"Ubatuba é uma cidade que tem
muita iniciativa e pouca continuativa", dizia um velho caiçara para as
pessoas que lá chegavam, no começo dos anos 70 em busca de um novo local para
trabalho e morada.
Com o passar do tempo se percebe que o
velho tinha razão. Não só as iniciativas humanas, mas também a natureza se
comporta aqui de maneira estranha, deixando muitas vezes as coisas pela metade.
O exemplo mais fácil de encontrar são as mangueiras. Alguém já viu mangas nas
mangueiras de Ubatuba? As mangueiras são comuns no litoral. Em Paraty estão
carregadas na época certa, em Caraguá e em São Sebastião também. Em Ubatuba
não. As mangueiras perdem as flores antes da hora. É claro existe uma ou outra
mangueira de vez em quando, sem muita regularidade, dá algumas poucas mangas,
mas isso são as exceções, para não fugir da regra de que toda regra tem
exceções. Os governos começam as coisas e não terminam, os planos param pela
metade, o comércio começa bem, logo depois não dá certo. As pessoas que chegam
cheias de entusiasmo e idéias novas desistem e a maioria vai embora. É só
prestar um pouco de atenção que os exemplos se multiplicam. Mas tudo tem uma
explicação, e a explicação para o nosso caso é a maldição lançada sobre a
Aldeia de Yperoig, hoje Ubatuba, pelo valente cacique Cunhambebe no ano de
1563.
Logo após a descoberta do Brasil em
1500, os portugueses tiveram que dominar e garantir a posse das terras contra
vários reinos europeus que naquele tempo se expandiam descobrindo novas terras
ou simplesmente tomando a terra dos outros à força, fazendo depois acordos com
a coroa para acomodar a convivência entre eles na Europa. Nessa época, na
posse, no domínio e nos acordos valia a lei do mais forte.
Os holandeses e os franceses eram os
mais terríveis interessados em tomar dos portugueses as terras descobertas. Os
espanhóis que também foram grandes conquistadores lutavam para manter o outro
lado do vasto continente. Para dominar a zona costeira e explorar o interior
das terras descobertas, os portugueses usavam os índios como escravos no
trabalho e nas lutas, capturados à força e muita brutalidade. E é aí que entra
a história de Cunhambebe.
Os índios eram pacíficos com os
estrangeiros; não conheciam nada dos brancos, só conheciam a natureza que lhes
dava tudo de comer e de curar alguma doença do mato, ferimentos ou comida mal
digerida. Seus deuses eram as forças da natureza. Não tinham armas de fogo nem
facas e facões porque não conheciam o metal, nem prisões. Os portugueses, para
usar seu trabalho escravo, impunham grande pavor, matando, esfaqueando e
prendendo com correntes de ferro os desobedientes.
Cansados de tanto sofrimento os índios
começaram a se revoltar atacando os invasores em suas aldeias, porém, poupando
as mulheres e crianças que para eles são criaturas sagradas. Diferente dos
portugueses que quando atacavam arrasavam tudo matando quem estivesse pela
frente. Caciques de diversas tribos, liderados por Cunhambebe, (Koniam-bebê)
homem de dois metros de altura cujo nome vem de sua gagueira e fala arrastada,
resolveram pôr um fim a tantas injustiças e combinaram um grande ataque para
expulsar de vez aqueles homens brancos muito maus
Comandados por Cunhambebe e pelos
caciques Aymberê, Caoquira e Pindobossú os índios eram muito numerosos. Os
registros do Padre José de Anchieta indicam a chegada de mais de duzentas
canoas com mais de vinte índios cada uma, além dos milhares que vinham por terra,
provenientes das tribos situadas nas planícies acima da Serra do Mar. Se a
batalha tivesse acontecido os portugueses seriam arrasados e expulsos do
litoral de São Paulo, e os franceses, que dominavam o Rio de Janeiro e que se
relacionavam muito bem com os índios daquela região, teriam tomado a terra
brasileira das mãos da Coroa Portuguesa. A história seria outra. Mas a batalha
não aconteceu.
Os portugueses auxiliados pelos
jesuítas que tinham grande poder sobre a bondade na terra e suas recompensas na
eternidade conseguiram aplacar a ira dos chefes morubixabas com promessas de
castigos divinos e muitas ameaças do furor das forças da natureza, que era a
única coisa real que orientava as ações e os pensamentos daqueles homens
primitivos em seu estado natural mais puro.
É verdade que alguns índios duvidavam
daquelas palavras, mas seu temor era tanto que não ficaram senão algumas
memórias dessas dúvidas. Existe o registro de uma reclamação do cacique Aymberê
que foi tema de uns versos escritos sobre aqueles tempos, que revela bem as
dificuldades dos índios com as coisas que lhes eram ditas pelos padres. Diz um
trecho do poema encontrado em velhos arquivos baseado nas indagações de Aymberê
ao padre José de Anchieta:
"Não conhecem acaso os portugueses".Essa pia doutrina que nos pregas?Como, pois contra nós, em guerra assídua,Sem medo de seu Deus, cruéis se mostraram?Ou, só porque de deus ao filho adoram,Lhes foi dado o poder de perseguir-nos?Mas se do céu as leis desobedecemQue deus é esse então que os deixa impunes,E vem por tua boca ameaçar-nos?"
Os índios recolheram seus arcos,
flechas e bordunas em atenção às promessas de paz e convivência com os brancos
garantidas pelos jesuítas. Depois de uma viagem do cacique Cunhambebe a São
Vicente junto com o padre Manoel da Nóbrega para acerto dos acordos de fim das
hostilidades, foi combinada a Paz de Yperoig, que serviu de argumento para o
desânimo dos franceses que queriam ver os portugueses expulsos. Cunhambebe e
seus guerreiros acreditaram na boa fé dos acordos. Os vários chefes com seus
homens se dispersaram, se desarmaram e voltaram para suas tribos, e até hoje se
comemora a paz de Yperoig como uma data importante que garantiu a unidade do
Brasil contra as ameaças de divisão, graças ao trabalho de catequese e união
promovido por Anchieta, Nóbrega e seus companheiros. Mas a história não comenta
que logo depois de terem se desarmado e se dispersado os índios foram
massacrados pelos rudes e estúpidos colonizadores portugueses interessados no
ouro, nas riquezas e nas terras descobertas.
Cunhambebe morreu doente, ferido no
corpo e na alma, envergonhado diante da humilhação a que levou seu povo por ter
acreditado na palavra dos brancos. Sabendo da importância que os portugueses
deram àquela data, pouco antes de morrer o grande cacique lançou uma maldição
contra os invasores e seus descendentes dizendo que as terras de Yperoig que
eles tanto quiseram seriam as terras do fracasso, que lá nada daria certo, tudo
que se começasse não chegaria ao fim. Grande entusiasmo no início e resultado
miserável no final. E assim tem sido a história de Ubatuba, seus ciclos
econômicos sempre interrompidos, seus negócios e empreendimentos sempre
fracassados. Já quiseram fazer porto de turismo, indústrias do pescado,
faculdades, nada dará certo por lá enquanto se comemorar a Paz de Yperoig como
homenagem ao trabalho dos jesuítas, esquecendo-se de que ela só foi possível
porque enganaram a boa fé daqueles homens primitivos e os traíram matando seus
chefes e humilhando seu povo, os verdadeiros donos da terra brasileira
Mas a maldição dos índios não é
eterna, seu desejo não é vingança e sim serem tratados com dignidade e
respeito. Para acabar com os efeitos da Maldição de Cunhambebe basta parar de
comemorar a Paz de Yperoig da forma como ela é comemorada, que ignora o papel e
a traição cometida contra os índios. Para isso a Câmara Municipal de Ubatuba
deveria aprovar uma lei extinguindo o dia da Paz de Yperoig criando em seu
lugar o dia de Cunhambebe e dos Índios do Litoral Norte. A paz que uniu o
Brasil deveria ser atribuída ao martírio dos índios, da mesma forma que a
independência do Brasil é atribuída ao martírio de Tiradentes. Para manter viva
a homenagem, estátuas de Cunhambebe, Aymberê, Coaquira e Pindobussú deveriam
ser erguidas nos principais pontos da cidade. Aí a nossa história será outra,
podem crer...
Crônica de Renato Nunes
Bonito texto que retrata parte da História de Ubatuba e do Brasil. É preciso contar os detalhes terríveis sobre os massacres dos índios por parte dos portugueses chefiados pelos malfeitores Manoel da Nóbrega e José de Anchieta, este último para cá veio tuberculoso e transmitiu a doença a muitos índios.
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