A teoria constitucional, no continente americano, historicamente, bebeu das fontes européias, sejam da Espanha, Portugal, Alemanha ou França. Um modelo que foi construído a partir de uma equivalência: um Estado = um território = uma nação = uma língua nacional. Foi, em grande parte, uma teoria constitucional eurocentrada, branca, monocultural e, até certo ponto, monorreligiosa e monolingüística.
Os modelos de repartição de funções do Estado, suas relações com a sociedade civil, a própria formação da nacionalidade foram inspirados nos parâmetros que as teorias européias construíram como cânones. Os últimos movimentos constitucionais dos países da América do Sul questionam este modelo colonial em pontos até então hegemônicos e tidos como inquestionáveis.
Primeiro, porque, diante de uma crise de representação dos partidos políticos e de uma “democracia de baixa intensidade”, insistem em novas inter-relações da democracia representativa e democracia participativa. Não somente referendos e plebiscitos, mas diversos movimentos de participação popular e de constituição de corpos intermediários entre o Estado e os representados (conselhos, órgãos de fiscalização, orçamento participativo, etc). No caso da Bolívia, quatro níveis distintos de autonomia, dentro de um Estado unitário. O constitucionalismo clássico ficara paralisado na fórmula “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”.
Segundo, porque rompem, parcialmente, com uma visão eurocentrada de mundo e admitem a inclusão de visões até então marginais na teoria constitucional, fruto também do forte protagonismo das comunidades indígenas. São exemplos: a inscrição de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deve garantir a sustentabilidade e o bem viver (“sumak kawsay” , artigo 14 da Constituição equatoriana); a inclusão de “ama qhilla, ama lulla, ama suwa” (não seja preguiçoso, mentiroso nem ladrão), “sumak kawsay” (viver bem), “ivi maraei (terra sem mal), ñandereko” (vida harmoniosa) entre os princípios ético-morais da sociedade plural (artigo 7º da Constituição boliviana) ou mesmo o reconhecimento de que a natureza (“pacha mama”) tem direito “a que se respeite integralmente sua existência, manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos" (art. 71 da constituição do Equador).
Terceiro, porque o reconhecimento da diversidade étnica vem, simultaneamente, ao status constitucional da “jurisdição indígena”, ressaltado nas novas Constituições da Bolívia e do Equador, mas já esboçada, em termos distintos, na constituição colombiana de 1991 e objeto da Convenção 169-OIT. A teoria constitucional clássica ainda reluta no reconhecimento do pluralismo jurídico e da possibilidade de autodeterminação jurisdicional das comunidades indígenas (vide, no Brasil, a discussão, envolvendo a Terra Indígena Raposa Serra do Sol e as alegações de que constituiria verdadeiro “Estado” fora do “Estado nacional ou mesmo quanto ao risco do ”separatismo” ).
Quarto, porque os ventos da interculturalidade acabam por reconhecer a diversidade étnica, cultural, religiosa, lingüística e social, de que são exemplos a co-oficialidade de 36 idiomas indígenas ao lado do espanhol (artigo 5.1 da constituição boliviana), a necessidade da educação em termos interculturais, as afirmações constitucionais de “Estado plurinacional” (caso da Nicarágua) e a própria existência de etnoeducadores, para formação dos jovens nas contribuições das comunidades afrocolombianas. Isto acarreta, portanto, a inclusão de saberes indígenas e negros, até então marginalizados (a “descolonização do saber”).
Quinto, porque isto implica repensar as soluções institucionais uniformes, descentralizar o Estado e repensar as juridicidades. Afinal, é o reconhecimento da demodiversidade (diferentes instituições com distintos graus democráticos), da sociodiversidade (distintos grupos sociais) e cosmodiversidade (diferentes cosmologias).
Sexto, porque a territorialidade passa a ser pensada de forma distinta. Por exemplo, indígenas de vários países não querem a separação do Estado nacional para criação de um novo, mas sim um reconhecimento de seu território simbólico, que muitas vezes também ultrapassa a fronteira de um Estado, mas que, por outro lado, não se resume à luta por terras, no sentido clássico. A situação dos indígenas bolivianos não é a mesma da Catalunha/Espanha, Chechênia/Rússia e, talvez, Tibete/China.
Sétimo, porque os textos constitucionais reforçam a dimensão dos direitos econômicos, sociais e culturais, ao passo que as constituições européias sempre tiveram uma forte ênfase nos direitos civis e políticos. O que implica, por outro lado, redimensionar a teoria dos direitos humanos, nos seus tradicionais termos de universalidade e interdependência.
Resta saber se este processo rico, criador de textos constitucionais inovadores, é suficientemente forte para a transformação da realidade ou servirá apenas para o diagnóstico de uma realidade pós-colonial que necessita ser vencida. Por enquanto, o certo é que o mapa constitucional, tal como o de Al-Idrisi no século XII, gira, nos últimos tempos, com o sul na parte de cima, e o norte, abaixo. Não deve ser fácil para as ex-metrópoles tomarem lições de democracia, constitucionalismo e direitos humanos das ex-colônias.
Os modelos de repartição de funções do Estado, suas relações com a sociedade civil, a própria formação da nacionalidade foram inspirados nos parâmetros que as teorias européias construíram como cânones. Os últimos movimentos constitucionais dos países da América do Sul questionam este modelo colonial em pontos até então hegemônicos e tidos como inquestionáveis.
Primeiro, porque, diante de uma crise de representação dos partidos políticos e de uma “democracia de baixa intensidade”, insistem em novas inter-relações da democracia representativa e democracia participativa. Não somente referendos e plebiscitos, mas diversos movimentos de participação popular e de constituição de corpos intermediários entre o Estado e os representados (conselhos, órgãos de fiscalização, orçamento participativo, etc). No caso da Bolívia, quatro níveis distintos de autonomia, dentro de um Estado unitário. O constitucionalismo clássico ficara paralisado na fórmula “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”.
Segundo, porque rompem, parcialmente, com uma visão eurocentrada de mundo e admitem a inclusão de visões até então marginais na teoria constitucional, fruto também do forte protagonismo das comunidades indígenas. São exemplos: a inscrição de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deve garantir a sustentabilidade e o bem viver (“sumak kawsay” , artigo 14 da Constituição equatoriana); a inclusão de “ama qhilla, ama lulla, ama suwa” (não seja preguiçoso, mentiroso nem ladrão), “sumak kawsay” (viver bem), “ivi maraei (terra sem mal), ñandereko” (vida harmoniosa) entre os princípios ético-morais da sociedade plural (artigo 7º da Constituição boliviana) ou mesmo o reconhecimento de que a natureza (“pacha mama”) tem direito “a que se respeite integralmente sua existência, manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos" (art. 71 da constituição do Equador).
Terceiro, porque o reconhecimento da diversidade étnica vem, simultaneamente, ao status constitucional da “jurisdição indígena”, ressaltado nas novas Constituições da Bolívia e do Equador, mas já esboçada, em termos distintos, na constituição colombiana de 1991 e objeto da Convenção 169-OIT. A teoria constitucional clássica ainda reluta no reconhecimento do pluralismo jurídico e da possibilidade de autodeterminação jurisdicional das comunidades indígenas (vide, no Brasil, a discussão, envolvendo a Terra Indígena Raposa Serra do Sol e as alegações de que constituiria verdadeiro “Estado” fora do “Estado nacional ou mesmo quanto ao risco do ”separatismo” ).
Quarto, porque os ventos da interculturalidade acabam por reconhecer a diversidade étnica, cultural, religiosa, lingüística e social, de que são exemplos a co-oficialidade de 36 idiomas indígenas ao lado do espanhol (artigo 5.1 da constituição boliviana), a necessidade da educação em termos interculturais, as afirmações constitucionais de “Estado plurinacional” (caso da Nicarágua) e a própria existência de etnoeducadores, para formação dos jovens nas contribuições das comunidades afrocolombianas. Isto acarreta, portanto, a inclusão de saberes indígenas e negros, até então marginalizados (a “descolonização do saber”).
Quinto, porque isto implica repensar as soluções institucionais uniformes, descentralizar o Estado e repensar as juridicidades. Afinal, é o reconhecimento da demodiversidade (diferentes instituições com distintos graus democráticos), da sociodiversidade (distintos grupos sociais) e cosmodiversidade (diferentes cosmologias).
Sexto, porque a territorialidade passa a ser pensada de forma distinta. Por exemplo, indígenas de vários países não querem a separação do Estado nacional para criação de um novo, mas sim um reconhecimento de seu território simbólico, que muitas vezes também ultrapassa a fronteira de um Estado, mas que, por outro lado, não se resume à luta por terras, no sentido clássico. A situação dos indígenas bolivianos não é a mesma da Catalunha/Espanha, Chechênia/Rússia e, talvez, Tibete/China.
Sétimo, porque os textos constitucionais reforçam a dimensão dos direitos econômicos, sociais e culturais, ao passo que as constituições européias sempre tiveram uma forte ênfase nos direitos civis e políticos. O que implica, por outro lado, redimensionar a teoria dos direitos humanos, nos seus tradicionais termos de universalidade e interdependência.
Resta saber se este processo rico, criador de textos constitucionais inovadores, é suficientemente forte para a transformação da realidade ou servirá apenas para o diagnóstico de uma realidade pós-colonial que necessita ser vencida. Por enquanto, o certo é que o mapa constitucional, tal como o de Al-Idrisi no século XII, gira, nos últimos tempos, com o sul na parte de cima, e o norte, abaixo. Não deve ser fácil para as ex-metrópoles tomarem lições de democracia, constitucionalismo e direitos humanos das ex-colônias.
Texto de César Augusto Baldi, mestre em Direito pela ULBRA-RS
doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha)
e chefe de gabinete no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre).
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