sábado, 21 de abril de 2012

ANHANGA


Anhanga, segundo Thevet, ratificado por Simão de Vasconcelos, é um sinônimo de Jurupari, termo muito utilizado pelos tupinambá do Maranhão (onde estiveram Évreux e Abbeville), por influência de outras mitologias amazônicas muito difundidas.

Não há um mito claro sobre a origem de Anhanga. Thevet fala, de uma forma muito displicente, que Anhanga é o mais terrível espírito criado pelo “Grande Tupã” – o que não me soa como ideia tupinambá. E também não sabemos se o diabo filho da Lua e engendrado num jacaré, conforme relato de Francisco Soares, é anhanga. Não obstante, é hipótese improvável demais, porque anhanga parece preexistir a Jaci e Pirapanema, como se intuiu do relato de Thevet.

Em Thevet, Anhanga é aparentemente uma personagem específica, e não uma classe de seres. O tupi não distinguia a categoria de número, morfologicamente. Isso pode ter levado à interpretação de que o substantivo “anhanga” estivesse no singular e fosse um nome próprio. No mito, Anhanga está no fundo das águas e os gêmeos Jaci e Pirapanema têm que enfrentá-lo para roubar o anzol e a isca com os quais ele pesca o peixe anhá. Léry e Thevet afirmam que ele atormenta as anguera (“alma”) que foram covardes, ou seja, que não vingaram os parentes mortos, matando e comendo inimigos. Seria esse um exemplo da escravidão que anhanga impõe: os mortos submetidos têm que moquear o peixe que o senhor pesca. Todavia, devo confessar que a ideia de um Anhanga que atormenta os mortos me parece influenciada pela mitologia cristã. O mais provável é que as almas dos covardes acabem indo morar no mundo subterrâneo, o mundo aquático por excelência, onde não há prazer possível (que só se encontra na Terra sem mal) e onde anhanga as assusta e espanca, como pode fazer com os vivos. Aliás, Thevet fala que anhanga “carrega” a alma dos mortos: ou seja, pode arrastá-las par ao mundo subaquático e impedi-las de alcançar a terra sem mal.

A ligação de anhanga com a água e os mortos é evidente. O que não é tão certo é que ele seja um ente único. Francisco Soares e Jácome Monteiro afirmam que os anhanga – no plural, sem maiúscula – são a alma dos mortos. Ora, se retomamos os textos de Thevet, não é difícil perceber uma segunda leitura possível: sendo anhanga sinônimo de morto, neste contexto, os mortos é que viveriam no fundo das águas, pescariam e moqueariam o anhá, seu alimento. Anhá é uma espécie de cascudo, que não pega anzol, e são conhecidos por nadarem rendes ao fundo dos rios.

Uma hipótese é que anhanga são a alma dos primeiros mortos, aqueles queimados no incêndio enviado pelo Velho. Na falta de um mito explícito sobre sua origem, a gênese dos anhanga decorre implícita e naturalmente dessa passagem. Senão, vejamos: enquanto o Velho vivia entre os homens, não faz sentido falar em morte; é o Velho que cria a morte, enviando o fogo do céu. Cabe perguntar: o que foi feito da alma desses primeiros homens? Ou foram aniquiladas, ou ficaram na terra. Não temos testemunhos claros sobre a aniquilação de almas; mas sabemos que o incêndio foi apagado por uma grande chuva, que arrastou as cinzas e se alojou na grande depressão, formando o oceano. É natural que pensemos que as almas desses primeiros homens (que para os Tupinambá possuíam uma certa materialidade) fossem arrastadas nesse mesmo turbilhão, indo habitar as profundezas das águas. Estas profundezas, como se disse, são a morada de anhanga. Logo, essas almas são os anhanga. Isso dá consistência à proposição de Francisco Soares e Jácome Monteiro.

É por terem sido queimadas que os anhanga ainda temem o fogo e são repelidos por ele. Não creio que recebessem oferendas de objetos e se aplacassem: aqui há confusão entre anhanga e Curupira em fontes que tendem a unificar os “diabos”, atribuindo a uns características de outros.

Évreux escreve que jurupari, ou anhanga, habitam particularmente o lugar onde os mortos são enterrados. Creio que se trate não de moradia, mas de um lugar que atrai sua presença, pois anhanga pode devorar os cadáveres se não houver alimento na sepultura e – porque persegue as anguera – pode rondar as sepulturas em algumas circunstâncias. Por essa e outras razões, os Tupinambá mudavam de residência quando havia já muita gente enterrada.

Anhanga pode vir à terra e aparecer aos vivos, para persegui-los, segundo Thevet e Léry, particularmente dentro d’água ou nas margens de rios e fontes. Pode ser também em terra. Thevet diz que ele pode assumir diversas formas e tanto ele quanto Staden afirmam explicitamente que os índios só saem da oca à noite munidos de fogo, para afugentá-lo.

Devemos a Simão de Vasconcelos a única tentativa de definir anhanga em face de outras entidades. Segundo esse cronista, anhanga é um espírito mau, opinião que não ajuda muito, mas que serve para colocá-lo no nível mais alto de periculosidade, em relação aos demais.

Creio que Thevet não tenha razão quando diz que anhanga possa fazer o bem ou o mal; e que se comunique, para esse fim, com pajés e caraíbas. O contexto dessas afirmações é claramente o de ritos ligados à consulta do espírito UIUCIRÁ, que prediz o futuro.

Outro dado que me parece sem fundamento é a identificação de anhanga com Caajara, que identifiquei com o Curupira, e o indecifrável Raa-onan, que pode ser kaa-onan. Os cronistas em geral tendiam a classificar todos esses espíritos como diabos e confundirem uns com outros.

Texto de Alberto Mussa

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