Como
acontece com a grande maioria dos países, na contemporaneidade, o Brasil é um
país construído a partir de processos de hibridismos culturais: o português, o
banto, o suruí, o tembé, o japonês, o italiano, o alemão, o ribeirinho, o
caboclo, o caiçara... Lamentavelmente e “naturalmente”, a história, desde 1500,
é contada apenas pelo foco narrativo de quem estava no poder. Do início da
colonização européia até os nossos dias, a história viveu e vive sob a ditadura
do olhar do colonizador e da palavra escrita ocidental, européia, branca.
Não
é possível pensar, no entanto, que existiu um único sujeito particular que
planejou o sistema colonial. Nem mesmo uma única instituição ocidental pode ser
responsabilizada individualmente. O colonialismo europeu, tanto na América como
em outras partes do mundo, se impôs a partir de uma multiplicidade de
interesses. Os Estados europeus, com seus exércitos e seus anseios de se
tornarem impérios, as grandes empresas que começavam a surgir e desejavam abrir
novas frentes de exploração econômica e a Igreja Católica com o objetivo de
aumentar o rebanho de Deus são alguns dos mais visíveis fatores que
impulsionaram as práticas coloniais. E cada uma destas instituições, com suas
práticas sociais, foi fundamental para que a ordem discursiva da colonização
européia se estabelecesse na América.
A
participação da Igreja Católica foi efetiva no processo de colonização da
América. Em muitos momentos, inclusive, foi decisiva sua atuação entre as
sociedades indígenas. Não por acaso, a primeira atitude dos comandantes, quando
tomavam posse das novas terras, era mandar rezar a “primeira missa”. São fartas
as narrativas sobre estas primeiras missas e há muitos quadros pintados sobre
elas. Estas referências são frequentemente citadas nos livros de história como
o marco inicial da colonização.
Várias
ordens religiosas intermediaram a relação das sociedades indígenas com o
Estado, a princípio o português e depois o brasileiro. A maneira como os
religiosos se comportaram ao logo destes séculos é bastante variável. Se por um
lado houve e há religiosos comprometidos com a causa indígena, por outro, a ação
da grande maioria foi e é no sentido de alterar as tradições indígenas e
estabelecer uma nova ordem discursiva, onde não há espaço para os rituais
religiosos indígenas e a atuação dos pajés continua sendo intensamente coibida.
Ainda
que na prática a Igreja Católica tenha em muitos momentos da história colonial
se afastado dos ideais de justiça social, o cristianismo sempre colocou em
circulação discursos relacionados à humildade, à igualdade entre os homens. A
forma violenta como o sistema colonial se impunha era, por isso, contraditória em
relação a estes ideais. A ação da Igreja no processo de colonização não se
justificava apenas pela conquista de novas terras, como acontecia em relação
aos Estados europeus.
No
século XVI, os genocídios praticados pelos espanhóis, na América, começaram a
ser denunciados na Europa por alguns religiosos que cumpriam o papel de
defensores da justiça social cristã, como foi o caso do incansável Frei
Bartolomeu de Las Casas. Tanto os reis de Castela, quanto o Papa foram
obrigados a se pronunciar sobre a questão. Mas, a própria Igreja se incumbiu de
encontrar justificativas para as chacinas promovidas pela violência da
colonização. Profanos, infiéis, idólatras, ateus. Quem não se convertesse merecia
o peso da mão do colonizador. Eduardo Galeano explica (1983: 25):
Entretanto, alguns teólogos protestaram
e a escravização dos índios foi formalmente proibida ao nascer do século XVI.
Na realidade, não foi proibida, mas abençoada: antes de cada entrada militar,
os capitães de conquista deviam ler para os índios, sem intérprete, mas diante
de um escrivão público, um extenso e retórico ‘Requerimiento’ que os exortava a se converterem à fé
católica: “Se não o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos
que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e vos farei guerra
por todas as partes e maneiras que puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência
da Igreja e de sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei
escravos, e como tais vos vendereis, e disporei de vós como Sua Majestade
mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder...”
Este
Requerimiento, um texto escrito, lido
em uma língua desconhecida para os índios, efetivava o poder da palavra, pois
ainda que não conhecessem a língua, o que acontecia depois era bastante
evidente. Podemos interpretar este documento como uma metáfora da colonização,
que era escrita, cristã e justificavelmente
violenta. A Igreja se valeu deste dispositivo para justificar seu apoio à
violência colonial. Afinal, que direitos poderiam ter pessoas que não aceitavam
Deus e se negavam a obedecer ao mando real?
Em
relação à escravidão dos índios, a Igreja também precisava de justificativas.
Os religiosos se valeram das determinações papais que haviam resolvido a
questão da igualdade social em relação às sociedades africanas, estas
determinações estabeleciam que o “negro” não era considerado gente para a Igreja
Católica. Diante das incertezas sobre as populações da América, para aprovar as
atitudes colonizadoras, os religiosos se valeram deste artifício e passaram a
chamar os índios de negro. Então, é comum encontrar em textos jesuíticos do
século XVI a palavra “negra” sendo usada para se referir aos índios. As pessoas
que formavam as sociedades africanas eram consideradas animais e os jesuítas
colocavam os índios nesta mesma categoria. No fragmento a seguir do “Diálogo da Conversão do Gentio”, a
palavra “negro” se refere a “índio” e aparece também a relação com os animais:
Não há homem que em toda esta terra, que
conheça estes, que diga outra cousa. Eu tive hum negro, que criei de pequeno.
Cuidei que hera boom chrsitão e fugiu-me pera os seus: pois quando aquele não
foi boom, não sei o que seja. Não hé este que sôo me faz descomfiar destes
serem capa do bautismo, porque não fui eu sôo o que criei este corvo; nem sei
se hé bem chamar-lhe corvo, pois vemos que os corvos tomados no ninho secrião
se amasão ensinão e estes mais esquecidos da criação que os brutos animais e
mais igratos que os filhos das biboras que comem suas mãis, nenhum respecto tem
ao amor e criação que se faz neles. (NÓBREGA: 2006, 6-7)
No
início do século XVI, alguns discursos bastante estabilizados entre nós ainda
se encontravam instáveis. O significado de palavras como negro, escravo, índio,
liberto, forro ainda não tinham seus sentidos definidos. Para justificar muitas
de suas atitudes, sem nenhum pudor, a Igreja, para fugir da condição de anti-cristão,
chamou os índios de negros.
A
Igreja tinha por princípio catequizar as almas dos gentios e pelo menos
simbolicamente, este processo não poderia ser violento, a menos que muito bem
justificado. O ethos discursivo do
religioso está relacionado à bondade, à humildade, diferente do que acontecia
em relação aos navegadores, aos soldados, aos governadores, cuja imagem
associada à violência figurava como uma característica bastante positiva, já que
era necessário aterrorizar os índios para que eles não oferecessem resistência.
O ethos implica, com efeito, uma disciplina do
corpo apreendido por intermédio de um comportamento global. O caráter e a
corporeidade do fiador provêm de um conjunto difuso de representações sociais
valorizadas ou desvalorizadas, sobre as quais se apóia a enunciação que, por
sua vez, pode confirmá-las ou modificá-las. Esses estereótipos culturais circulam
nos domínios mais diversos: literatura, foto, cinema, publicidade etc. (MAINGUENEAU:
2000,99)
O
colonizador e o religioso chegaram juntos, fazem parte do mesmo processo. É até
bem coerente afirmar que os religiosos também eram colonizadores. Mas aos olhos
das sociedades indígenas, havia uma grande diferença entre os padres e os
militares e colonos. O olhar dos índios foi o fiador destes ethos discursivos construídos pelo
Ocidente. Eles não recebiam da mesma forma militares agressivos, usando uniformes,
com botas imponentes, armados, montados em cavalos, da mesma forma que recebiam
aqueles homens de aparência angelical, de fala macia, usando sandália, com
olhar de acolhimento.
O
corpo dos jesuítas tinha uma atitude diferente. Eles demonstravam interesse
pelas línguas e pelas culturas nativas. Chegaram à América trazendo a música
erudita, significativo elemento de atração para índios, cujo cotidiano era
embalado pela música e pela dança. Não, à toa, estes religiosos conseguiram
entrar no universo indígena sem muitas dificuldades a princípio. Eles
promoveram diferentes gestos de interpretação no olhar nativo, por isso não
podiam ser percebidos da mesma forma que os outros colonizadores.
O
início da colonização não foi tarefa simples para portugueses e espanhóis. Era
necessário encontrar formas de se relacionar com as sociedades indígenas, sem
que necessariamente tivessem que exterminar todos os índios. Eles precisavam de
mão-de-obra na América e viver em estado de guerra encarecia a colonização e diminuía
os lucros. Para efetivar este projeto colonizador, teve papel fundamental uma
nova ordem religiosa, fundada em 1534, por Inácio de Loyola, a Companhia de
Jesus. Esta nova congregação católica tinha um objetivo claro: instituir a fé
cristã como uma ordem discursiva, submetendo as sociedades colonizadas à
religião católica e aos reis europeus através da ação missionária voltada para
educação. Não por acaso esta congregação foi tão fortemente apoiada pela Corte
portuguesa e encontrou nas escolas fundadas em Portugal seu principal centro
irradiador de novos jesuítas.
Quando
os jesuítas chegaram ao Brasil, eles se valeram de uma tecnologia discursiva
sofisticada de impor a sujeição aos povos colonizados. A Igreja Católica já
havia protagonizado em outras colônias espanholas e portuguesas a ação da
catequese, que necessariamente passava pela disciplinarização do corpo. Isso
incluía agregar os índios em missões, onde eles passavam a levar uma vida
sedentária, sob o controle da Igreja, ficando assim dependentes dos
favorecimentos dos religiosos. Nestas missões, a Igreja impunha novas regras de
condutas que incluíam a monogamia, o hábito de freqüentar escolas e a introdução
de um novo cardápio alimentar. No trecho seguinte, em uma carta enviada à
Companhia de Jesus, Nóbrega deixa bem claro os objetivos destes religiosos em
relação aos índios:
A lei, que lhes hão-de-dar, é
defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do Governador,
fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se, pois tem muito algodão, ao menos depois
de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para
com os cristãos, fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não
for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes
padres da Companhia para os doutrinarem. (SERAFIM LEITE: 1954, p. 153)
Em
relação à interferência na vida religiosa, uma das estratégias mais eficientes
consistia em ridicularizar os princípios religiosos tradicionais, condenar a
ação dos pajés e estabelecer a confissão como condição para a convivência com
os religiosos.
Para
colocar em prática seus objetivos, os jesuítas se dedicaram a uma pesquisa
minuciosa entre os índios Tupinambá. Procuraram conhecer sua língua, sua
organização social e religiosa para poder agir com mais propriedade entre eles.
Eles fundaram as primeiras escolas, escreveram as primeiras gramáticas e os primeiros
dicionários das línguas indígenas.
Esta
nova ordem discursiva, que começou a ser instituída pelos jesuítas, ainda hoje
continua se estabelecendo nas fronteiras da Amazônia com outras organizações
religiosas. É uma recorrência que a partir do encontro com as igrejas os índios
passem a depender de muitos favorecimentos dos religiosos, quer seja da busca
de proteção para as invasões inimigas, para a obtenção de alimentos, para
conseguir assistência médica, em função de não dominarem as doenças trazidas
pelos não-índios, para receber como presentes os artefatos culturais que
passavam a fazer parte do cotidiano ou mesmo porque a doutrina cristã, de
alguma forma, encontra e encontrava espaço de diálogo com o self religioso de
algumas sociedades indígenas.
Na
primeira metade do século XVI, a colonização portuguesa enfrentou muitas
dificuldades para ocupar o território brasileiro e “civilizar” seus moradores
nativos. Ecoava também na América a guerra religiosa promovida pela Reforma
Protestante e pela Contra-Reforma da Igreja Católica. A ameaça dos calvinistas
franceses, perseguidos pela Contra-Reforma era constante, eles mantinham
relações amistosas com os índios e pretendiam fundar no Brasil um país em que
pudessem ter liberdade de religião. Foi somente em 1532 com a chegada de Martim
Afonso de Souza que começou efetivamente a colonização do Brasil. Mas as
primeiras iniciativas da Corte Portuguesa não resultaram na ocupação efetiva de
um território tão extenso. A presença da Igreja Católica no Brasil representava
uma estratégia dos europeus para transitar entre as sociedades indígenas sem
guerras, mas também traduzia a preocupação do Vaticano em relação aos franceses
no litoral brasileiro.
Os
jesuítas José de Anchieta, Antônio Nóbrega e Antônio Vieira, filhos da
Contra-Reforma, são alguns dos maiores expoentes da igreja católica no Brasil.
Estes religiosos foram considerados protetores dos índios e a própria Igreja se
incumbiu de divulgar este ethos pelo
mundo inteiro. Os três ainda hoje são respeitados por sua produção literária,
além de religiosos eram muito cultos, chegavam a ser eruditos. Mas estes três jesuítas
foram decisivos no processo de reconhecimento e apagamento da história dos índios.
Eles não são lembrados porque tenham dado voz a uma memória indígena. Não, eles
se destacaram pela catequese.
A
produção literária destes jesuítas interferiu bastante na imagem que a
sociedade brasileira, de forma geral, tem dos índios. A própria imagem deles se
confunde com suas atuações entre os índios. Anchieta foi indicado para
canonização em função do trabalho que realizou entre os Tupiniquim e Tupinambá.
Também a ele se deve o primeiro estudo sistematizado e escrito de uma língua
indígena no Brasil – “A Arte (gramática)
da Língua mais usada na costa do Brasil”. O trabalho lingüístico realizado
pelo jesuíta no Brasil teve como principal metodologia conhecer o léxico e os
aspectos estruturais da língua falada pelos Tupinambá, para poder efetivar um
trabalho de catequização entre eles.
Muito
antes de Malinowski ou das modernas correntes teóricas dos estudos da
linguagem, era bem claro que estar entre os índios e conhecer e manipular sua
língua representava as condições essenciais à sua empreitada. Anchieta, além de
ser um linguista primoroso, também se tornou um profundo conhecedor da cultura
Tupinambá. Preocupou-se, precipuamente, em compreender as estruturas do
pensamento religioso.
A gramática do enunciado jesuítico
implica, portanto, mapear o tupi e capturá-lo com classes e categorias
gramaticais do latim, do português e do espanhol. Ao inseminar na língua tupi a
presença de uma alma católica proporcionada pela semântica substancialista de
uma memória de culpa, a gramática também produz seu análogo sensível, o corpo
dócil, ordenado em práticas prescritivas que o integram juridicamente como
inferioridade natural. Lição da Política aristotélica: é próprio do inferior
subordinar-se naturalmente ao superior. (HANSEN: 2005, p. 38).
A
produção literária de Anchieta é bastante vasta e compreende poemas em latim,
poemas em Tupi antigo, peças de teatro, uma série de cartas enviadas à
Companhia de Jesus, entre outros. Aqui, vou tratar especificamente de um de
seus poemas, “Dos Feitos de Mem de Sá”.
Nele ficam bem evidentes as características do índio ideal aos olhos de
Anchieta. O índio que ele se empenhou em inventar em sua literatura.
Com
seus mais de três mil versos, este poema foi publicado pela primeira vez em
1563 para homenagear a vitória dos portugueses sobre a rebelião indígena que
ficou conhecida como Confederação dos Tamoios.
Em
“Dos Feitos de Mem de Sá”, José de
Anchieta, além de revelar o que pensava sobre os índios que resistiam à
colonização, ovaciona as ações do governador Mem de Sá. Ele constrói dois ethos discursivos bem distintos, do
governado como um grande herói e o dos Tupinambá como selvagens, animais e
ferozes. O tom áspero do poema traduz a tensão que jesuítas, portugueses e
Tupinambá viveram durante a Confederação dos Tamoios. Neste texto, Anchieta
evidencia o que significava levar a conversão aos infiéis.
Ethos não diz respeito apenas, como na
retórica antiga, à eloqüência judiciária ou aos enunciados orais: é válido para
qualquer discurso, mesmo para o escrito. Com efeito, o texto escrito possui,
mesmo quando o denega, um tom que dá autoridade ao que é dito. Esse tom permite
ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador (e não, evidentemente,
do corpo do autor efetivo). A leitura faz, então, emergir uma instância subjetiva
que desempenha o papel de fiador do que é dito. (MAINGUENEAU: 2000,98)
O
fiador deste poema não eram os índios. O público a quem Anchieta queria atingir
eram os portugueses, os europeus colonizadores. Dentre as principais condições
de produção deste poema é importante assinalar que originalmente foi manuscrito
em latim e tinha como objetivo a circulação imediata entre os portugueses que
viviam no Brasil e na metrópole. O próprio Anchieta fez uma cópia do poema e entregou
ao governador geral Mem de Sá.
Segundo
alguns críticos literários, este seria o primeiro poema épico feito no Brasil.
Sua estrutura segue o modelo clássico épico: há um herói, a forte presença da
mitologia cristã e acontecimentos fantásticos a partir de fatos reais.
Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em
que o Brasil
te contemplou! quanto bem trarás a seus
povos
abandonados! com que terror fugirá a
teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e
tantas ruínas
lançou nos cristãos, arrastado de
furiosa loucura!
(ANCHIETA, 1958:12 )
Escrever,
em latim, com a estrutura épica, já localiza algumas características da
formação do jesuíta. Ninguém duvida de suas qualidades como linguista e como
literato. Há uma farta literatura especializada que trata destes aspectos da
obra de Anchieta. Mas aqui, interessa a posição discursiva do jesuíta. A narrativa
épica de Anchieta, herdeira de Homero, foi escrita antes que Camões compusesse
“Os Lusíadas”. Seu herói é mais parecido com Ulisses, o conquistador do que com
Vasco da Gama, o navegador.
Todo
o argumento se define a partir da oposição entre os entre os “heróis” e a
“turba horrenda”. Anchieta constrói um discurso tão depreciativo em relação aos
índios, que parece plenamente justificável o massacre promovido por Mem de Sá.
Anchieta
era, de fato, um religioso da Contra-Reforma e esta condição aparece logo na “Epístola Dedicatória”. Fica bem clara a
posição do jesuíta no poema. Ele faz uma crítica severa aos franceses:
15 Vês como de nada valeu a esses ninhos
altivos de pedra
toda a estratégia das posições achadas. Inexpugnáveis
embora à força humana as ameias erguidas pelo hábil francês no cimo dessa penha
(ANCHIETA, 1958: 47)
Bem
diferente do discurso estabilizado sobre a resistência indígena, que fala em
índios pacíficos, que não resistiam, a história dos Tupinambá, já no primeiro
momento da colonização, mostra que eles não aceitaram pacificamente a
dominação, tampouco nutriram profunda admiração pela cultura ocidental, como afirmam
muitos autores. Estes índios eram corajosos guerreiros, que apoiados pelos
franceses, promoveram, liderados por Ambirê e Guaixará, no litoral dos estados
do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre 1554 e 1567, a Confederação dos Tamoios
e levaram a guerra contra os portugueses às últimas consequências. As batalhas entre
portugueses e os Tupinambá servem de inspiração para a construção do poema.
Os
Tupinambá tinham consciência clara do que estavam em jogo durante as batalhas
da Confederação dos Tamoios. Eles sabiam que sua liberdade e a hegemonia sobre
os territórios dominados. Eles lutaram para não se submeter, mas Anchieta
condena esta luta.
Vês como gentes cruéis em hordas imensas
preparam aos cristãos batalhas ferozes. De morte humilhante
245 ameaçam agora a cabeça dos pobres
colonos quais tigre cruéis em redor da preia lanhada sorvendo com fauces
sedentas o sangue inocente.
(ANCHIETA, 1958: 61)
Os
Tupinambá queriam vingar seus guerreiros mortos pelo exército português e
compreendiam o risco da presença dos portugueses no Brasil. A respeito do
estado de ânimo dos Tupinambá, esclarece Florestan Fernandes (1963: 29):
[a] guerra contra os portugueses assumiu
formas violentas, congregando todos os grupos tribais da região. O auxílio
direto dos franceses e suas promessas formais de colaboração permanente
tornaram-se também um incitamento muito significativo. O objetivo da guerra, do
ponto de vista tribal, consistia na expulsão ou extermínio dos portugueses.
Quando
se iniciou a guerra, os Tupinambá ameaçaram dominar os portugueses, que
passaram a recuar estrategicamente. Foi a intermediação de Nóbrega e Anchieta,
que ficaram meses como reféns entre eles, que permitiu aos jesuítas conhecer as
estratégias de guerra dos Tupinambá. Com estas informações, ficou mais fácil ao
exército português, comandado por Mem de Sá, aniquilar a resistência indígena.
No
trecho seguinte, há uma inversão da história do que aconteceu na América entre
os índios e os europeus. Os índios são apresentados como vilões. Parece que
eles invadiram o Brasil e entrincheiraram a cultura cristã:
825 Essa raça selvagem, sem a menor lei,
perpetrava
crimes horrendos contra os mandados
divinos,
proferindo impunemente ameaças contínuas
e altivos
discurso. Então, com arrogância o índio
sanhudo
olhava para os cristãos e estes
entrincheirados,
830 detrás de seus muros tremiam de
pavor vergonhoso:
como quando lobos vorazes, que a fome
impiedosa
açula e avassala, rangendo os dentes,
cobiçam
à ronda do aprisco, espotejar os tenros
cordeiros
e extinguir a sede ardente no sangue que
sugam;
(ANCHIETA, 1958:83)
No
trecho seguinte, o índio é identificado com os animais irracionais:
(..) Podem os tigres viver sem a preia
e os leões ferozes deixar de espedaçar
os novilhos
e os lobos perdoar as mansas ovelhas?
Antes deixará a baleia
de encher de peixes o bojo no vasto
oceano
956 antes deixará o gavião, em vôo
audacioso librado no espaço,
de raptar tímidas aves, e a águia real
de garras aduncas
de levantar as alturas em revoada a
lebre cativa;
do que deixarem os brasis de devorar
carnes humanas.
(ANCHIETA, 1958: 89)
No
fragmento a seguir, do Livro II do poema, a forma como Anchieta se utiliza dos
verbos atua no apagamento da história dos índios e constrói uma “verdade
absoluta”, bem própria da história construída pela Companhia de Jesus:
Assim se expulsou a paixão de comer
carne humana,
a sede de sangue abandonou as fauces
sedentas;
e a raiz primeira e causa de todos os
males,
a obsessão de matar inimigos e
tomar-lhes os nomes,
1100 para glória e triunfo do vencedor,
foi desterrada.
Aprendem agora a ser mansos e da mancha
do crime
afastam as mãos os que há pouco no
sangue inimigo
tripudiavam, esmagando nos dentes
membros humanos.
Há pouco a febre do impuro lhes devora
as entranhas:
1105 imersos no lodaçal, aí rebolavam o
fétido corpo,
preso à torpeza de muitas, à maneira dos
porcos.
Agora escolhem uma, companheira fiel e
eterna,
vinculada pelo laço do matrimônio
sagrado
que lhe guarda sem mancha o pudor
prometido.
(ANCHIETA, 1958: 95)
Em
sua sintaxe discursiva, Anchieta usa verbos no passado, que mostram como era a
vida dos índios e verbos no presente, que retratam a nova realidade estabelecida
depois que Mem de Sá venceu os Tupinambá. Esta escolha dos tempos estabelece
uma nova discursividade. O jesuíta usa o presente omnitemporal ou gnômico. Para
Fiorin (2001:150-151) isto acontece:
quando o momento de referência é
ilimitado e, portanto, também é o momento do acontecimento. É o presente
utilizado para enunciar verdades eternas ou que se pretendem como tais. Por
isso é a forma verbal mais usada pela ciência, pela religião, pela sabedoria popular
(máximas e provérbios)
“Eles
eram”, depois de Mem de Sá, “eles são”: o trabalho de transformação está
concluído. Nesta construção, não há escape para a nova ordem cristã
estabelecida: “Assim se expulsou a paixão de comer carne humana”, acabou a
antropofagia e a monogamia se estabeleceu como regra de conduta “Agora escolhem
uma companheira fiel e eterna”.
O
funcionamento discursivo do início da colonização, agenciado pela igreja,
reprodutor do modelo das Cruzadas religiosas da Idade Média, em vários momentos
da História, construiu duas categorias de ethos:
o santo, que não pega em armas e aparece como uma figura cândida, (daí a imagem
estabilizada que temos de Anchieta) e o herói, o líder militar, forte, quase
imbatível, representado por Mem de Sá. No poema também se observa o ethos do índio ideal para Anchieta,
aquele que se submeteu a Mem de Sá e que pode ser considerado humano. Quanto
aos outros, são irracionais e não têm o direito de continuar vivendo.
Durante
séculos, a Igreja Católica e o Estado português, seguido pelo brasileiro
administraram nossos “gestos de leitura” em relação à catequese e à
colonização. Colocaram em circulação suas próprias versões da história, que,
ainda hoje, sem muita dificuldade, pode ser verificada nos livros, ou, para ser
mais contemporânea, em qualquer busca no Google.
O
índio não foi inventado sozinho. Para que a imagem do selvagem fizesse sentido,
muitas outras também entravam em cenas. Na verdade, esta relação de dominação
que aconteceu com as sociedades indígenas e com as sociedades africanas nos
séculos XVI, ainda hoje continua se repetindo no Vietnã, no Iraque, na Faixa de
Gaza, onde quer que existam pessoas querendo subjugar sociedades inteiras.
Nestas situações sempre as invenções discursivas serão mais uma forma de
violência contra os povos oprimidos. Em sua mais recente versão, costuma-se
afirmar que o mundo mudou e que falar sobre dominantes e dominados é coisa do
passado.
Texto
de Ivânia dos Santos Neves