quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

ABUNDÂNCIA GUARANI

"Quatro voltas da lua" (ou quatro luas novas) é o tempo necessário e suficiente para se construir um tekoha (aldeia). É o tempo de se preparar a terra e de se plantar. É, fundamentalmente, o tempo necessário para se colher o milho novo. É o tempo gasto para se fazer as casas, para se criar um lugar novo à semelhança do YVY APY (Mundo Original). Dificilmente esse ciclo é interrompido. Isto é, raramente os Mbya deixam um lugar sem que tenha se cumprido o tempo certo, estabelecido por Nhanderu, para se construir ou recuperar o tekoha. Esse tempo coincide com o ciclo do milho, sendo comum que a chegada a um novo lugar ocorra nates da época do plantio do milho, no tempo de preparar a terra, por volta de julho, e a saída do tekoha, temporária ou "definitiva", aconteça depois da colheita e do nimongarai (o "batismo" do milho), após as tempestades.

Não é necessário o abandono do local em que se vive para se recriar um tekoha. O projeto comum para os que ficam é o de aprimorar o tekoha, recuperando as condições físicas e sociais que possibilitarão a sua transformação em YVY APY, local de onde é possível alcançar YVY MARA EY (a Terra sem Mal). Num tekoha que abria muitas famílias, a saída de um grupo está sempre associada ao fato de que não é possível, em razão do preceito divino contido nos mitos, conciliar a permanência de dois YVYRAIJA (sábio, homem-forte cuja alma é proveniente de Tupã retã - Lugar de Tupã). Esse preceito - que implica controle territorial e demográfico, na organização social e nas regras de reciprocidade, em equilíbrio dos recursos naturais em termos de sua utilização para subsistência - funda-se no critério de que um YVYRAIJA e uma KUNHÃ KARAI (mulher sábia, forte, guia espiritual) como complemento, ou vice-versa, é capaz de guiar seu grupo até Yvy Apy.

Os líderes religiosos recebem, em sonhos, as revelações, e estas não devem coincidir, pelas razões expostas anteriormente, quanto ao caminho que o grupo familiar sob sua responsabilidade defve traçar.

"Animicamente, o Guarani é um povo em êxodo, embora não desenraizado, pois a terra que procura é a que lhe servirá de base ecológica amanhã como em tempos passados. Durante os últimos 1.500 anos (...) os Guarani se mostraram fiéis à sua ecologia tradicional, não por inércia, mas pelo trabalho ativo que supõe a recriação e a busca das condições ambientais mais adequadas para o desenvolvimento de seu modo de ser. (...) A busca da terra sem mal, como estrutura do modo de pensar Guarani, dá forma ao dinamismo econômico e à vivência religiosa, que lhe são tão próprios" (Meliá, 1989).

O tekoha é traduzido como o lugar onde é possível realizar o modo de ser Guarani. "Teko" significa "modo de ser", e abrange cultura, normas, comportamentos e costumes. O tekoha, com toda a sua materialidade terrena, é sobretudo uma interrelação de espaços culturais, econômicos, sociais, religiosos e políticos.

Na verdade, "fundar" um tekoha, ou recuperá-lo ou reconstruí-lo mediante as unidades familiares, é realiar o projeto coletivo de reconstrução do mundo Mbya por meio da reprodução dos elementos originais existentes em YVY APY. Yvy apy é o lugar exemplar criado por Nhanderu, onde desceram seus filhos, na terra, e de onde é possível retornar ao infinito.

A noção de abundância entre os Mbyá não está, pois, relacionada com a idéia de quantidade, mas sim com a de qualidade dos elementos existentes no tekoha. Quando se referem à YVY MARA EY, a terra que não termina e onde nada tem fim, a fartura que ela contém está na qualidade de perenidade e de renovação, características dos alimentos, das plantas, dos animais e da água.

"Em yvy apy há uma nascente de água boa, que nunca acaba". Quando os Mbya transportam, aonde quer que vão, as sementes do milho verdadeiro - AVAXI ETEI -, eles não estão preocupados em produzir grandes roças, mas sim em perpetuar sua produção por meio do mesmo ciclo, reproduzindo a origem do mundo. Nunca, ou quase nunca, os Mbya guardam sementes do milho comum (avaxi tupi) após a colheita, o que indica que as coisas verdadeiras criadas por Nhanderu nunca devem se acabar, o que não é o caso do milho comum.

Nesse sentido, a abundância para os Mbyá está associada à qualidade dos elementos criados por Nhanderu, que tem a marca da perenidade. Por isso, para os Mbyá, os Mbya etei - "os verdadeiros filhos de Nhanderu" - alcançar a eternidade, com o corpo e a alma, significa confirmar sua autenticidade enquanto criatura original.

Baseado em texto de Maria Inês Ladeira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário