O dia
amanhece com um índio guarani-kaiowa enforcado. Cadarço de tênis esticado da árvore,
banho tomado, perfumado, de joelhos.
A aldeia sabe
do que se trata: do JEJUVY. Isso não
é conforto, é ritual de morte. A palavra jejuvy, na língua dos Guarani, tem
uma carga semântica que significa aperto na garganta, voz aniquilada, impossibilidade
de dizer, palavra sufocada, alma presa. É através do ritual do jejuvy
que os kaiowas praticam o suicídio, por enforcamento ou ingestão de veneno.
Apesar de ser reconhecido como prática ritual ancestral, nos últimos anos o
jejuvy alastra-se pelas aldeias em escala epidêmica. São cerca de 50 suicídios
por ano, envolvendo jovens de 9 a 14 anos de idade.
Segundo
dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o número de suicídios começou
a aumentar nos anos 80, dobrou na década de 90 e bateu o recorde na virada do
século 21, chegando aos mais de 50 por ano.
Os suicídios
(jejuvy) são efetuados basicamente por enforcamento (método antigo) e ingestão
de venenos das monoculturas (método novo). Rejeita-se a “poluição” como
derramamento de sangue ou cortes físicos, para que não se perca a palavra.
Muitos guaranis consideram o suicídio uma doença produzida pela prisão da
palavra (alma). É pela boca que a palavra se liberta. Se não há lugar para a
palavra, não há vida. Por isso, na hora de morrer, não deve ser utilizado o
corte contra si mesmo, pois a palavra se dispersaria. Sufocando-a, ela
permaneceria como um aglomerado de energia e poderia voltar a vingar em algum
outro momento.
Conforme
narrativas dos próprios kaiowa sobre os que cometeram suicídio, eles unificam
elos que vão desde o ato individual inerente à condição humana e solitária de
cada um, até o sentido político de coletividade, um “estar entre os outros”, produzindo simbologias-limites: os
enforcamentos, os envenenamentos. Atos que condensam e apontam para o resgate,
talvez impossível de uma “forma de ser”, como os kaiowas costumam falar. E se
para eles a linguagem é uma das mais importantes formas de fazer o ser se
manifestar, ao impedi-la, impede-se também os sujeitos de existirem. O suicídio
epidêmico seria a resposta coletiva à impossibilidade de expressar a
singularidade desse povo.
Se até
cerca de 40 anos atrás, os kaiowa e nhandeva moravam em casas grandes
denominadas OGAJEKUTU-OGAGUASU,
reunindo até cem pessoas de uma mesma família, hoje vivem em casas minúsculas,
muitas ainda feitas de barro, sem a proteção da floresta, abrigando apenas a
família nuclear. A estrutura da família extensa, cuja chefia baseia-se no
prestígio e religiosidade, desorganizou-se, visto que os indígenas não
conseguiram substituir seu prestígio cultural pelo poder dos brancos. Com a
dizimação de suas terras, sem os ritos do plantio, da colheita, das sagas
coletivas de caça e pesca, eles não têm razões para continuar com seus ritos, e
conforme perdem as práticas com a terra perdem também sua cultura. Mesmo que
ainda subsista, de forma curiosa, a língua guarani, que é o maior foco de
insistência e resistência dessa coletividade.
Muitos
grupos indígenas, inclusive guarani kaiowa, vivem em acampamentos precários
dentro das fazendas dos latifundiários, que em nome do expansionismo ou de mais
alguma razão macha e injustificável, tomaram a força suas terras — e ainda
tomam, com armas desiguais. Isso é um dos motivos mais apontados por indígenas,
indigenistas e antropólogos para a causa da epidemia de suicídios entre os
guaranis kaiowa: a perda da terra, da TEKOHA,
o lugar onde “realizam seu modo de ser”.
Se por um
lado os suicídios por enforcamento ou pela ingestão de veneno podem significar
o sufocamento, também podem significar o desejo da libertação — e é nesse ponto
que o suicídio ritual funciona como performance ética, estética e interventiva.
Gestos de enunciação. O trágico funcionando como dispositivo de reversão
sígnica sobre a questão indígena. Desde que a “epidemia suicida” começou a se
alastrar nas aldeias, ativistas, estudantes, pesquisadores, pessoas ligadas à
mídia independente passaram a olhar com mais atenção a essa situação, fazer
alianças e se tornar cooperadores na luta pela terra guarani, de forma a
amplificar esses sinais, até então emitidos em total invisibilidade. Há alguns
grupos indígenas, principalmente professores indígenas ligados à universidade e
lideranças locais, que dedicam sua vida a essa causa, sendo que o número de
líderes mortos nessa empreitada supera nossa imaginação.
Apesar de
muitos dos suicídios serem praticados em locais mais resguardados, existe um
grande número de casos que ocorrem em lugares de perambulação, os lugares
“públicos” da aldeia, como estradas, roças, áreas onde o corpo suicida pode ser
visto sem muita dificuldade. São nuances que ajudam a esclarecer e também
interrogar sobre essa forma de morrer. Não compactuar com a dizimação, com o
genocídio, com o etnocídio. Não se acovardar diante do destino, ter o ato bravo
e último como forma de amplificar os sinais da miserabilidade que foram
submetidos. As árvores, os arbustos, as roças, qualquer lugar que tenha sido
utilizado para o suicídio torna-se marco da aldeia e fica cravado no
imaginário, na linguagem cotidiana e na sua luta contra o confinamento. Os
mortos continuam falando especialmente para os corações sensíveis, ainda
conectados em crenças de espíritos da natureza e nas emissões dos seus sinais.
Os ritos,
as danças, os cantos, as lutas sobrevivem por pura insistência. A sensação é
que essa cultura sobrevive por um fio muito tênue e belo. Como uma voz que se
força a falar mas já não soa como costumava. Mesmo afônica, agônica, gaga,
insiste em se manifestar. Ritual de rememoração. Resíduo. Resistência de certos
cantos e gestos. As danças de luta dos guaranis kaiowas lembram as lutas
marciais, lutas de espadas. São feitas de pedaços de paus, facas, pedras
assemelhando-se a lutas ninjas.
Apego à
vida é um imperativo da dominacão, do exercício de poder – e da inclusão.
Quando há coisa mais intensa que o apego a vida, há mídia tática, há
resistência, há potência de protesto. Porém o que é que os kaiowás amam mais do
que a sobrevivência? É isto que grita de maneira abafada ainda pelo espaço
público da aldeia. Tem alguma coisa que estes indígenas desejam mais do que
serem incluídos na pasmaceira da biopolítica globalizada, na miserabilidade
imposta pela política neoliberal. É uma forma de vida que não se contenta com a
sobrevivência miserável do branco ou do índio. Nesse caso pensamos que não se
trata de inclusão indígena na sociedade nacional, mas da mobilização da
sociedade para a retomada das terras indígenas para colaborar no processo desse
outro índio que o próprio índio não sabe e tem que devir.
As lutas
de movimentos agrários no Brasil se intensificaram ao longo desses últimos 30
anos e cada vez ganham maior visibilidade mundial em função da sua extrema
importância. A luta indígena é mais uma das lutas agrárias do pais, a mais
antiga, a mais usurpada e dizimada. Os processos de homologação e assentamentos
estão longe do seu fim e é com muito esforço, tensão e mortes que se efetivam suas
realizações.
Nosso
desafio em gerar uma rede de colaboração capaz de mudar a percepção social
sobre pontos enredados da sociedade é urgente e de grande relevância. Mais do
que mudança perceptiva, é necessário a ampliação do próprio espectro relacional
dos movimentos sociais, para que ganhem possibilidades de ação diversas. O
papel que a mídia tática, Greenpeace e CMI (centro de mídia independente) têm
exercido nesses contextos é uma abertura para ajudar a pensar em como grupos
autônomos, organizados ou não, podem atuar junto aos movimentos e às lutas
sociais (nosso grande espaço público). Ainda são precárias suas atuações, mas
sinalizam possibilidades. Para além da denúncia e do apoio, é preciso criar
meios que se tornem mais incisivos na efetivação de certos projetos políticos
dos movimentos da sociedade civil, como é o caso da campanha pró-guarani foi
lançada em setembro de 2007 e que recém começa a aparecer para a sociedade
geral.
Essa
campanha mídica, ativista, feita na sua maioria por lideranças indígenas
guaranis e apoiada pelo CIMI, reclama o reconhecimento das 32 terras indígenas
do povo guarani, reclama o desaceleramento do mercado agropecuário na região do
Mato Grosso do Sul, o reflorestamento das áreas dizimadas, o respeito e
reconhecimento de um tempo que não precisa ser igual para todo mundo. Mas
também reivindicam o acesso ao que há de relevante na sociedade
(inter)nacional, levando em conta as conquistas da ciência e da tecnologia,
etc.
Há muito
o que pensar na intervenção desses suicídios no imaginário social branco,
indígena, mestiço. Mas uma coisa é certa: essas mortes têm evidenciado o
impasse que esses índios vivem, e chegam até nós como sinalizadores dessa
condição insuportável, indigna, vergonhosa que os ideais de civilização, de desenvolvimento
e de crescimento econômico provocam. É preciso agir antes que toda diferença
morra.
Texto de Fabiane Borges e Verenilde Santos
Nenhum comentário:
Postar um comentário