Discutir o senso de
beleza em sociedades indígenas exige-nos um primeiro exercício de relativização
de nossa percepção estética. Para começar, é necessário que nos disponhamos a enxergar a beleza não necessariamente nas manifestações que costumeiramente entendemos como artísticas, mesmo porque nem sempre será possível identificar um domínio específico definido enquanto tal nestas sociedades.
Na sociedade Guarani
Mbyá, tanto nos momentos da produção do que poderíamos chamar o bem-estar cotidiano entre pessoas que
partilham a convivência, e o do contexto ritual da reza, em que o canto-dança
ocupa lugar central, estaria implicada a beleza enquanto aspecto fundamental da
humanidade inspirada por qualidades divinas. Noutras palavras, viver como
humanos envolve um sentido do belo, qualidade originalmente pertencente ao mundo
dos deuses, mas que deve ser constantemente apropriada e atualizada nas
condutas humanas, sem o que a existência das pessoas mbya torna-se, no limite,
insustentável.
A palavra PORÃ pode ser traduzida como “bonito” ou “agradável” (MONTOYA), adjetivo que qualifica, por exemplo, um cesto
bem feito, ajaka porã, ou um lugar de
“boa mata”, ka’aguy porã. Pode,
também, corresponder ao advérbio “bem”,
como em “orovy’a porã” (“ficamos bem
alegres”), ou na expressão rotineira de quem pergunta ou afirma um “estar bem”:
-iko porã.
Em sua acepção mais
sublime, porã corresponde às próprias
divindades mbya: Mba’e Porã kuéry,
os “seres bons”, os Deuses (CADOGAN).
Qualifica os alimentos, objetos e capacidades que se originam destes: tembi’u porã, a “boa comida” que as
divindades teriam deixado aos Guarani, tape
porã, o caminho posto pelas mesmas, ou as “belas palavras”, ayvu porã, que dariam origem mesmo à existência
dos humanos e a faria continuar na Terra.
Quando referida ao
domínio divino, a noção de beleza é investida de imagens elaboradas sobre as
formas com que os Deuses se enfeitam e enfeitam o mundo. A poesia dos textos
colhidos por Cadogan no Ayvu Rapyta
(1959) é farta em exemplos: as formas distintas de luminosidade, a neblina
vivificante, os vales e florestas que desenham o relevo da Terra, o orvalho que
brota nas mãos daquele que se dedica “fervorosamente” na reza (...).
Por sua vez, na
expressão cotidiana iko porã, o
termo assume grande abrangência, ao referir-se ao que se pode obter de bom e
bonito na vida. “Estar bem” remete ao estado de ânimo das pessoas, que, conforme
sabem os Mbya, pode alterar-se de um dia para o outro ou de uma a outra seção
de um mesmo dia. É estar com saúde e “alegre” (vy’a), com disposição para algum afazer e para o convívio com
aqueles que estão por perto.
Convivendo entre
mulheres, é comum que se questionem mutuamente sobre o estado de nossas crianças.
Alguns indicativos importantes de que “estavam bem” diziam respeito ao “mamar
bem” (kambu porã), “dormir bem” (ke porã) e o “não chorar
(demasiadamente)” (ndojae’oi), sinal
de que as mesmas estariam se alegrando na condição atual de convívio com os parentes
que lhe acolheram na Terra. Tanto para estas, a partir de certa idade, quanto
para os Mbya em geral, alguns aspectos são centrais na definição do estar bem:
a aceitação de alimentos - o querer comer ou o “comer bem” (karu porã) - e a capacidade de
erguer-se (puã) e andar (guata).
As expressões acima,
que remetem diretamente a certas condições físico-emocionais das pessoas,
ganham sentido efetivamente na relação estreita que carregam com o parentesco e
o tema da alegria ou satisfação pessoal. Homens e mulheres adultos que acolhem
uma criança devem fazer o possível para alegrá-la, satisfazer as demandas que
manifeste; a criança, por sua vez, pode, ainda assim, “não gostar”, “não se
alegrar” (ndovy’ai) e, portanto, não
querer ficar entre eles, isto é, escolhendo morrer. Como ocorre com muitos
povos indígenas sul-americanos, o aparentamento aqui demanda um trabalho que
deve ser continuamente realizado, sob o risco da perda de indivíduos que tornam-se
parentes de Outros, ou, melhor dizendo, de outras espécies de gente.
Estas observações chamam
a atenção para o seguinte: quando está em foco o bem-estar das pessoas mbya,
necessariamente estão também em foco maneiras de agir, disposições que se
atualizam naquele(a) de quem se diz estar ou não bem e de outras pessoas que, pondo-se
em relação com ele(a), produziram-lhe algum efeito “bom/bonito” ou “mau/feio”.
“Fazer bem” ou “fazer
bonito” (japo porã) contrasta com
“fazer mal” ou “fazer feio” (japo vai),
expressão que se usa no comentário de uma injúria dirigida por alguém contra
outrem, ou, ainda, da feitiçaria, o extremo oposto do comportamento bonito/bom
entre os Mbya. Aqui o sentido do bom/bonito leva-nos à abordagem de valores da
socialidade. O bem-estar, matéria de cada pessoa, que deve ficar atenta para os
indícios de maus estados físicos-emocionais que possam estar se instalando, é
fruto de um agir bem, que os Mbya definem como inspirado por capacidades
transmitidas pelos Deuses. Estas compreendem desde os modos cotidianos de fala
até os saberes especializados usados na cura de doenças que devem ser disponibilizados
para os que deles necessitem.
Inspiração pessoal,
isto é, o que cada pessoa adquire de sua comunicação com o mundo divino, seja
na reza, no sonho ou outras formas de “concentração” – como diz uma tradução
mbya –, combina-se aqui com uma ética mbya da boa convivência, fundada na
moderação e no reconhecimento da autonomia de cada um para as escolhas que lhe caibam.
Uma perspectiva
analítica que tem sido desenvolvida por diversos estudiosos de sociedades
amazônicas, a partir principalmente dos trabalhos de Joanna Overing, traz para
o centro das atenções a questão da “convivialidade”
– os valores e processos que estariam implicados na produção do cotidiano.
Tomando por base a
noção de Vico do “sentido da comunidade”, Overing e Passes propõem que, entre
os povos amazônicos, o senso de comunidade compreende uma “estética da ação”,
ou seja , o sentido moral e político do bem comum vinculando-se a um agir estético,
onde o comportamento apropriado é definido como bonito e agradável. Assim,
pode-se reconhecer, com propriedade, artes como as de cozinhar, educar
crianças, trabalhar, comer etc.
Tais estudos têm
apontado a importância da observação dos espaços domésticos na análise da
socialidade, desviando o enfoque das estruturas para as práticas cotidianas e
as relações interpessoais, reconhecendo um lugar importante à produção diária
das emoções a partir das ações pessoais, etc.
Sob a inspiração
primeira da etnografia de Irving Goldman, que Overing toma para pensar o “senso
de comunidade” deste povo e o dos Piaroa, e também a partir de um conjunto de
trabalhos desenvolvidos recentemente pela escola americanista britânica, alguns
pontos importantes sobre a “convivialidade ameríndia” vem sendo elaborados.
Entre eles, dois particularmente merecem destaque: o tema do conforto emocional
e o dos modos pessoais de agir, isto é, do “lugar da pessoa pelo que ela faz”
ou por “como age”.
O tema da satisfação
pessoal – que articula-se, na experiência dos Mbya, aos deslocamentos
constantes entre aldeias e alteração de contextos de convivência –, demonstrou ocupar
um lugar central nas práticas e discursos cotidianos. Uma atividade que se
escolhe ou se deixa de fazer, uma saída que se resolve sem demora ou mesmo um
vínculo matrimonial que se desfaz sem aviso, são sempre eventos tematizados pelos
Mbya nos termos das disposições pessoais, entendidas como meio de solução para
situações em que não estariam (mais) “ficando tranqüilas” ou “alegres” as
pessoas envolvidas. Encontrar alternativas noutros lugares e contextos
relacionais é algo que está sempre no horizonte de homens e mulheres mbya, e
que se visualiza como possibilidade de animar a existência ou, conforme outra
maneira de dizer o mesmo, evitar a doença.
O belo e agradável na
condição de quem está ou fica bem (iko porã)
se liga aos estados emocionais definidos pelos Mbya como alegria e
tranqüilidade. O conforto emocional entre os Cubeo de que nos fala Goldman
remete a um tema clássico na etnologia sul-americana que encontra grande
elaboração entre os Mbya: o da evitação da raiva. Cientes da possibilidade de
atualização da raiva, ou da antipatia, os Mbya desenvolvem métodos
preventivos-curativos dos efeitos de “dor” ou “doença” que elas podem causar.
Conforto emocional é
sempre algo que põe em questão a relação que se mantém ou se desfaz com outras
pessoas. Assim, de crianças pequenas que choram, não se alimentam diz-se
freqüentemente que estariam descontentes com o pai ou mãe que, no contexto de
uma relação de casamento desfeita, partiu. Parentes que cuidam, então, da criança,
deverão buscar alegrá-la, animá-la, para que retome a boa disposição, a saúde.
Por sua vez, há
grande consenso em torno da prática de não se permanecer numa relação conjugal
em que não se está alegre, de modo que muitos casamentos se desfazem. Ora, de
modo anunciado, explícito, ora com a “fuga” (java) do homem ou mulher envolvidos. Uma questão importante a
partir destes eventos é a do tipo de sentimento/disposição que os mesmos fazem
desdobrar. Parceiros deixados por antigos cônjuges, quando questionados
diretamente sobre o ponto, sempre afirmaram “não ficar com raiva” do
ex-cônjuge. Por outro lado, é bastante comum entre adultos, homens e mulheres,
a presença de alguma forma de doença ou mal-estar que teria sido causada pelo
“mal feito” ou o “fazer feio” (japo vai)
de um ex-parceiro ou parceira que teria se enraivecido (gueropoxy) com quem rompeu a relação.
Tal qual na doença
enviada por “espíritos-donos” (ja) aos Mbya que passam pelos
lugares no mato e cachoeiras em que aqueles habitam, a antipatia pode
atualizar-se na relação entre pessoas, e, no seu maior grau de intensidade, tornar-se
raiva (poxy) que leva ao desejo de
matar o outro. É o caso da feitiçaria, sempre dita ser feita para fazer durar
pouco a vítima, e, também, o do homicídio.
Ação e intenção,
portanto, estão intimamente ligadas e os estados físico-emocionais são, ao
mesmo tempo, o meio e o resultado da sua atualização. Uma das formas de
expressão do “estar tranqüilo” é “não ligar” (iko rive). Não se afligir com uma maneira indelicada ou atitude não-cooperativa
de outrem, de modo a evitar que o desconforto se instale, e, com ele, um
processo materializado de doença. Os processos pessoais se desenvolvem, assim,
no fluxo de intenções com potência de ação e ações intencionadas que se cruzam
nos espaços de convivência.
O agir bonito ou feio
se liga diretamente à produção de estados de saúde ou doença, tranqüilidade ou
inquietude, condições boas para se viver ou falta de disposições fundamentais
para manter a vida. Isto é, para si mesmo e também para os que estão presentes
nos contextos variados que se sucedem na trajetória dos Mbya. Habilidades
pessoais são um aspecto importante, reconhecido, por exemplo, na disposição para
preparar remédios do mato que uma mulher detém, na capacidade de aconselhar que
um velho ou velha demonstram, mas é sempre na disponibilização das próprias
capacidades a outras pessoas, conforme a ética do parentesco mbya, que
efetivamente se “age bem”. Entre os Mbya, a beleza é relacional.
Não há arte maior
entre os Mbya que a vocal. A afirmativa tem validade geral e nos remete a um
aspecto destacado por estudiosos de diversos grupos tupi-guarani: o do lugar
central da oralidade para os mesmos (VIVEIROS DE CASTRO, FAUSTO, entre outros).
Aqui nos valerá para a análise de dois momentos da produção da bela-agradável-boa
maneira de viver entre os Mbya: o do trato cotidiano entre as pessoas e o do
contexto ritual da reza, em que as capacidades divinas tornam-se “palavras
belas” (ayvu porã) - cantadas ou pronunciadas
de forma emocionada.
A arte da boa conversa,
conforme pode ser observada no cotidiano de uma aldeia mbya, se insere numa
arte maior, do comedimento, da moderação, da procura não-aflita que define uma ética-estética
válida não apenas para as relações interpessoais, mas também para a procura de
alimentos, a busca de meios materiais de subsistência, ou, ainda, para o
processo de aquisição de saberes curativos, etc. O que se pode obter como
recursos de toda espécie para a existência demanda, enfim, da pessoa mbya uma
atitude comedida e paciente, pois que se aprende aos poucos, as verdades não
são reveladas todas de uma só vez pelos Deuses, os alimentos aparecem em nosso
caminho aos poucos. A vida se desenrola a cada dia, cada um destes trazendo
consigo desafios e possibilidades à “sabedoria” (mba’ekuaa) de cada um e ao agir vinculado à mesma.
As etiquetas de mesa,
os modos de andar e de se visitar e conversar que são mais apreciados entre os
Mbya sempre chamam a atenção dos ocidentais. Quando se convive com pessoas mbya,
é inevitável o confronto entre suas maneiras de não se afligir com coisas que
são;tão comuns entre nós, tais como o cuidado de crianças, a previsão quanto ao
ter o que comer amanhã, a disciplina quando se trata de conhecer algo, etc. João,
um mbyá casado em Parati Mirim, questionou-se, certa vez, sobre como seria
possível ao branco (jurua) “aprender
preocupado”. Referia- se, neste caso, a um rapaz branco conhecido, que ele
teria encontrado na cidade e que, aos seus olhos, estava transtornado (suava e demonstrava
alto grau de nervosismo) por conta de uma prova que faria naquele dia. “Aprender
[estando] preocupado” – forma típica de nossa experiência escolar, diga-se de
passagem – é algo absolutamente incompreensível para uma perspectiva que
define, no extremo oposto, a tranqüilidade como condição para a boa
convivência, que é, simultaneamente, meio e produto do conhecimento.
A noção de
conhecimento merece atenção. O verbo “saber” (kuaa) compreende não
apenas uma dimensão da memória da experiência vivida ou do que foi “contado” (mombe’u) por outras pessoas, mas também
impressões que ganham forma emocional e física que podem vir em sonhos ou
outras formas de comunicações originadas pelos Deuses. Algo que “vem no sonho”
pode não se transformar necessariamente em conteúdo interpretado com clareza,
mas impressão físico-emocional de um acontecimento por vir. Um mal-estar que
deixa a pessoa sem ânimo para conversar, brincar com as crianças que vivem próximas
a ela, pode ser reconhecido como algo que se está sabendo (intuindo) sobre a
atual condição ou eventos prováveis, conhecimento que, por sua vez, pode e deve
levar a pessoa a encaminhamentos diversos de sua vida. No caso de fazê-la tomar
decisões que resultem em estados renovados de ânimo, que a alegrem, são
entendidos como um “bom conhecimento” ou diz-se que “sabe[-se] bem” (kuaa porã).
Não há meio mais
apropriado à atualização de “bons saberes” que o oral. A respeito disto, a
própria alma-nome (nhe’ë) de cada
pessoa mbya é “palavra”, potência de comunicação com seus “pais” ou “donos”, os
nhanderu (“nossos pais”) que as
enviam para nascer na Terra. São palavras ou falas (ayvu) que estas divindades enviam também, ao longo da vida de cada
pessoa (mbya), para capacitá-la para a vida terrena, que só é possível
preservar com os saberes e poderes oriundos daqueles: os nomes, os remédios, o
saber xamânico associado ao uso do tabaco.
Igualmente entre os
que partilham a existência terrena, a transmissão de conhecimentos tem lugar
privilegiado na fala. Os velhos e velhas orientam os mais novos em sessões de
“aconselhamento” (mongeta:
“aconselhar”) nas opy (casas
rituais) ou em falas demoradas feitas na própria casa, quando jovens e adultos
se encontram sentados, por exemplo, pela manhã, em torno do fogo que prepara o ka’a (mate).
Mas não apenas nestes
momentos podemos reconhecer uma arte da fala. Para além destes discursos
aconselhadores, em que as posições de quem fala e quem escuta ou deve ouvir
atentamente (japyxaka) se distinguem
claramente, a conversa cotidiana é ela mesma um lugar importante da prática
desta arte.
A conversa entre
aqueles que devem se tratar como parentes (etarã)
é justamente uma conversa aconselhadora, pautada na delicadeza de quem fala e
no reconhecimento da autonomia de quem escuta. A tematização sobre a
possibilidade de se “acreditar” (jerovia)
ou não no que disse um parente mais velho, como pai ou mãe, ou mesmo um opita’i va’e (xamã), presente tanto nos
mitos quanto em narrativas sobre eventos atuais, aponta que há sempre uma
abertura na consideração da “verdade” que pode-se obter via conselho de outros (normalmente
mais velhos) ou via a própria capacidade de percepção.
A conversa entre
vizinhos, pessoas que se encontram por caminhos nas aldeias mbya ou se visitam
é normalmente objeto de cuidado especial. Nunca deve ser excessiva. É a fala
branda e agradável, bonita, que não produz más disposições (antipatias) nos que
a ouvem. Esta é a boa conversa que se diz inspirada pelos Deuses, a fala que
aconselha branda e continuadamente. Não impositiva, mas atenta aos processos
que podem estar envolvendo os relacionados.
Se alguém, ao se
levantar pela manhã, visita uma casa vizinha e conta seu sonho, espera
normalmente daquele(a) que ouve algum comentário que possa auxiliá-lo na
compreensão do que “conta o sonho”. E mais, dos cuidados que a situação possa
demandar. O sonhador pode, após ouvir tal comentário, sentir-se mais ou menos
convencido da “verdade” nele contida, dispondo-se em algum grau a seguir suas
indicações. Mesmo em se tratando das impressões de um especialista, a forma que
a conversa assume é idealmente branda. A propósito, a primeira medida freqüentemente
tomada por especialistas quando recebem alguém que procura sua ajuda por sentir
algum incômodo é justamente a de pedir que a pessoa “conte” (mombe’u) de seu estado. Isto é, a
consulta ao pajé começa sempre como conversa.
As escolhas de
palavras agradáveis em encontros fortuitos nos pátios são também facilmente
observáveis. O tom de brincadeira não excessiva é bastante comum nos momentos
em que se cruzam dois homens ou mulheres na estrada ou em ruas das cidades
vizinhas às aldeias. Por outro lado, são ditas “más falas” ou “falas feias” principalmente
as falas acusativas ou o uso de palavras em atos feiticeiros, que, invertendo a
ética do cuidado ao parente, representariam agressão produtora de doença e
morte.
A “estética do
cotidiano” mbya, que se produz de modo privilegiado na fala, parece poder ser
descrita como modo contínuo e moderado de comunicar impressões voltadas para o
bem-estar daqueles com quem se vive junto. Não criar antipatias nem antipatizar-se
são temas importantes dos versos no Ayvu
Rapyta.
A moderação, por sua
vez, não deve resvalar no estar alheio ao que outro mbya diz. É certo que a
expectativa entre os que se tratam como parentes é outra. Mas também há um
valor positivo do “não ligar”, noutros contextos discursivos. Assim, dizem os
Mbya que, para viver bem entre eles, “tei
ke reiko rive” (“tem que não ligar”), isto é, não importar-se com diversas coisas,
não se afligir com algo que alguém diga, enfim, ficar tranqüilo ainda que lhe
sejam dirigidos maus olhares e palavras. A moderação é, portanto, arte do tato
na fala e na escuta, arte de fazer brotar, das palavras pronunciadas e
escutadas, bons-belos efeitos, para si mesmo e para quem mais participe destes
contextos. Num outro nível, esta arte se estende aos que não poderiam ouvir efetivamente
os sons das palavras pronunciadas. É o que se diz da reza.
A reza é uma
experiência íntima, e, ao mesmo tempo, que reúne pessoas mbya. Pode-se rezar de
onde quer se esteja, pode-se “ouvir a palavra de Nhanderu” de onde a pessoa “[tenha]
concentração”. Mas não há lugar mais apropriado para fazê-lo que a opy. Concentrando as habilidades de
quem vem até ela para cantar, dançar, pronunciar “belas palavras” ou curar
doenças, pode-se dizer que a opy, a
“casa de reza”, condensa o fluxo de capacidades enviadas pelos Deuses à Terra
para propiciar o “bem viver” (iko porã),
no sentido mais pleno da expressão, à humanidade mbya.
Cantos, palavras
ditas de forma emocionada, poderes curativos, como o de “ver a doença” e
extraí-la, são todos intensivamente utilizados no contexto do ritual da reza
nas opy. E não há nada que se realize aí que não esteja em conexão com as
expressões vocais. Desde o assobio característico que marca o ato de sucção da
doença pelos xamãs às invocações em frases que o(a) dirigente faz ao som do mbaraka (violão de marcação rítmica) e
os mboraei, cantos “levantados” na
opy e acompanhados por coro de voz e dança, é sempre pelos ouvidos que o clima
da reza nos envolve. É certo que os sons são precedidos pelo enfumaçamento da
casa, assim como as curas, sempre feitas em meio ao uso abundante do tabaco
pelo xamã e seus auxiliares.
Veículo da
comunicação entre Deuses e humanos, o tabaco favorece o que se realiza
fundamentalmente como forma vocal: saberes que se “ouve” das divindades,
invocações dirigidas a elas, palavras que se “erguem”, assim como a própria
“alma” ou nhe’ë, que se manifesta
como “dizer”.
Os Mbya dizem que o mboraei, a música que se faz na opy, é
algo que as divindades “fazem descer” (mboguejy)
ali mesmo. É canto e dança que, descidos dos Deuses, devem ser levantados na
reza para animar os que os entoam. A reza, portanto, fortalece física e espiritualmente
seus participantes e dizem os Mbya que eles só continuam como etnia até hoje
por que a fazem, isto é, “não esqueceram
[a relação com] Nhanderu”.
O “fazer bem” aqui
alcançaria uma amplitude tal que os resultados benévolos - em saúde e bem-estar
- da reza se espalhariam por outras aldeias, dizem. Como se o tempo-espaço da
reza produzisse uma espécie de reunião dos humanos, filhos e filhas de Nhanderu
espalhados por diversos lugares na Terra.
Mas se a reza se
estende desta maneira, reunindo a humanidade mbya, outro aspecto da “reunião”
na reza merece ser considerado. Refiro-me à dimensão afetiva e a intensidade
emocional que marcam a experiência de cantar e dançar na opy, de ouvir a reza e
animar-se nela, de fazer junto a reza. Dizem os Mbya que o simples “entrar na
opy” é suficiente para que alguém receba os bons efeitos da reza. Sentando-se ali,
mantendo a “concentração” (ou seja, estando com o pensamento voltado para o que
pode vir, como ensinamento/capacidade, dos Deuses), já estaria a pessoa se
beneficiando, se “fortalecendo”, se sentindo bem. Melhor ainda, observam eles,
se a pessoa se anima e levanta de seu assento para cantar e dançar, junto com
outros participantes, os mboraei feitos no meio da casa.
Não há regras rígidas
de participação. “Só entra na opy quem quer”,
dizem os Mbya. E há de fato quem nunca entra e quem costuma fazê-lo
diariamente, podendo estas disposições variar bastante ao longo da trajetória
de vida das pessoas. Pode-se presenciar, durante determinado período em uma
aldeia certo padrão na realização da reza, considerando a presença de
participantes regulares no ritual, seus estilos de fazer a reza, etc. Contudo,
o clima produzido a cada sessão de reza guarda efetivamente algo de
imprevisível.
A música feita nas
opy, levantada por um dirigente homem ou mulher ou puxada por rapazes que tocam
o mbaraka, trazendo-o junto ao peito, cantada em um timbre específico pelo coro
de voz e dança, acompanhada pela marcação dos takuapu (taquaras rítmicas executadas pelas mulheres) e dos mbaraka mirï (chocalhos executados
pelos homens), e frequentemente também pelos rave’i (espécie de rabeca tocada por rapazes), é sempre um fazer
bonito, podemos dizer. Originada no mundo divino, é algo que traz em si beleza
e cuja execução exige capacidades pessoais que são admiradas pelos Mbya: o timbre
da voz de uma dirigente, a energia de um puxador de mboraei, a persistência na
dança de determinadas mulheres, a agilidade de um rapaz na dança chamada
xondáro, etc.
Se esta arte vocal
mbya é reconhecida como expressão profunda do “bom/bonito” que os Deuses fazem
manifestar na Terra, propicia, também, o que parece ser a experiência mais
intensa que se pode sentir na reunião com outras pessoas mbya. Como observei
anteriormente, há certo grau de imprevisibilidade no fazer a reza. Os mesmos participantes
não experimentam provavelmente da mesma maneira a reza a cada dia que dela
tomam parte. O clima criado nas opy pode variar, envolvendo mais ou menos
pessoas, fazendo durar mais ou menos uma noite de reza, etc. Mas não há quem
freqüente uma destas casas de reza mbya que não reconheça o envolvimento emocional
que aí se produz. Não há quem não sinta a emoção que a música cantada e dançada
aí nos causa.
O ponto de destaque
aqui é o da produção de um estado emocional que os Mbya traduzem como
“alegria”. “Levantar” cantos-reza na opy, com a voz, os instrumentos e o
próprio corpo, na dança (jeroky)
deixa as pessoas “alegres” (vy’a), cria um estado de animação tal que se faz
estender ao ponto de certos participantes desfalecerem na fileira de dança.
Enquanto o dirigente dá continuidade à música, repetindo uma seqüência de
frases cantadas ao som do mbaraka, o coro não pára de acompanhá-lo. Algum
participante começa a demonstrar sinais de esgotamento, os companheiros da
fileira de dança o sustentam, fazendo-o persistir na dança. E, se depois de um tempo,
a mulher ou homem desfalece, caindo na opy, alguém vem tratá-la(o) com o petÿgua (cachimbo), reavivando a pessoa
com a fumaça do tabaco. Sobre esse “cair quente [devido ao ‘calor’ da opy]” (akuo’a) os Mbya comentam que é Nhanderu
mesmo que o faz, e que neste momento sairia, pelo suor, toda doença ou indício
de doença que estivesse habitando a pessoa.
Cura e intensa
alegria afetam, então, os que se põem a cantar e dançar juntos na opy. Emoção
que se materializa no corpo das pessoas e cria um clima intenso entre elas,
pelo que experimentam ali mesmo. O que a reza produz, portanto, resulta da
experiência mesma de fazê-la. O estado “alegre” que espera-se dela não está
absolutamente garantido, mas se liga ao envolvimento emocional dos presentes,
que vincula-se, por sua vez, a qualidades estéticas reconhecidas na execução
das vozes e no envolvimento dos corpos.
Aqui estão em foco a
beleza das palavras pronunciadas em elaboradas metáforas que compõem o que os
Mbya chamam a “língua da opy” (que
só alguns velhos e velhas dominariam, dizem), a habilidade no canto, o vigor na
dança. Não apenas o que se reza/canta importa, mas como se faz isto. Propiciar
o sentimento de “alegria” aos que participam de uma sessão parece ser
constantemente uma expectativa dos dirigentes. É comum, quando se está
visitando a opy de outra aldeia, ouvir, a certa altura, a pergunta “revy’a pa?” (“você está contente?”), sentimento
que pode-se conceituar como resultado direto da participação no ritual e na
“inspiração por Nhanderu”, mas que se reconhece efetivamente como algo
experimentado por alguém.
É importante perceber
o lugar central que ocupam a dimensão afetiva e a experiência corporal na
abordagem da reza e de seus significados. O que a reza produz de bom-bonito é sentido-reconhecido
sensorialmente, se manifesta no ato mesmo do fazer o canto-dança, ou, usando
uma expressão mbya, é algo que se experimenta “com o corpo”.
Resumindo: conceitualmente,
o que é “bonito” e “bom” tem origem divina, é inspirado pelos Deuses. Bons
caminhos, bem-estar e saúde, belas palavras e cantos, tudo se origina em
Nhanderu. Por outro lado, o “bonito-bom” é, antes de tudo, sentido. Qualidades
boas, bonitas são efetivamente experimentadas, na convivência, na reunião na
reza, desdobrando-se em capacidades existenciais. “Fazer bem”, “fazer bonito”,
“sentir bem”, gozar do que é belo na vida são experiências vividas, sempre em
um mundo compreendido como feito de relações (em movimento): relações entre
pessoas que, por sua vez, se relacionam a todo momento com potências ou
qualidades “bonitas” ou “feias” que o habitam.
Baseado em texto de
Elizabeth Pissolato
Descobri hoje por acaso o seu blogo. Muito bom. Parabéns por difundir estas idéias. Abçs
ResponderExcluirObrigado, meu amigo. Que eu possa ser verdadeiramente um chacaruna.
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