No
levantamento das religiões existentes no mundo não é comum a inclusão das
religiões das sociedades indígenas, apesar de Emile Durkheim considerar a
importância das mesmas: “[…] não são
menos respeitáveis do que as outras. Elas respondem às mesmas necessidades,
desempenham o mesmo papel, dependem das mesmas causas; portanto podem
perfeitamente servir para manifestar a natureza da vida religiosa”. Judaísmo,
cristianismo, islamismo, budismo e hinduísmo são exemplos de grandes religiões,
que possuem muitos adeptos, porque passaram por um longo processo de
globalização. Existem, porém, numerosas outras religiões que ficaram à margem
desse processo. É o caso das religiões das chamadas sociedades indígenas. No
Brasil são muito numerosas e pouco estudadas. Capítulos ou informações
esparsas sobre as crenças religiosas podem, também, ser encontrados nas
diversas monografias sobre os índios brasileiros.
Não é nossa intenção, neste breve trabalho, fazer um inventário
das diferentes religiões indígenas do Brasil. O que pretendemos é utilizar,
como exemplo, uma determinada religião que possibilite ao leitor entender
algumas das características dos sistemas de crenças existentes entre os índios
do Brasil. Utilizaremos, ainda que de maneira parcial, o exemplo tupi-guarani,
entre outras razões pelo fato de que três dessas sociedades foram objetos de
nossos estudos.
Quando Durkheim procurou descrever as formas elementares da vida
religiosa das “sociedades primitivas”, encontrou o seu modelo nas religiões
totêmicas do continente australiano. No Brasil, a equivalência encontra-se nas
religiões xamanísticas. Segundo Mircea Eliade (1994), desde o princípio do
século XX, “os etnólogos adotaram o
costume de empregar indistintamente os termos xamã, homem-médico, feiticeiro
ou mago, para designar determinados indivíduos dotados de prestígio
mágico-religioso e reconhecidos em todas as ‘sociedades primitivas’ ’’.
A palavra xamã é originária de um povo siberiano, os
tungus. Eliade restringiu o uso do termo aos especialistas do religioso que
acreditam, através do estado de transe, entrar em contato com seres
sobrenaturais, sejam eles as almas dos seus antepassados ou diferentes tipos de
espíritos. Este é o caso da maioria dos líderes espirituais indígenas. A
palavra tupi-guarani que, entre nós, designa o xamã é pai’é, grafada em português como pajé.
Embora exista uma surpreendente uniformidade nos procedimentos dos
xamãs, ocorre uma grande diversidade de explicações para o surgimento dos
mesmos. Em alguns casos, a explicação é a hereditariedade, ou seja, somente
podem ser xamãs os descendentes de um outro. No caso tupi-guarani, o fator
hereditário não é necessário. Acredita-se que se trata de um dom que deve ser
descoberto e desenvolvido através do aprendizado. Entre os assurinis, do Rio
Tocantins, constatamos a existência de um ritual denominado opetimo (literalmente:
comer fumo) que tem como objetivo identificar, entre os jovens, aqueles que têm
o potencial de se transformar em um pai’é. Entre cantos e danças, os
candidatos fumam um grande charuto de tabaco, engolindo a fumaça. Os que se
sentem mal, ou seja, têm ânsia de vômitos, são descartados. Os que desmaiam são
os escolhidos. “Omano”, grita o pai’é oficiante do ritual, ou
seja: “ele morreu”. É “morrendo” que se faz a viagem para o outro mundo, o que
torna possível o contato com os antepassados.
A maior parte do trabalho dos xamãs consiste em efetuar curas
através do controle dos espíritos que provocam as doenças e, até mesmo, a
morte. O texto seguinte descreve como uma cura é efetuada:
“Os pajés
preferem curar à noite, uma das razões é que assim garantem uma audiência, o
que seria difícil durante o dia, quando muitos estão para as roças. O pajé
inicia a cura cantando as canções daquele sobrenatural que o seu inquérito
leva a considerar como provável. Acompanha a si mesmo, marcando o ritmo da
canção como uma batida forte de pé chacoalhando o maracá. Dança em volta do
paciente; em geral, a família deste e alguns dos circunstantes o acompanham. A
esposa ou um ajudante preparam-lhe os cigarros feitos de folhas de fumo
enroladas em fibra de tawari. Um ajudante toma o maracá e o pajé preocupa-se
daí por diante com a cura propriamente dita. Chupa repetidas vezes no cigarro
para soprar a fumaça em suas mãos ou no corpo do paciente. Afasta-se para um
lado e chupa no cigarro até que, meio tonto, recua de súbito e leva as mãos ao
peito, o que indica ter recebido o espírito em seu corpo. Sob a influência do espírito
o pajé comporta-se de maneira peculiar. Se é espírito de macaco, por exemplo,
dança aos saltos, gesticula e grita como esse animal. O transe se prolonga
enquanto o espírito está forte. Algumas vezes o espírito ‘vem forte demais’ e
ele cai ao chão inconsciente. É durante o transe, enquanto está possuído pelo espírito, que o pajé cura” (cf. Wagley
& Galvão, 1961).
É comum que o xamã chupe uma parte do corpo do paciente e, em
seguida, mostre um pequeno objeto, que teria retirado de dentro do mesmo. No
caso tenetehara, relatado acima, o pajé escondia esse objeto dentro da mão para
fazê-lo desaparecer depois.
É na direção dos rituais coletivos que o xamã demonstra o seu
prestígio junto ao grupo. Gostaríamos de descrever um ritual a que assistimos
entre os suruís, do sudeste do Pará. O Ahiohaia
ocorre na primeira lua cheia, depois da queimada da roça. A providência
inicial para a sua celebração é o erguimento de uma casa cerimonial no centro
do pátio da aldeia. Ela é toda fechada com folhas de palmeira tendo apenas uma
pequena porta. Essa casa, que recebe o nome de tokasa (esta mesma palavra significa “tocaia”), é a
representação da itakuara (literalmente
“buraco na pedra”, caverna onde vivem os karuara). Enquanto durar a lua
cheia, os homens, devidamente pintados com tinta de jenipapo, participam de uma
dança que se realiza desde o nascer do sol até cerca de duas horas mais tarde.
Recomeçam ao entardecer, com a mesma duração, até o pôr-do-sol. Nesse período é
interditado aos participantes deixar a aldeia, por qualquer motivo, não podendo
banhar-se nos riachos e principalmente entrar na floresta. Somente
determinadas pessoas podem participar da caça e ir ao igarapé buscar a água
necessária, inclusive, para o banho dos participantes. Acredita-se que o xamã,
além de atrair os karuara
– uma variedade de seres sobrenaturais –, atrai também as almas dos
antepassados das pessoas presentes no ritual. De fato, uma das canções
entoadas no início do ritual possuía um estribilho que era precedido pelos
nomes de todos os antepassados que ainda constam da memória do grupo. No final
do ritual, a casa é desmanchada e o material jogado bem longe no mato.
A enorme dispersão dos povos tupi-guaranis por uma imensa área
geográfica, conjugada com um longo isolamento, provocou diferentes
transformações em seus sistemas de crenças. Procuramos, neste trabalho,
acentuar mais as semelhanças do que o contrário. Mas é preciso alertar o leitor
que em muitos pontos ainda existe, por parte dos diversos pesquisadores, uma
incompreensão do sistema religioso, o que demanda mais pesquisas. Um desses
pontos refere-se à noção de alma. Em sua denominação mais usual, provavelmente
referindo-se apenas à alma de um homem vivo, o termo utilizado é owera. Uma outra denominação
refere-se aos espíritos dos mortos, asonga.
Entre os kaapor, a palavra utilizada para este caso é anhang, que freqüentemente é traduzida como “diabo”.
Diferentemente dos karoara, que são espíritos independentes dos homens,
os asonga interferem nos sonhos dos vivos, perambulam pela floresta,
podem ser vistos, tornando doente quem tiver a infelicidade de encontrá-los.
Mas não vagam eternamente pelo mundo: ao contrário, a sua permanência é curta e
um dia atingem o “céu”, através da itakuara. Lúcia Andrade (1992), que
trabalhou entre os assurinis do Tocantins, obteve as informações que esclarecem
a confusão entre owera e asonga: “[o pajé] aprende as canções nos sonhos com os mortos, com seus
espectro-terrestres, denominados asonga.
Ao morrer, o ser humano divide-se em espírito-celeste (que se dirige à aldeia
dos mortos e com o qual não se tem mais contato) e em espectro-terrestre, que
vive na mata e ronda a aldeia […]. Há uma clara identificação entre o asonga e a personalidade do morto;
não se trata de uma manifestação repetitiva e impessoal. Os laços de parentesco
e amizade parecem inclusive perpetuar-se”.
Utilizamos a palavra “céu” para indicar o local onde vivem as
almas dos antepassados e o herói mítico e principal ancestral, Mahyra. Existem divergências a respeito
desse local: os suruís e os assurinis referem-se a uma região acima das nuvens,
a que se chega através da itakuara. Os guaranis preferem se referir a
uma “terra sem males”. Nimuendaju colheu uma descrição entre os apopokuvas: “Perto da casa de Mahyra está uma grande
aldeia. Seus habitantes vivem magnificamente. Para seu sustento diário necessitam
apenas de algumas pequenas frutas semelhantes à cuia: ela se planta e se colhe
sozinha. Mahyra e seus companheiros no campo de ikawéra têm o nome de karoara.
Quando envelhecem não morrem, mas tornam-se novamente jovens. Cantam, dançam e
celebram festas sem cessar”.
É difícil definir o que sejam os karoara. Wagley e Galvão
(1961) concordam em parte com Nimuendaju: “Os
Tenetehara se referem aos sobrenaturais pela designação genérica de karoara,
porém os distingue pelo menos em quatro categorias: criadores ou heróis
culturais (Mahira, Mukwani, Tupã e Zurupari); os donos das florestas, das águas
e dos rios (Ywan, Maranaywa); os azang, espíritos errantes dos mortos; e os
espíritos de animais (piwara)”.
A nossa interpretação, resultante de trabalhos entre suruís e
assurinis, nos levou a considerar os karoara como espíritos especiais
que podem causar doenças ou mortes. Nas situações de cura, os pai’é os
retiram do corpo do doente, podendo também fazer o mesmo com os asonga. Entretanto,
outros pesquisadores chegaram a conclusões diferentes. Lúcia Andrade considera
que o karoara é uma espécie de força através da qual o pai’é recebe
a sua força, desde que ela lhe tenha sido transferida pelo espírito-onça.
Segundo Andrade (1992), “possuir a força
implica em responsabilidade e perigo. Caso uma série de cuidados não sejam
observados o karoara pode matar o seu próprio dono, ou ainda outros
indivíduos”. Compete aos pai’é retirar dos homens o karoara,
quando este ameaça a sua integridade. É semelhante a explicação de Antônio
Carlos Magalhães (1994), que estudou os parakanãs do Tocantins, com a diferença
que, nesse caso, o karoara aparece mais como uma força negativa. Em todo
caso, torna-se necessário um estudo comparativo mais aprofundado sobre o tema.
Pelo texto acima, o leitor tomou conhecimento da existência de um
ser sobrenatural superior: Mahyra. Ele é a personagem central de um equívoco
que data de cinco séculos: no século XVI, os jesuítas procuraram descobrir uma
entidade sobrenatural que pudesse ser comparada ao Deus cristão a fim de
facilitar a catequese. E tudo indica que foi Nóbrega quem fez a escolha: “Esta gentilidade nenhuma coisa adora, nem
conhece Deus, somente aos trovões chamam de Tupan; que é como quem diz coisa
divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao
conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pai Tupan”. Não há dúvida que a adoção
dessa palavra, com esse sentido, constituiu em mais uma dificuldade para as
missões jesuíticas. Em 1914, Nimuendaju criticou essa atitude dos missionários
e demonstrou o pequeno papel ocupado por Tupã na cosmogonia indígena.
De um modo geral, Tupã poderia ter sido melhor definido como um espirito
temido por controlar o raio e o trovão e, assim, conseqüentemente, a morte e a
destruição. Dessa maneira os sentimentos indígenas para com essa entidade são
mais de medo do que veneração. Durante a nossa permanência entre os kaapor, por
ocasião de uma tempestade, acompanhada de muitos trovões e raios, os índios
abandonaram as suas casas, armados de arcos ou rifles, e fizeram vários
disparos contra o céu, acompanhando esses gestos com imprecações raivosas,
numa tentativa de dissimular o medo que Tupã lhes inspira. Quando a natureza se
acalmou, um deles voltou para casa para guardar o seu rifle, e me disse
sorrindo: “Tupã zangado muito”.
Uma melhor comunicação entre os tupis e os jesuítas teria ocorrido
se estes tivessem dado atenção às palavras de frei André Thevet (1941): “Os selvagens fazem menção a um grande
senhor, chamando-lhe em sua língua de Tupã, o qual, dizem, lá
no alto troveja e faz chover; mas de nenhum modo sabem orar ou venerar, nem tem
lugar próprio para isto. E se alguém lhes fala de Deus, como o fiz, escutam
admirados e atentos, perguntando se o Deus que se fala não seria talvez o
profeta que lhes ensinou a plantar essas grossas raízes, chamadas por eles de hetich [mandioca]”.
Thevet
referia-se a Mairemonan, o herói
mítico dos tupinambás, que lhes ensinou a plantar, utilizar o fogo, fabricar
instrumentos, além de fornecer-lhes as normas de seu comportamento social,
sendo considerado como o grande ante passado dos tupis. Os tupis da Amazônia o
chamam de Mahyra, Bahira, Maira ou Mair. Do ponto
de vista antropológico ele pode ser definido como um herói civilizador, desde
que os tupis não têm a idéia de um ser supremo, eterno e criador de todas as
coisas, como o Deus cristão. Na mitologia kaapor, Mahyra saiu de um pé de
jatobá, em um mundo calcinado por um grande incêndio, plantando novamente tudo
o que o fogo queimou. O seu grande feito foi a criação do povo tupi. Tudo
começou quando, recém-saído do pé de jatobá, sentiu o desejo sexual. Encontrou,
então, uma fruta que lhe lembrou o órgão sexual feminino. Transformou a fruta
em uma mulher, com quem teve relações sexuais e gerou dois gêmeos: Kwarahi, o Sol, e Yahy, Lua (para os tupis, Sol e Lua são do gênero masculino).
Mahyra, como vimos, não é eterno, mas imortal. Quando envelhece, “faz como as cobras e as aranhas, troca de
pele e fica novo novamente” (Ribeiro,1974).
Uma
das funções de um sistema de crença é ser explicativo. Se Mahyra é imortal, por
que não o são os seus descendentes? A resposta está contida na continuação do
mito da criação. Após ter criado a primeira mulher – nenhuma variação do mito
faz menção ao seu nome – ele construiu uma casa e plantou toda uma roça de
milho. No dia seguinte, ordenou que a mulher fosse colher o milho. Esta
retrucou que não havia tempo suficiente para o milho ter crescido, o que não
era verdade. O herói ficou furioso com esse comportamento e partiu para o outro
mundo, deixando na terra a sua mulher, grávida dos seus dois filhos. Coube a
Kwarahi e Yahi continuar a obra civilizadora de seu pai, transformando os
homens de seres da natureza em seres culturais.
Os
primeiros homens misturavam-se com os animais, estes falavam como os homens,
tinham casas e usavam arma. Uma variante xinguana fala de relações sexuais
entre homens e animais. O próprio Mahyra, em uma variante tenetehara, desconfia
que Yahi não é seu filho, mas de Mukura (gambá). Foi Mahyra o autor do primeiro
ato civilizatório, ao roubar o fogo dos urubus e entregá-lo aos homens. Os
gêmeos, seus filhos, tomaram as armas dos animais, destruíram suas casas e
roças, dizendo-lhes: “Vocês não são mais
gente agora” (cf. Schaden, 1947).
Em
todas as religiões indígenas, não se pode esperar uma estrutura que funcione
dentro de uma lógica que é nossa. Os tupi guaranis se consideram descendentes
de Mahyra, mas não têm uma genealogia mítica para tornar clara essa
descendência. Não se preocupam mesmo em explicar com quem os gêmeos, do sexo
masculino, se casaram para dar continuidade à estirpe de Mahyra. Ao contrário
do texto bíblico que explica que Caim teve que buscar uma esposa ao “leste do
Éden”, o mito tupi omite essa informação. Em todo caso, imaginam que outras
mulheres deveriam existir, porque o que Mahyra fez foi, apenas, criar os tupis.
O mundo já existia antes dele, que saiu de um pé de jatobá em uma terra
destruída por um grande incêndio. Mas não é importante saber quem são as
mulheres em uma sociedade fortemente patrilineal, pois os filhos descendem
apenas do pai. É por tudo isso que até hoje os kaapor exclamam ao verem uma
estrela cadente deslocando pelo céu: “Lá vai Mahyra, o nosso avô!”.
Texto de ROQUE DE
BARROS LARAIA - da UCG e da
UnB.