Para os Guarani, os
delitos têm sua origem no sobrenatural, não sendo necessariamente dependentes
da vontade do indivíduo. Há uma convicção nisso, de modo que a figura do Nhanderú, o pajé, é
central no processo de manutenção da ordem. Sobretudo porque não se trata de
uma ordem meramente social, de convívio, e sim de uma ordem cósmica, vigiada
por Nyanderykeý, aquele
que cuida da terra.
Diante dos delitos
menos graves, é o próprio chefe político que dirime o conflito, assim que este
emerge no tecido social. O castigo ou punição, em tais casos podem ser
trabalhos comunitários, mas dependendo do delito cometido, o que ocorre é a
mera censura pública. Por outro lado, no caso de delitos graves, como o
homicídio, por exemplo, o equilíbrio e a ordem cósmica são profundamente
abalados, colocando a aldeia em perigo: o evento significa que existem
espíritos malignos à espreita.
Assim, enquanto para
a sociedade hegemônica o crime de homicídio é uma violação à ordem social e a
subtração do direito de viver de um determinado ser humano, dotado de dignidade,
para a sociedade Guarani tal ato é uma violação que compromete a integridade e existência
de toda uma comunidade, podendo inviabilizar a continuidade de suas práticas diárias.
Dessa forma, demanda a adoção de medidas mais severas que as aplicadas em
delitos menos graves; a mais alta instância do Direito Guarani deve ser
acionada: o ATY GUASSÚ (Grande Assembléia), que corresponde a um
ritual semelhante ao que os preceitos jurídicos ocidentais definem como
julgamento.
Em razão de o ato
transgressor afetar a todos, pois gera o desequilíbrio cosmológico, a prática da
jurisdição entre os Guarani Mbyá não é monopolizada por um grupo
especializado, mas exercida pela comunidade, no Aty Guassú, que
constitui, dessa forma, uma espécie de juízo holístico, ou jurisdição
holística. (MOREIRA, 2005).
Essa Grande
Assembléia, o Aty Guassú, é composta pelas autoridades religiosas e políticas
de outras aldeias e por todos os integrantes da comunidade onde a ocorrência do
crime causou o desequilíbrio. Mas não se trata de uma assembléia qualquer, e
sim a mais importante das assembléias Guarani, pois representa um diálogo com
os Deuses.
Com a detenção do
acusado e a comunicação do fato às aldeias vizinhas, dá-se inicio à Grande
Assembléia, que terá sucessivas audiências, nas quais serão pronunciados
discursos imbuídos de conteúdos sagrados e fórmulas rituais, em geral cantos
que aludem aos valores comunitários e à forma de vida correta. O acusado de
praticar o homicídio ouve os discursos, amarrado e sem comer e beber enquanto
durar seu julgamento.
Durante o Aty
Guassú os primeiros a falar são as maiores autoridades: o líder religioso e
o líder político, que não são interrompidos em hipótese alguma, bem como não há
limitação de tempo. É nesse momento que se pronunciam “As Belas Palavras” que,
de acordo com Clastres (1990), são para os Guarani as palavras que servem para
se dirigir aos Deuses. Belas e agradáveis à audição dos espíritos divinos, as
falas sagradas, embriagantes por sua grandeza, arrebatam a comunidade inteira
através dos sacerdotes inspirados, que repreendem o mal e reforçam a grandeza
dos verdadeiros homens (Clastres, 1990).
Trata-se de um
processo de purificação, purgação, pois se entende que naquele momento o
criminoso amarrado não é um Mbyá, e sim o espírito maligno, causador da
morte de um parente da aldeia. Por isso, sempre haverá uma pena, não há absolvição,
pois somente os deuses podem absolver o causador de uma ruptura. Às pessoas cabe aplacar os deuses, para que o
mal seja contido.
Durante o ritual,
ocorre a mediação entre o ato delituoso e o dano efetivamente causado. As
provas são organizadas e os atores envolvidos na trama, tanto as testemunhas,
quanto os familiares da vítima têm espaço para falar. O ritual é um evento de
extrema importância para o grupo, não em função do julgamento em si, mas,
sobretudo, pelo que representa para os Mbyá enquanto sociedade: trata-se
de um momento em que se procura recordar os valores da comunidade, atualizando
o pacto social que restabelece a unidade do grupo. A memória da tradição é
renovada ritualmente a fim de proteger e assegurar o cumprimento dos rigorosos códigos
morais, instituídos pelos deuses.
Ao final do
julgamento não se busca simplesmente apenar o causador do delito, e sim extinguir
o espírito maligno. A pena é secundária, a importância maior está na
personificação do mal. O que se quer é restabelecer o equilíbrio das relações
com o mundo dos ancestrais. Assim, mesmo no caso da pena capital, por exemplo,
é possível encontrar alternativa para seu cumprimento que não necessariamente a
morte física: trata-se do banimento. Com o banimento do convívio, que é a morte
social da pessoa, não se deseja com isso a vingança ou a compensação da dor em
função da perda, o que se pretende com tal sentença é abortar o mal maior que
pode recair sobre a comunidade. (MOREIRA, 2005).
Para os Guarani, o
desequilíbrio causado pelo delito só pode ser neutralizado se forem seguidas as
regras ditadas pelo Nhanderuvuçú
(Nosso Grande Pai), regras que são a origem sagrada do Direito Guarani. Os
procedimentos rituais e religiosos, ensinados pelo Grande Pai após o primeiro
desequilíbrio (narrado no mito dos Gêmeos – Kuarahy e Jacy), são o meio de
evitar e de aplacar esse desequilíbrio.
O fundamento último
do Direito Guarani são as regras e os procedimentos ditados pelo Nhanderuvuçú,
que são também a origem da religião. É a mitologia sagrada que legitima o Aty
Guassu, onde se lembrará a todos a verdadeira forma de viver, assim como
todas as regras jurídicas Guarani. Nesse sentido, Moreira (2005) afirma que
durante o Aty Grassú fica demonstrada a combinação binária de
legalidade, que possui uma dupla fonte: a lei perfeita do Grande Pai e a cópia
imperfeita desta, que é a lei da comunidade.
Considerando o
contexto cultural dos Guarani Mbyá,
compreende-se porque estes não vêem sentido algum nos procedimentos
jurídicos praticados pela sociedade envolvente. Pois seja qual for a sentença
dos brancos a um Mbyá, que tenha com seus atos contaminado o seu povo,
sua punição individual jamais será aceita pelos Deuses: o mal permanecerá à
espreita. Apenas por meio do Aty Guassú os demônios, o mal, pode ser personificado,
punido e banido, restabelecendo o equilíbrio da aldeia.
O sentido do Aty
Guassú, além da resolução do próprio conflito instaurado, por conta da desobediência
de um dos membros do grupo, é, portanto, a reconciliação da comunidade com os Deuses
ofendidos. Por essa razão é tão importante que os procedimentos rituais e
religiosos, ensinados pelo Nhanderú, o líder espiritual, sejam
observados com rigor. Somente com os rituais de dança, canto e orações
preparatórias para o caminho expiatório é possível a reabilitação social do
grupo; a contaminação comum originada pelo delito é então expulsa ou purgada:
voam para a velha cabana os Morcegos Originários, demônios das trevas.
Texto de Maria do Socorro Lacerda Lima e Estella Libardi de Souza
Nossa gente, nossa raça!
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