O Tekoa Pyau,
aldeia guarani em Pirituba, nos últimos dez anos tem atraído muitos novos
moradores, parentelas, em decorrência da presença de uma forte liderança
religiosa. Esta comunicação diz respeito à presença da cerimônia da erva-mate
que tem se realizado duas vezes ao ano, nesses locais. Recriam-se valores
simbólicos cultivados como saberes tradicionais e significados relativos a vida
humana.Entendemos que o impacto decorrente da presença das políticas públicas
de educação, saúde, moradia, subsistência que atingem os indígenas nos últimos
cinco anos tornou-se ameaçador para o desempenho tradicional indígena. Uma
crescente influência do “jurua” –
termo nativo para designar o branco invasor – tem se imposto ao mundo cotidiano
exigindo escolhas e provocando mudanças na rotina indígena.
Neste momento histórico os Guarani Mbyá, conhecidos
pela sua resistência cultural e por seguirem a tradição como mito e realidade, tornam-se
vulneráveis em um contexto que lhes exige uma certa modernização e
ocidentalização. A maior demanda ocorre com relação a exigência do letramento
que é reconhecido como um valor que adquire aceitabilidade diante de conteúdos
interculturais.O mundo das palavras-almas e de suas representações ao mesmo
tempo que correm o risco de serem enfraquecidos, são também o motivo para o
enaltecimento da memória e de suas projeções discursivas. É desta forma que a realização
da cerimônia da erva-mate indica-se como um ritual com a capacidade de
estabelecer uma ordem e permanência na transitoriedade das coisas. O ambiente
sócio-histórico subsumido pelos adeptos projeta-se por suas raízes de valor e
condições de representação.
No sentido cosmológico, a dimensão temporal surge
como uma construção da cosmovisão e concepção do mundo. Trata-se do tempo
cósmico, o tempo das próprias coisas, um tempo que se propõe independente de
qualquer consciência sócio-histórica. Esse tempo polariza um caráter unificador
das experiências e dos rituais. Ele se expressa pela criação do cosmo, a origem
dos Deuses, definição do Mito de Criação, da Primeira Terra, a terra divina, e
a terra imperfeita ligada ao sofrimento, ao teko axy. O tempo de
revelação divina molda a vida em condições dadas, na base dos ensinamentos do
passado (Clastres, P., 1990).
Estrutura-se a sociedade mbya mediante uma formação
histórico-ideológica onde ocorre um desejo pleno de superação da imperfeição
que é própria da terra nova (yvy pyau). Aí vigora como tema
central, a busca da terra sem males (yvy mara e’).
O motor de religiosidade e de misticismo presente na
espiritualidade projeta-se por uma reversibilidade existencial que se depara
com a questão cíclica do tempo em sua expressão de mudança e de equilíbrio. De
forma mais ampla, uma dinâmica de expansão acentua os temas cataclismológicos,
o fim do mundo,yvy opa
Como uma marca de tempo nessa descrição, a festa da
erva-mate origina-se como tema do antigo (ara
yma) e do novo (ara pyau).
Indica-se uma renovação e busca de maturidade expressiva das mudanças da
natureza. O ritual ocorre como replica Ara
yma, “o céu primeiro, é seco e vazio,
o inverno original” (Wera Jecupe, 2001:37), quando se realiza em fevereiro.
Ara pyau ñemokandire “os dias novos que
se erguem e ressurgem de si mesmos, dando cadência ao tempo quando a vida
outona” (ib), quando se repete em agosto.
Compreende-se a festa no rumo cíclico da
representação do tempo; o ponto de partida, o tempo-espaço originário e o
tempo-espaço do renascimento. Mediante o calendário expressivo da festa a idéia
de renovação ocorre tanto com relação a um movimento contínuo do tempo como sua
dimensão de um devir e aperfeiçoamento.
Destaca-se o tempo do lugar-significação onde se
materializa o modo de vida e a vida cotidiana em relação às segmentações
temporais. O tekoa ,literalmente o local dos costumes, a aldeia, impõe-se como
identidade sócio-histórica. Evidencia-se a vida terrena e a coletividade em seu
esforço de recriação que se institui no ritual. Este plano impõe-se
competitivamente entre as aldeias se seus investimentos religiosos coletivos.
O possível impacto ameaçador de uma crise e
enfraquecimento da esfera religiosa atingem a dimensão subjetiva da cultura. O tempo-ser
ganha discursividade na relação dramática dos sujeitos com o ritual. Um movimento
que se orienta para o devir constrói os homens em sua ilusão/desejo de reversibilidade.
O desejo premente é o de serem os Guarani deuses e não apenas humanos, como
salientou H. Clastres (1978).
“A Festa da Erva-MateAntigamente eu via a erva mate amarrada. Então os homens iam ao mato para trazer erva mate. Então, depois de trazê-la cada um deles amarrava um feixinho da erva. Amarrava para ele, para os seus filhos, para os seus irmãos mais novos, para o pai e para o irmão mais velho.Quando é meio dia todos entram na Casa de Rezas cada um deles com os seus feixinhos de erva.Então o rezador levanta com o violão e anda circularmente cantando.Depois o rezador pára no meio da Casa de Rezas. Então os que circulavam param. Na direção leste da Casa de Rezas, em horizontal, amarravam a takuara para colocar os feixinhos. Depois de parados cada um deles com os feixinhos coloca-os enfileirados,amarrados na takuara.Os feixinhos que nós amarramos é para nos fortalecer. O feixinho que fizemos para nossos filhos é que irá revelar o futuro das crianças para viver.Depois quando anoitece todos entravam na Casa de Rezas.Quando nós entrávamos, pegávamos o cachimbo para purificar a fileirinha dos feixinhos. Através disto pedimos ao Ñanderu para que ele possa guiar os filhos para eles viverem bem.No dia seguinte as mulheres preparam uma obra representando suas mãos. As mulheres, desde cedo, cada uma delas pega cada feixinho para secar na fogueira. Depois que secaram, socavam no pilão. Depois de socá-los colocam o farelo no porunguinho feito prato.
As mulheres colocam o farelo no porunguinho em forma de prato para ela, para as suas filhas, para a sua avó, para a sua mãe, para as irmãs mais novas e para as irmãs mais velhas. Até agora temos essa cerimônia nas aldeias.O feixinho de ervas foi deixado por Ñanderu para os homens. E os farelos de erva foram revelados pela Ñandexy tenonde para as mulheres”.
A importância e cultivo da cerimônia da erva-mate
nas aldeias retrata-se como um discurso de saberes tradicionais que se tornam
operantes na luta do povo guarani em seguir suas tradições, em levar avante o nhandereko,
o seu modo de vida.
A experiência vivencial dos sujeitos no ritual
mobiliza sua subjetividade, afetividade diante da memória de antigos saberes e
compreensão cultural. O passado, construído como o tempo de exigência divina
liga-se ao tempo real e a vida humana que se replicam no esforço de uma
reversibilidade. Compartilhando a dimensão sagrada, o convívio divino, o ideal
de fortaleza que conduz os homens torna-se real em sua direção própria de criar
uma passagem, ou o desejo de ultrapassagem como um caminho de profecias.
Baseado em texto de Marília Godoy, Maria Carolina de Almeida e Suelen
Gazzi
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