Anhanga, segundo Thevet, ratificado por
Simão de Vasconcelos, é um sinônimo de Jurupari, termo muito utilizado pelos
tupinambá do Maranhão (onde estiveram Évreux e Abbeville), por influência de
outras mitologias amazônicas muito difundidas.
Não há um mito claro sobre a origem de
Anhanga. Thevet fala, de uma forma muito displicente, que Anhanga é o mais
terrível espírito criado pelo “Grande Tupã” – o que não me soa como ideia tupinambá.
E também não sabemos se o diabo filho da Lua e engendrado num jacaré, conforme
relato de Francisco Soares, é anhanga. Não obstante, é hipótese improvável
demais, porque anhanga parece preexistir a Jaci e Pirapanema, como se intuiu do
relato de Thevet.
Em Thevet, Anhanga é aparentemente uma
personagem específica, e não uma classe de seres. O tupi não distinguia a
categoria de número, morfologicamente. Isso pode ter levado à interpretação de
que o substantivo “anhanga” estivesse no singular e fosse um nome próprio. No mito,
Anhanga está no fundo das águas e os gêmeos Jaci e Pirapanema têm que
enfrentá-lo para roubar o anzol e a isca com os quais ele pesca o peixe anhá.
Léry e Thevet afirmam que ele atormenta as anguera
(“alma”) que foram covardes, ou seja, que não vingaram os parentes mortos,
matando e comendo inimigos. Seria esse um exemplo da escravidão que anhanga
impõe: os mortos submetidos têm que moquear o peixe que o senhor pesca.
Todavia, devo confessar que a ideia de um Anhanga que atormenta os mortos me
parece influenciada pela mitologia cristã. O mais provável é que as almas dos
covardes acabem indo morar no mundo subterrâneo, o mundo aquático por excelência,
onde não há prazer possível (que só se encontra na Terra sem mal) e onde anhanga as assusta e espanca, como pode fazer
com os vivos. Aliás, Thevet fala que anhanga “carrega” a alma dos mortos: ou
seja, pode arrastá-las par ao mundo subaquático e impedi-las de alcançar a
terra sem mal.
A ligação de anhanga com a água e os
mortos é evidente. O que não é tão certo é que ele seja um ente único.
Francisco Soares e Jácome Monteiro afirmam que os anhanga – no plural, sem
maiúscula – são a alma dos mortos. Ora, se retomamos os textos de Thevet, não é
difícil perceber uma segunda leitura possível: sendo anhanga sinônimo de morto,
neste contexto, os mortos é que viveriam no fundo das águas, pescariam e
moqueariam o anhá, seu alimento. Anhá é uma espécie de cascudo, que não pega anzol,
e são conhecidos por nadarem rendes ao fundo dos rios.
Uma hipótese é que anhanga são a alma
dos primeiros mortos, aqueles queimados no incêndio enviado pelo Velho. Na
falta de um mito explícito sobre sua origem, a gênese dos anhanga decorre implícita
e naturalmente dessa passagem. Senão, vejamos: enquanto o Velho vivia entre os
homens, não faz sentido falar em morte; é o Velho que cria a morte, enviando o
fogo do céu. Cabe perguntar: o que foi feito da alma desses primeiros homens?
Ou foram aniquiladas, ou ficaram na terra. Não temos testemunhos claros sobre a
aniquilação de almas; mas sabemos que o incêndio foi apagado por uma grande
chuva, que arrastou as cinzas e se alojou na grande depressão, formando o
oceano. É natural que pensemos que as almas desses primeiros homens (que para
os Tupinambá possuíam uma certa materialidade) fossem arrastadas nesse mesmo
turbilhão, indo habitar as profundezas das águas. Estas profundezas, como se
disse, são a morada de anhanga. Logo, essas almas são os anhanga. Isso dá
consistência à proposição de Francisco Soares e Jácome Monteiro.
É por terem sido queimadas que os
anhanga ainda temem o fogo e são repelidos por ele. Não creio que recebessem
oferendas de objetos e se aplacassem: aqui há confusão entre anhanga e Curupira
em fontes que tendem a unificar os “diabos”, atribuindo a uns características
de outros.
Évreux escreve que jurupari, ou anhanga,
habitam particularmente o lugar onde os mortos são enterrados. Creio que se
trate não de moradia, mas de um lugar que atrai sua presença, pois anhanga pode
devorar os cadáveres se não houver alimento na sepultura e – porque persegue as
anguera – pode rondar as sepulturas em algumas circunstâncias. Por essa e
outras razões, os Tupinambá mudavam de residência quando havia já muita gente
enterrada.
Anhanga pode vir à terra e aparecer aos
vivos, para persegui-los, segundo Thevet e Léry, particularmente dentro d’água
ou nas margens de rios e fontes. Pode ser também em terra. Thevet diz que ele
pode assumir diversas formas e tanto ele quanto Staden afirmam explicitamente
que os índios só saem da oca à noite munidos de fogo, para afugentá-lo.
Devemos a Simão de Vasconcelos a única
tentativa de definir anhanga em face de outras entidades. Segundo esse
cronista, anhanga é um espírito mau, opinião que não ajuda muito, mas que serve
para colocá-lo no nível mais alto de periculosidade, em relação aos demais.
Creio que Thevet não tenha razão quando
diz que anhanga possa fazer o bem ou o mal; e que se comunique, para esse fim,
com pajés e caraíbas. O contexto dessas afirmações é claramente o de ritos
ligados à consulta do espírito UIUCIRÁ,
que prediz o futuro.
Outro dado que me parece sem fundamento
é a identificação de anhanga com Caajara, que identifiquei com o Curupira, e o
indecifrável Raa-onan, que pode ser kaa-onan. Os cronistas em geral tendiam a
classificar todos esses espíritos como diabos e confundirem uns com outros.
Texto de Alberto Mussa
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