quinta-feira, 18 de março de 2010

TRABALHO E LAZER

A esfera econômica nas culturas indígenas originárias da América do Sul é interpenetrada por outras dimensões da vida. Por isso, a noção de TRABALHO para elas não é a mesma das sociedades ocidentais. No processo de produção econômica, seja ela caça, pesca, coleta, lavoura ou qualquer outra, o "trabalhador" não se isola de seus demais papéis e obrigações. Na produção estão sempre presentes considerações de ordem social, ritual, religiosa, para citar apenas as mais comuns e óbvias. Não existe, portanto, o fenômeno da "alienação", que é uma das características mais marcantes do processo de trabalho industrial. Na linha de montagem de uma fábrica é irrelevante se um trabalhador está planejando uma festa de casamento para a filha, se sua mulher está em vias de dar à luz, se ele é assíduo em suas obrigações religiosas, se tem obedecido aos padrões morais de sua sociedade... Enquanto operário trabalhando na fábrica, ele é reduzido à sua utilidade imediata, isto é, mera peça necessária no processo de produção. Esse desmembramento do trabalhador em produtor econômico, de um lado, e em ser social, de outro, essa alienação enfim, não existe nas sociedades indígenas. Mais importante ainda é o fato de que nessas sociedades é o produtor que controla os meios de produção, e o que ele produz não lhe é alheio, como uma mercadoria o é para o operário.

Quando um índio vai caçar, ele leva consigo não só arco, flechas e outros instrumentos, mas também uma série de direitos e obrigações engendrados na vida familiar e comunitária que irão influir na sua atividade econômica: que animais procurar, quem na sua aldeia pode ou não comer tal ou qual animal, quais as conseqüências de suas ações rituais anteriores à caçada e uma série de outras considerações, aparentemente independentes da produção econômica, mas cuja importância é decisiva no seu desempenho. O "trabalhador" numa sociedade indígena não é compartimentalizado; ele é um ser social total em todas as esferas da sua vida.

Um bom exemplo disso é a "caçada ritual" entre os Sanumá, subgrupo Yanomami do norte do território de Roraima. Alguns dias depois que nasce uma criança fisicamente normal e em condições sociais também normais, o pai vai caçar. O animal que ele matar será o epônimo da criança, isto é, esta será chamada pelo nome dado à espécie da caça morta. Ou seja: o pai sai a caçar literalmente o nome de seu filho ou filha recém nascido! Essa caçada se reveste de grandes cuidados, pois é misticamente sobrecarregada de perigos, em parte porque a criança receberá do animal, além do nome, também um certo espírito que se instala em seu corpo. O pai deve, pois, evitar ao máximo manusear o animal abatido; carrega-o para a aldeia pendurado em cipó e passa-o imediatamente para os seus afins, ou seja, os parentes consangüíneos de sua mulher. Nem ele nem ela podem comer a carne, sob pena de porem em risco a vida da criança. São esses afins do caçador que irão consumir a carne e dar o veredito: se a carne for de boa qualidade, a criança viverá; senão, morrerá.

Vista pelo prisma puramente economista, essa caçada não representa mais do que uma maneira floreada de fornecer carne à aldeia. Empobrecedora como seria tal visão, pois, quando muito, relegaria à categoria de detalhes aspectos culturais muito importantes para aqueles que vivem essa cultura, ela também teria o defeito de minimizar a interdependência das esferas da vida indígena. O caçador Sanumá não pode ignorar - e nem ele nem ninguém ignora - que tem responsabilidades para com o novo filho e para com as entidades sobrenaturais, que requerem ações e atitudes especiais, mesmo em contexto que rotineiramente são tão prosaicos como uma caçada. O caçador Sanumá satem tudo isso em mente quando procura matar um animal que não represente tabu como alimento e que seja adequado à ocasião por ter um nome apropriado para um ser humano, o que nem sempre ocorre.


Sendo tão intrinsecamente ligado a assuntos não-econômicos, o trabalho em sociedades indígenas não representa, estritamente falando, o lado oposto, a contrapartida do lazer. O sistema de produção é organizado de tal maneira que permite a quem produz a liberdade de manifestar convivilidade, tendências estéticas, gratificação física ou o que quer que esteja envolvido em atividades de lazer, isso no processo mesmo de produzir. Assim, como não existe uma divisão social entre classe ociosa e classe trabalhadora, também não existe uma divisão temporal entre tempo produtivo (trabalho) e tempo recreativo (lazer).

Um grupo de caçadores numa trilha da floresta não está compelido a obedecer a um horário fixo, dentro do qual é proibido divergir da atividade central, parar de trabalhar ou conversar com os companheiros. Eles têm a liberdade incontestável de trocar comentários, de parar para descansar quando assim o decidem, de interromper a caçada qual algo interessante surge - como, por exemplo, a descoberta de mel ou pegadas de inimigos no caminho. De maneira semelhante, um grupo de mulheres que vai à roça fazer limpeza ou buscar mantimentos não se limita apenas a isso. Grande quantidade de informações e desabafos é trocada no caminho, como também são coletados produtos como rãs e cipó para fazer cestas. Uma expedição rotineira de caça ou uma ida à roça podem consumir a maior parte do dia, isso porque, comumente, essas saídas envolvem atividades multivariadas.

Isso não quer dizerr que os índios sejam indolentes e não gostem de fazer esforço. Só quem participou de uma caçada, ou de uma expedição de coleta, ou do cuidado de uma roça, sabe avaliar o grau de exaustão física de tais atividades. Há quem diga, mal informada ou mal-intencionadamente, que caçar, pescar, coletar não é trabalho; é esporte. Se por trabalho entendem a rotina alienante do assalariado, definida pelo exercício do esforço físico ou mental em troca de remuneração monetária, o qual, afinal, acaba resultando no esfacelamento do trabalhador como ser social total, então o termo "trabalho" não é adequado para descrever o processo produtivo das sociedades indígenas e talvez necessitemos de um outro vocábulo. Certamente, o significado da palavra "trabalho", como ele é entendido na sociedade ocidental, não é inteiramente aplicável a essas sociedades. Enquanto entre nós apenas uns poucos privilegiados podem dizer que gostam do que fazem, que seu trabalho é um prazer, nas sociedades indígenas há sempre um grau maior ou menor de gratificação social na maioria das atividades produtivas. Naturalmente, há tarefas maçantes e pesadas, como cortar e carregar lenha, cobrir um telhado ou ralar mandioca horas a fio. Porém as pessoas se desembaraçam desses encargos geralmente em boa companhia, em meio a conversas animadas, piadas ou cantigas descontraídas. Também há frustrações, como uma caçada sem caça abatida mas os efeitos delas não chegam a se comparar com os de um dia perdido no trabalho da fábrica, com salário descontado. Essa experiência está reservada àqueles indígenas que se vêem obrigados a recorrer ao sistema salarial dos brancos, quando suas terras lhes foram tomadas parcial ou totalmente, impossibilitando a continuidade de um sistema que se reproduziu por tempo imemorial.

Poderíamos dizer que nas sociedades indígenas cada um estabelece o seu "fim de semana" próprio em qualquer dia que lhe aprouver. Se um caçador trouxe bastante carne para casa ontem, ele não precisa voltar a caçar hoje ou amanhã. Se uma mulher foi à roça e trouxe um carregamento de vários produtos e passou hoje o dia inteiro ralando a mandioca que será transformada em beiju nos próximos três ou quatro dias, ela não necessita voltar à roça amanhã. Entretanto, a imagem do fim de semana não é totalmente válida, pois quem não vai à caça, nem à pesca, nem à roça tem vários outros afazeres que aguardam sua vez, além do descanso puro e simples: um novo conjunto de arco e flechas para polir e emplumar; uma nova cabaça para a água; uma panela de barro para ser trocada na próxima festa; uma nova rede para o filho que está crescendo e precisa de sua própria rede para dormir; uma cesta nova para carregar lenha; um balaio cheio de algodão bruto para desfiar, ou uma sessão xamânica para a cura de um doente. Tudo isso é feito sem pressa, sem pressão, entrecortado de períodos de repouso solitário ou interação informal com outros.


É claro que nem tudo é trabalho, nem os índios passam o tempo todo ocupados com a chamada "luta pela sobrevivência", sem tempo para mais nada. Existem, certamente, jogos, danças, rituais diversos. Porém eles não são destinados a compensar horas de faina diária e restabelecer as forças dos "trabalhadores" para que posssasm continuar a trabalhar; são parte de um todo cultural no qual entra, também, a produção econômica. A periodicidade dessas atividades não está direta ou indiretamente ligada à rotina do trabalho, mas sim a considerações de ordem ecológica (como as festas sazonais da colheita), de ordem religiosa (como uma sessão xamânica propiciatória), ou está relacionada à maturação físico-social das pessoas (como rituais de puberdade, de nominação ou exéquias funerárias), à conveniência de reencontros sociais entre aldeias ou entre grupos distintos (como certos torneios verbais ou corporais), à importância política de certos indivíduos ou facções, etc, etc. De fato, muitas vezes essas ocasiões demandam tal esforço produtivo, na preparação de alimentos e outros bens, que seriam contrapoducentes se o seu objetivo fosse o descanso do trabalho.

Lazer e trabalho não são, portanto, facilmente separáveis nas sociedades indígenas. Se é falsa a noção de que os índios estão eternamente ocupados à procura de alimento, sem tempo para atividades mais criativas, também é falsa a idéia comumente ventilada de que o índio é preguiçoso, não trabalha, vive no ócio.

Baseado em texto de Alcida Rita Ramos.

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