sábado, 17 de julho de 2010

ÑE’E – A PALAVRA


O que podemos chamar de “religião” no povo Guarani está fundamentado na PALAVRA. Os termos ÑE’ẽ, AYVU e à – traduzidos geralmente por “palavra” – significam também “voz, fala, linguagem, idioma, alma, nome, vida, personalidade”, e possuem sobretudo uma essência espiritual. A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os Guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. Dentre todas as faculdades humanas, são as diversas formas do “dizer” as vias, por excelência, de comunicação com as divindades, pois estas são essencialmente seres da fala. A seguir, passo a considerar alguns aspectos desse pensamento.

A gravidez é entendida como resultado de um sonho; o nascimento, o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança, oñemboapyka. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente a que o mantém em pé, que o humaniza.

A ligação entre palavra, ser animado e verticalidade também pode notar-se em várias expressões em que o radical “e”, “dizer” em língua mbyá, desempenha um papel decisivo. Assim, os que restauram a palavra, eepya, são invocados para salvar um moribundo da morte; já para a nomeação de uma criança são invocados os ery mo’a’ã, aqueles que mantêm ereto o fluxo do dizer (Cadogan, 1950b, p. 235). A chegada à “terra sem males” sem passar pela prova da morte é expressada em língua mbyá por oñemokandire, que significa literalmente “fazer com que os ossos permaneçam frescos”, sem perder sua natureza, sua forma humana, ereta, sua postura vertical (Cadogan, 1962, p. 59). É a verticalidade assegurada pela palavra que diferencia o ser humano vivo dos outros seres e dos seres humanos mortos, doentes ou sem nome divinizador.

Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade e tentará exorcizar o primeiro sentimento mau que acomete o ser humano: a cólera. Os grupos kaiová e os mbyá acreditam que, à semelhança do herói mítico, “Nosso Irmão Maior”, Ñanderyke’y, a criança no período de lactância irrita-se facilmente contra o seio de sua mãe e que esse gesto inaugura a primeira forma de saber que é má. Por isso, desde tenra idade as crianças são orientadas a vencer esse sentimento, escutando sua verdadeira palavra (seu nome divinizador) e ouvindo os conselhos que pessoas experimentadas na palavra divina lhes derem (Cadogan, 1959, p. 19). Os meninos terão ainda a oportunidade de firmar essa palavra divina no rito de introdução do enfeite labial.

As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades, etc., – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para “trazer de volta”, “voltar a sentar” a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde. Ao insucesso da terapia, assim como à apatia de alguns frente às crises, referem-se com o termo ñemyrõ, que quer dizer “enfezar-se”, “ficar triste”, “só”. Assim ficam, por exemplo, as crianças que não passaram pelo ritual de iniciação na onomástica tradicional do grupo. Carecendo de um dos enfeites essenciais para viver, elas crescem sem escutar a ninguém e acabam, facilmente, cometendo suicídio.

Finalmente, quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir (-kue, -ngue), um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais (ñe’ẽngue, ãngue), um ex-lugar, que muitas vezes prefere-se esquecer, fazendo de conta que ele nunca existiu. Evita-se falar na pessoa falecida, seus pertences são exterminados, a casa onde morou abandonada, seu nome esquecido. É como se evocar sua ausência fosse um gesto perigoso para os vivos.

Uma das associações mais freqüentes com a qual se costuma traduzir os lexemas básicos (ñe’ẽ e ayvu) é PALAVRA-ALMA, que é a palavra divina e divinizadora. Na teologia cristã, “alma” é algo diferente de “corpo”; é parte constitutiva do ser humano, mas não corpórea, dizendo-se que ela se separa do corpo por ocasião da morte. Esse dualismo é devedor mais ao pensamento helênico do que ao hebraico. Os termos guarani traduzidos por “alma” se assemelham ao termo hebraico nephesh, que designa o indivíduo integralmente. Alma é, nesse caso, o próprio “eu”. A palavra ã e ãnga são os termos do guarani clássico com os quais se traduziu o conceito incorpóreo “alma”, trazido pelos missionários. Mas os termos em questão na associação palavra-alma são ñe’ẽ e ayvu, que podem ser traduzidos tanto como “palavra” como por “alma”, com o mesmo significado de “minha palavra sou eu” ou “minha alma sou eu”. Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como todo.

A criação da palavra original e dos que seriam pais e mães da humanidade antecedeu à criação da primeira terra. No mito dos Mbyá, “criou nosso Pai o fundamento da linguagem humana e a tornou parte de sua própria divindade, antes de existir a terra (...) tendo refletido, profundamente, da sabedoria contida na sua própria divindade, e, em virtude da sua sabedoria criadora, criou aqueles que seriam companheiros e companheiras de sua divindade” (Cadogan, 1959, p. 19, 21). Desse modo, a humanidade que habitava a primeira terra é constituída “por” e “na” palavra, “por” e “na” substância divina. Esse estatuto ontológico implicava a obrigação essencial de permanecer conforme as normas enunciadas pelos deuses, isto é, existir de acordo com sua própria natureza de humanos-divinos.

Hoje, distante dessa terra e dessa humanidade que se consubstanciava com a divindade, a reminiscência da estada entre os divinos pode conferir à palavra o poder de instaurar uma comunicação privilegiada e, aos humanos, a coragem para pedir a restituição da sua verdadeira natureza de seres destinados à totalidade acabada do bem viver, no coração eterno da morada divina. A atitude dos indígenas, nesse sentido, é oposta à dos personagens na saga bíblica das origens. Estes sentem a culpa por terem aspirado a ciência de Deus; os indígenas, não; eles exigem que os Deuses lhes restituam o saber (Cadogan, 1959, p. 19, 21). No pensamento guarani, a diferença entre mortais e imortais não é incomensurável; a palavra é precisamente sua medida comum, é a que leva os primeiros a desejarem a imortalidade (Clastres, H., 1978, p. 88-89).

Texto de Graciela Chamorro

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