diferentes já), os Mbyá-Guarani estão aumentando o leque de forças
sobrenaturais que incidem sobre o terreno. Enfim, a roça é um lugar “sagrado’
para os Mbyá-Guarani.
Nesse
complicado quebra-cabeças de relação e colaboração de diversos deuses “donos”
das espécies na produção dos alimentos Mbyá-Guarani, destaca-se o papel de Tupã e/ou dos Tupã kuéry. Eles são “donos” de vários elementos da natureza,
inclusive alimentos. Tupã é geralmente
mencionado pelos Mbyá-Guarani como o já
da chuva. E tal qual acontece com os alimentos, Tupã é a própria chuva. Sendo assim, neste contexto de colaboração
entre deuses, Tupã é um colaborador
importantíssimo na criação e produção dos alimentos dos Mbyá-Guarani. Antes de
qualquer alimento ser criado, houve o aparecimento de Tupã, a chuva. Até hoje, para que qualquer planta brote, é
indispensável o aparecimento de Tupã.
Esse quando Guarani fizeram a rocinha e
não tem facão, bateram com esse pauzinho, bateram taquarinha, quebrando,
quebrando tudo e depois secou e depois botaram foguinho e queimaram bem
queimadinho e depois só cinza... Só virou cinza. Olhavam... O eu vamos plantar?
O que vai ser, né? Pensando. O Karaí... o Karai que pensava. Kuña-karai
pensava. E depois veio a chuva, a chuva forte, e... Derrampa os tronos, o
Ñanderu, o Tupã. Chove bastante e depois choveram dois dias. Chuva forte. E depois
passou e durava mais ou menos quatro, cinco dias. E depois eu caminhava, depois
de passar o tempo chuvoso, a dona da rocinha, né? Não foi plantado não. Eles nasceram
por si.
Ai despejaram Tupã. Ai depois outro
parte tem... Nasceram melancia. Depois outro parte nasceram abóbora. E, e assim
(...) já achava importante e... Cuidava aquele, cuidava muito, muito, muito, e
depois grande tem (...) Grande e depois no fim granando, que já tem grão. Quando
seco, juntamos aquele, não comeram, e depois acha bonito, espiga bonita, deixou
para semente, aí brotou de novo.
É a chuva! Tupã é o deus que tá no trono
e se derrampa, né? Derrampa e faz o trono e semia algum parte que quer bem o
deus. É ele que traz semente. Então esse ai que o governo não querem
compreender... Só de... Queria que compreendesse... Do fundo, do fundo do
corpo, do fundo dos cadáveres do ar, e quando na conversa, da sabedoria que ele
podia espalhar por todo o mundo. Ele não pensa pro índio. É isso ai. Tô dizendo
essa maneira porque eu sei (Mbyá-Guarani, 2005)
O
interessante do trecho acima é que Tupã
colaborou com as outras divindades para o surgimento das primeiras plantas e
desde então colabora – com outros já –
para a reprodução destas plantas. Outro fato interessante é que, pela
narrativa, desde o princípio os Mbyá-Guarani praticam o modelo horticultor que
eles chamam de tradicional – limpando o terreno e queimando os restos da
vegetação. E, mais interessante ainda, a forma tradicional de preparar as roças
surgiu antes mesmo de serem criadas as plantas tradicionais.
Tupã (ou
os Tupã kuéry) também é colaborador
nos alimentos de origem animal. Ocorre que, segundo os Mbyá-Guarani, toda água
que existe nesta terra é oriunda da chuva e todo animal precisa de água para
sobreviver. Assim, Tupã é fundamental
em toda a alimentação Mbyá-Guarani. E, como os Mbyá-Guarani também precisam
consumir água para sobreviver, Tupã é
condição necessária para a sobrevivência deles neste mundo. Sem a colaboração
de Tupã, não haveria água para beber,
para o crescimento dos alimentos cultivados nas roças e dos coletados nas
matas, para o crescimento dos peixes e animais caçados. Em suma, sem Tupã não haveria alimentos. E isso
também se aplica aos outros inúmeros já
dos alimentos Mbyá-Guarani. É por isso que os Mbyá-Guarani precisam manter um
bom relacionamento com os diferentes já,
preposto dos deuses. E esse bom relacionamento passa por uma boa comunicação
ritual.
Portanto,
cada planta cultivada pelos Mbyá-Guarani em suas roças possui uma posição
precisa na cosmologia Mbyá-Guarani, uma alma. Isso faz com que a “reza” – como falam
os Mbyá-Guarani para os Juruá compreenderem
– seja um dos elementos das técnicas de cutlivo.
Texto de
Mártin César Tempass,
in
“Quanto mais doce, melhor – um estudo antropológico das práticas
alimentares da doce sociedade Mbyá Guarani”