quarta-feira, 30 de setembro de 2009

FEIRA IMPERIAL EM CUZCO

Vista do alto, Cuzco assemelha-se a um puma adormecido, refestelado ao sol das cordilheiras. A cabeça repousa sobre a Montanha de Saqsayhuaman, em forma de inexpugnável fortaleza. O corpo, delineado por dois magros riachos que, entretanto, deram vida ao vale. A cauda irrequieta oscila sobre o bairro de Pumapchupan.

Em sua modorra milenar, o puma observou a ocupação do vale por diversos grupos humanos. Assistiu, indiferente, à transformação dos pantanais em férteis campos de cultivo e testemunhou o crescimento do vilarejo em aldeia, depois em cidade e, finalmente, em grandiosa metrópole.

A Cuzco contemporânea está longe de ser a metrópole dourada dos tempos dos Incas, com mais de cem mil casas e quase trezentos mil habitantes...

Fica num vale que é apenas uma depressão relativamente plana em meio ao relevo acidentado da cordilheira. Estende-se por um corredor estreito, com seus quarenta quilômetros de comprimento, e está inteiramente cercado de montanhas. Os riachos que o atravessam brotam de arroios nas colinas vizinhas e correm para o oeste, rumo às encostas de um imponente nevado. Na direção posta, através de desfiladeiros, rugem as corredeiras de um rio inavegável. Aparentemente o vale está isolado do resto do mundo, enclausurado em uma bacia terminal, quase três mil e quinhentos metros acima do nível do mar, zona intermediária entre a sóbria vegetação serrana e a desolação dos picos andinos.

Nada induz à fixação do homem. O ar é rarefeito; a terra, sujeira a erosão, desmoronamentos e geadas, e há poucos terrenos adequados à agricultura. As estações alternam-se entre inundações e secas prolongadas, e a produção agrícola exige esforços sobre-humanos.

Cuzco fica no meio desse vale, com ruas retas e pavimentadas, edifícios simetricamente ordenados em grandes conjuntos arquitetônicos, e praças – cinco ao todo – amplas, cercadas de palácios de granito. Os riachos fluem por leitos calçados e os esgotos desembocam em acéquias sanitárias, permanentemente lavadas com água corrente e cristalina.

A cidade era protegida por uma extensa muralha de adobe, lembrança dos tempos sem que não passava de uma frágil aldeia agrícola, à mercê de possíveis invasores. Descendo a colina do Saqsayhuaman, encontram-se várias colunas cilíndricas: gnômones para o cálculo das efemérides solares, usando suas sombras para prever os solstícios e equinócios.

O cusquenho típico é atarracado smas forte, de peito largo, músculos compactos, bíceps curtos mas poderosos e panturilhas bem desenvolvidas pelo eterno esforço de subir e descer montanhas. A pele e dura, cor de jambo maduro. Tem o rosto ovalado, maxilares possantes, lábios largos e olhos negros e amendoados. Veste-se com apuro, coberto de adornos, alguns com orelheiras de prata, outros com orelheiras de ouro – nobres aparentados do imperador.

Fala-se muito nas ruas, mas o cusquenho é sábio e discreto, e expressa-se a meia-voz, sem espalhafato, como que saboreando as palavras de seu idioma.

Vêem-se também muito estrangeiros na Cuzco imperial. Cada nação do Império tem o seu representante na Cidade Sagrada, gente que não se diferencia muito do cuzquenho legítimo, a não ser pelos adornos que traz à cabeça para identificar sua origem.

No meio da cidade – o coração do Puma – encontra-se uma ampla praça, com um riacho dividindo-a em duas. E no centro dela, o luxo desmedido da topografia dos Andes: um monólito negro – USNU –, a Pedra da Guerra, símbolo dos invencíveis exércitos de Cuzco.

A metade de cima da praça é chamada de Huacaypata – a Praça dos Lamentos –, reservada aos ritos religiosos. A outra metade, é a Cusipata – ou Praça do Regozijo – e está cercada de plataformas de cultivo. Essa parte da praça é usada para as celebrações de triunfo e a feira de mercadorias.

Não é uma feira como outras. Há complexos procedimentos comerciais em que não se usa dinheiro e não existe uma divisão muito clara entre clientes e mercadores. Todos compram e todos vendem de tudo. A feira é um acontecimento social, um exercício de civilidades e um deslumbramento dos sentidos, já que na Cuzco imperial não havia gente pobre, e todos estavam muito habituados ao que havia de melhor no mundo.

No setor de vestuário, quase não se encontra o tecido de ABASCA (lã de alpaca), usado pela gente do povo. Ali reinava o algodão costeiro e o reluzente tecido de CUMBI (lã de vincunha), que enfeita a nobreza. Havia, também tecidos com reflexos furta-cor, tecido com plumas muito pequenas, do peito dos passarinhos, de cores vibrantes colocadas no cumbi de maneira que a pluma sobressaia à lã e a encobria. Encontrava-se, ainda, peças sedosas, mesclando lã de vincunha com pelo de morcego, e a tradicional CHAQUIRA, feita de lã finíssima com pingos de ouro e prata.

Além das roupas prontas para vestir, há também lã em madeixas, fios em carretéis, instrumentos de costura e tecidos de CHUSI (fibras de manguei ou agave) para confecção de almofadas, tapetes e esteiras. Atrás dos vendedores de tecidos, borbulhavam caldeirões de água fervente, usados para lavar roupa e para extrair gordura da lã a tingir. Ao lado, outros enormes tachos de barro onde se tingem peças de algodão. Faz-se o azul com folhas de índigo; amarelo, com cortiça; negro, com madeira de taro; vermelho, com sementes amazônicas e violeta com uma infusão de milho negro e cactos andinos. Combinando essas cores fundamentais, os tintureiros eram capazes de produzir centenas de outras cores secundárias.

Além do setor de vestuário, há o de objetos de couro, onde se trocam peles de animais selvagens, desde o puma do altiplano à colorida onça amazônica. Há couro de lebres e de pequenos carnívoros das montanhas, tapetes de pele de alpaca, correias, sandálias e fundas feitas com couro de pescoço de lhama.

Comercializa-se também madeira nobre da floresta, seja em troncos ou em pranchas, em infinitas variedades. Vendem-se vigas para telhados, pranchas para revestimento de pisos, tábuas para alambrados, estacas e marcos funerários, assim como arcas, tamboretes, bancos, teares e pequenos objetos de uso cotidiano, como colheres, espátulas, cachimbos, canudos, copos para cerveja de milho e qualquer outro objeto que se possa esculpir em madeira.

Não se comercializa ouro, já que o outro é sagrado, mas há prata e muita bijuteria. Delicadíssimas jóias criadas por artesão locais. Há quantidades de cântaros, pulseiras, braceletes incrustados com pedras preciosas, colares de contas coloridas, anéis, orelheiras, narigueiras e brincos. Trocam-se ágatas, esmeraldas, diamantes, turmalinas e objetos decorativos feitos de convincente ouropel.

Outro setor é o alimentício, com absoluta supremacia dos produtos vegetais. Há milho amarelo, grisáceo, violeta e roxo; milho de duas cores, de três cores; milho de todas as cores. Há milho de espigas longas, milho de espigas grossas, milho de espigas tortas e milho sem espiga alguma. Há milho costeiro, milho amazônico e soberbas espigas de milho branco, trazidas do Vale Sagrado do Urubamba. Vende-se milho cozido, tostado, em papa, seco e farinha de milho bruta e refinada. Há milho para broas e broas de milho já prontas, milho para preparar cerveja e muita cerveja de milho – a AKHA dos povos andinos. Cerveja com saliva de virgens impúberes, com mel, com raízes e com substâncias alucinógenas.

Também há mais de seiscentas e vinte e cinco variedades de tubérculos cultivados no Império. Há batatas doces, amargas e silvestres, em diferentes estágios de pré-cozimento ou de cocção. Assim como feijão em grão ou em vagem, amendoim cru e torrado, mandioca, tapioca e maniçoba, lúcumas, ananases, pequenos tomates andinos, graviolas, abacates, pinhas, goiabas, pepinos e diversas variedades de pimentas e ervas aromáticas. Vende-se sal em cristal, algas secas para a sopa e bolinhas de cal para mascar com a coca.

Nos açougues há quartos de lhamas frescos e salgados, coelhos, cuys (porquinho-da-índia), patos, perdizes, tórtolas, tordos e galináceos selvagens em charque ou par ao abate. Há tanques de rãs e sapos, e insetos comestíveis. Vende-se mel silvestre – pois o andino nunca aprendeu a domesticar abelhas – e peixes secos importados das colônias litorâneas.

A variedade de plantas medicinais do herbário nativo é inacreditável. Sob cabanas de totora atopetadas de recipientes de barro, os curandeiros vendem remédios para todos os males – agnas-agnas para secar tumores, huamanripa para a pneumonia, castanhas montesas contra disenteria, choclla, oca, mocomoco, pacal, milu, olluco, vilca, chicla e outras tantas plantas para diferentes males.

Há, também, remédios preparados à base de placenta, fetos e coração de lhamas, gordura de aves de rapina e infusões de pássaros canoros. Há poções à base de pó de conchas rosadas e também de estrelas-do-mar.contra palpitações e outras doenças cardíacas. O curandeiro ministras sangrias, extrai nódulos e quistos, cura ferimentos infeccionados e possui pedras de bezoar encontradas nas entranhas de animais silvestres, supostamente capazes de curar picadas de escorpião e serpente. Também vendem rapé, tabaco, drogas estupefacientes, infusões afrodisíacas, filtros de amor...

Apesar de muito concorrida, a feira é um lugar de silêncio. Não se ouvem gritos, nenhuma conversação exaltada. Os negociantes pouco falam, e quando o fazem, murmuram. As trocas são feitas através de olhares e gestos. As cifras são calculadas rápida e silenciosamente em ábacos chamados YUPANAS. Usam pesos, balanças e outras medidas para grãos e líquidos, instrumentos de precisão rigorosamente controlados pelos fiscais do Estado. Não há roubo, não há dolo. E raramente se vê alguém insatisfeito com os negócios.

Baseado no texto de Alexandre Raposo

terça-feira, 29 de setembro de 2009

AYLLU

Para entendermos a propriedade e a posse dos meios de produção no Tahantinsuyo, entre eles a terra, é fundamental iniciar pelos AYLLU, unidades clânicas de toda a região andina.

O ayllu foi - e ainda é em muitas regiões andinas - a resposta natural da organização social dos homens e mulheres daquelas paragens contra a falta de máquinas, ferramentas ou grandes animais de carga e tração que permitissem uma luta mais fácil pela sobrevivência em pisos ecológicos extremamente diferenciados (da costa pacífica às alturas dos Andes e à umidade das matas inóspitas, na franjas da selva amazônica). Desta forma, o trabalho coletivo foi a única solução possível para organizar e controlar o trabalho necessário ao bem-estar geral e à sobrevivência. Pelo mesmo motivo, a propriedade da terra era coletiva; os mananciais, pastos e bosques eram comunais; as salinas eram comunais e interétnicos; e as minas pertenciam apenas ao Estado.

O ayllu era, na verdade, uma grande família, com membros agrupados em famílias-simples e famílias-compostas, sempre vinculados por parentesco real e não somente institucional ou totêmico. As famílias-simples (ou nucleares) eram compostas pelos pais e seus filhos solteiros, enquanto as famílias-compostas eram famílias-simples às quais se agregavam outras pessoas, como órfãos, parentes próximos, um dos avós, crianças adotadas etc. Dessa forma, no ayllu o ser humano não era considerado pessoa individual ou separada do coletivo, dentro dos conceitos de individualidade que a sociedade ocidental desenvolveu após a Renascença.

No ayllu, o direito à terra, à casa, à roupa, à alimentação e ao casamento eram naturais e devidos ao simples fato de existir. Havia a certeza de ser amparado pelo coletivo, através dos costumes ancestrais milenares do AYNI ("reciprocidade") e da MINGA ("trabalho conjunto"): pelo ayni, os membros do ayllu emprestavam força de trabalho entre si, assumindo dívidas a ser pagas com igual força de trabalho, e através da minga os membros do ayllu construíam pontes, canais, estradas, templos etc., sempre em benefício do coletivo.

Esse é o cenário social multissecular: ocorriam migrações, queda de alguns impérios, surgimento de outros, guerras civis e substituição de mandatários, mas nada era capaz de levar os camponeses a trocar ou substituir suas estruturas. As bases de vida dos habitantes, a atividade diária, as festas e as crenças prosseguiam imperturbáveis. Nasciam, viviam e morriam segundo costumes invariáveis e imemoriais. E dentro desta estrutura milenar, quem pertencia a um ayllu gozava de todos os benefícios sociais, desde que cumprisse suas obrigações. Aqueles, porém, que por qualquer razão deixassem de desempenhar seus papéis produtivos, evadindo-se das mingas ou de cumprir dívidas assumidas em aynis, eram banidos do ayllu e se transformavam em mendigos, criminosos ou YANAS (pela vida toda ou até que, como em alguns casos, o ayllu os recebesse de volta).

Cada ayllu se considerava descendente de um determinado casal de antepassados, razão pela qual seus membros guardavam e adoravam em um lugar sagrado - HUACA - a múmia (MALLQUI) dos primeiros progenitores. Ao descendente direto do casal primordial outorgava-se então o poder de liderar os destinos da coletividade, recebendo o titulo de CURACA ("o maior entre os seus") mas não lhe conferindo quaisquer benefícios diferenciados no que toca à posse ou propriedade dos meios de produção e da terra. Em outras palavras, o curaca podia solicitar aos membros do ayllu pagamento de tributos em forma de trabalho nas suas terras, mas nunca requerer qualquer quantidade de produtos ou possuir terra própria.

Nos ayllus vigorava a monogamia e a proibição do incesto entre os membros de uma família-simples mas não entre os membros de uma família-composta e, assim, as uniões matrimoniais se davam sempre entre homens e mulheres do mesmo ayllu mas nunca da mesma família nuclear. Ao casar, o casal recebia em uma poção de terras para plantar e construir sua casa.

As terras para cultivo eram divididas em TUPOS, palavra que significava "medida". Mas um tupo não era determinado pela superfície de terra abrangida e, sim, pela quantidade de alimentos que poderia produzir; ao casar, um homem recebia um tupo e sua mulher meio tupo, e receberem mais tupos à medida do aumento da família pelo nascimento de filhos ou por sua transformação de simples para composta etc. Todavia, quando morriam os pais, os filhos não retinham para si os tupos entregues à eles, pois as terras pertenciam ao ayllu e tinham sido trabalhadas apenas em usufruto. Com isso, não existia a propriedade privada de terra, razão pela qual muitos estudiosos do passado julgaram vislumbrar uma estrutura econômica socialista no Tahantinsuyo.

O excedente de produção do ayllu era utilizado para a prática de escambo ou troca (catu, em quechua), através da qual se obtinham o que lhes faltava (sal, produtos agrícolas ou de artesanato, gado etc.).

Cada família-simples ou composta dispunha sua casa em pequenas aldeias, as MARCAS ("povoados"). Nas montanhas, eram feitas com PIRCA (mistura de barro e pedra) e cobertas com palha; na costa normalmente eram de BAJAREQUES (taquaras) ou caniços e galhos sem barro, para facilitar a aeração; e em outras regiões, especialmente as com menor índice de chuvas, se utilizava o adobe (mistura de barro e palha).

As casas, por sua vez, eram dispostas de forma irregular dentro de uma área cercada, obedecendo às alterações do terreno utilizado, assim, inexistiam ruas retas ou bem traçadas, melhoria implantada pelo Estado Imperial Inca apenas nas LLACTAS (cidades) do Tahantinsuyo.

A quantidade de ayllus no Tahantinsuyo passou dos 2.000.

Baseado no texto de Luiz Carlos Teixeira de Freitas

domingo, 20 de setembro de 2009

AS ORIGENS ANDINAS


A origem da civilização andina situa-se num período entre 3.000 a.C. e 1.800 a.C, quando suas bases foram delineadas. Plantas e animais domésticos foram importantes nesse período – o resultado de uma longa relação entre povos e ambientes durante o período lítico (12.000 a 3.000 a.C).

Dois tipos de tradição cultural surgem nesse período: o das TERRAS ALTAS e o das REGIÕES DESÉRTICAS DA COSTA, com influência mútua apesar da distinção.




O sítio de LA GALGADA exemplifica bem esse período. Situado no meio caminho entre a floresta tropical e a costa, tinha um centro cerimonial com duas grandes plataformas e duas construções menores sobre elas, com a fachada pintada com cal branca. Feitos com argila e pedra, com uma praça circular escavada na frente, tinham uma lareira central subterrânea, alimentada por dutos de ventilação; ali se queimava pimenta – o que parece ser parte de um ritual religioso – mas também servia de cripta para os mortos. Essa dupla função da câmara é uma pratica que se tornou muito difundida depois: locais de rituais são, também, sepulturas sagradas de seus ancestrais.

Em diversas sepulturas humanas bem preservadas, foram encontradas plumas de pássaros das florestas tropicais, ossos de cervo, turquesa, conchas de spondylus e cristais de sal. Nessa época primitiva, os habitantes de La Galgada parecem não ter usado o lhama ou a alpaca como animais de carga ou como fonte de lã.

Embora La Galgada estivesse entre a costa e a montanha, fazia parte da chamada TRADIÇÃO RELIGIOSA KOTOSH, que é mais conhecida nas terras altas. Esses centros cerimoniais são característicos por seus pequenos recintos particulares, mais apropriados para um número limitado de devotos do que para o grande público das cerimônias – como é típico na costa. Construídos por comunidades locais, esses centros primitivos parecem ter enfatizado seu ritual no que eles chama de ORIFÍCIOS DE FOGO – localizados no centro de depressões onde holocaustos eram oferecidos. Essas características eram regular e cuidadosamente “enterradas”, assim aumentando o nível de novas, mas idênticas, estruturas construídas no topo, elevando as colinas muito parecidas com os montes artificiais do Oriente Médio.

Em Kotosh, onde a atividade religiosa pode ser detectada desde 2.800 a.C., a estrutura mais famosa é o TEMPLO DAS MÃOS CRUZADAS, que possui dois frisos de baixo-relevo de mãos cruzadas. Oferta de porquinho-da-índia e de lhamas também foram encontradas em nichos durante as escavações. Próximo desse, fica o sítio de SHILLACOTO e, mais além, em direção às florestas tropicais, está WAIRA-JIRCA, que também parece ter construções da mesma época. Apesar de fazer uso dos mesmos cultos de fé e atividades, os sítios da Tradição Religiosa de Kotosh também mostravam variações locais. Em HUARICOTO, por exemplo, as construções não eram de pedra e davam a impressão de uma versão menos sofisticada; no entanto, holocaustos eram feitos, incluindo os de conchas e cristais de quartzo.

Além das montanhas, na costa desértica, encontramos a HUACA PRIETA, na nascente do rio Chicama. Os habitantes dependiam de uma mistura de cultivo de plantas locais, como feijão e pimenta, e recursos marítimos obtidos da coleta de moluscos e da pesca com rede. Foi em Huaca Prieta que a tradição de cabaças entalhadas com temas artísticos chegou à região do atual Peru, vinda do povo Valdívia (Equador). Sua decoração consistia em desenhos abstratos de rostos e figuras zoomórficas.

Huaca Pietra e La Galgada compartilhavam muitos aspectos da cultura material da época – cestas de palha, cabaças e tecidos de algodão trançado. O processo técnico da produção enfocava formas geométricas, e não é surpresa eu os desenhos abstratos que incorporavam quadrados, linhas retas, diamantes, fossem uma característica da arte de tecer primitiva. Apensar disso, desenhos claramente representativos eram feitos – os tecidos da Huaca Pietra mostram condores, peixes e serpentes de duas cabeças.

Além desses desenvolvimentos, a prática andina de construir uma grande arquitetura cerimonial também começa nessa época. Na costa, os sítios de RIO SECO, SALINAS DE CHAO, BANDURRIA e ÁSPERO (vide artigo no mês de Abril/2009, desse blog) têm uma arquitetura cerimonial que dá ênfase a plataformas planas onde os rituais podiam ser observados por um grande número de pessoas e, dessa forma, possuíam uma função pública. Indícios arqueológicos sugerem que alguns desses sítios foram provavelmente construídos por povos de diversos vales, que vieram juntos construir o que eram, na verdade, monumentos corporativos.

A própria Áspero, situada na nascente do vale Supe, na costa norte do Peru, parece ter prosperado por volta do ano 3000 a.C. Sua área de 12 hectares inclui seis plataformas maiores e onze menores. Dois dos monumentos de Áspero foram investigados de modo arqueológico, HUACA DE LOS IDOLOS e HUACA DE LOS SACRIFÍCIOS. Diversas sepulturas foram escavadas, mas talvez a descoberta mais atípica tenha sido o depósito de 13 estatuetas de argila crua, encontradas no cume da Huaca de los Idolos. Todas estavam quebradas; a maior parte representava mulheres, várias das quais deveriam estar grávidas. Se essas estatuetas representavam sacrifícios ancestrais, ou foram utilizadas em rituais xamânicos, é desconhecido.

O maior monumento dessas época originária é EL PARAISO, localizado a apenas 2 quilômetros do oceano, no Vale Xilon. Data de aproximadamente 2.000 a.C. El Paraíso ocupa uma área de 58 hectares e é composto de nove edifícios principais, todos construídos de blocos de pedra totalizando 100 mil toneladas. A técnica de construção aplicada empregava a coleta de pedras colocadas em redes de fibras chamadas SHICRAS e usadas como aterro. Uma estimativa é que levou 2 milhões de dias de trabalho para erguer todas as estruturas de El Paraíso.

Em forma de U, dentro foram encontradas várias depressões circulares, cheias de carvão, levando à interpretação de que seriam “orifícios de fogo” usados de forma ritual. Os indícios incluem restos de plantas e peixes, embora em quantidade não suficiente para sugerir que os construtores viviam no local.

No final desse período civilizatório, os vales da costa do Peru viram o desenvolvimento da arquitetura em larga escala em grandes centros com populações entre mil e três mil pessoas. Tais centros eram auto-sustentáveis em uma economia misturada de agricultura e recursos marítimos e claramente cooperavam através das fronteiras do vale (e talvez política e etnicamente) a fim de construir tais estruturas corporativas em massa, como El Paraíso e Caral.

CARAL é um sítio que cobre 110 hectares de arquitetura cerimonial e residencial e inclui um agrupamento próximo de montes e plazas conhecido como CHUPACIGARRO. Parece que o sítio foi ocupado por volta de 2.450 a.C, na época em que as plazas circulares escavadas foram construídas. Há oito outros grandes sítios com arquitetura monumental no Vale Supe (além de Áspero) e, junto com outros sítios primitivos similares aos dos vales adjacentes de Pativilca, Fortaleza e Huaura, são tão precoces que foram designados como grupo NORTE CHICO (Pequeno Norte). É possível que quando investigações futuras iluminarem esses sítios do início do Peru pré-histórico, se conheça ainda melhor o alto grau de cooperação social que destaca esse período que se define firmemente como uma característica única do início da civilização andina, que foi desenvolvida regionalmente em épocas posteriores até o período inca.


Baseado no texto de Nicholas J. Saunders

A AMÉRICA NO ANO 1000 D.C


No ano 1000 d.C., os Andes abrigavam dois grandes Estados. Um deles, tinha como base o lago Titicaca – o lago montês a 3.600 metros de altitude e mais de 190 quilômetros de extensão. As montanhas ao seu redor são desoladas e gélidas, mas o lago é comparativamente quente e, por isso, as terras que o circundam são menos açoitadas pelo frio do que aquelas terras altas adjacentes. Pois tirando vantagem exatamente desse clima mais favorável, o povoado de TIWANAKU se tornou centro de uma grande comunidade política organizada. Um agrupamento de municipalidades (mais do que um Estado propriamente dito), os tiwanakotas viviam sob a influência religiosa-cultural do centro.

Tiwanaku soube tirar vantagem das diferenças ecológicas extremas entre a costa do Pacíficos, as montanhas escarpadas e o altiplano, para criar uma densa rede de comércio: peixes do mar; lhamas do altiplano; frutas, verduras e grãos dos campos ao redor do lago... Estimulada pela riqueza, a cidade de Tiwanaku expandiu-se numa maravilha de pirâmides e monumentos grandiosos, com água corrente nas casas, esgoto encanado e muros pomposamente pintados. Tiwanaku está entre as cidades mais impressionantes do mundo.

No ano 1000 d.C., sua população estava em torno de 115 mil pessoas, com outras 250 mil nos campos circundantes – números que Paris não alcançaria antes de 1.500.

Ao norte e a oeste de Tiwanaku, situava-se o Estado rival de WARI, que se estendia por mais de 1.600 quilômetros ao longo da crista dos Andes. Mais rigidamente organizado e com mais vocação militar do que os tiwanakotas, os governantes wari construíram fortalezas em massa, particularmente ao longo de suas fronteiras. A capital situava-se nos c umes, perto da cidade moderna de Ayacucho, abrigando por volta de 70 mil pessoas. Warii era uma concentração febril de aléias e templos murados, pátios ocultos, tumbas reais e edifícios residenciais de até seis andares. A maior parte das construções tinha reboco branco, fazendo a cidade reluzir ao sol da montanha.

Por volta do ano 1000 d.C houve uma sucessão de acontecimentos climáticos terríveis, que duraram cerca de 80 anos. Tempestades de poeira engoliram os planaltos e escureceram as geleiras nos picos acima (amostras de gelo, colhidas na década de 1990, sugerem esses acontecimentos). Depois ss, veio a fieira punitiva de secas, de muito mais de uma década de duração, interrompidas por enchentes gigantescas (registros de sedimentos e de anéis de árvores descrevem a seqüência). A causa do desastre continua a ser objeto de pesquisa, mas alguns climatologistas acreditam que o Pacífico é sujeito a eventos “mega-niños” – versões mortalmente fortes dos bem conhecidos padrões El Niño, que hoje causam devastação no clima das Américas. Em 1925 e 1926 um forte El Niño (não um “mega”) abateu-se sobre a Amazônia com tanto calor seco que incêndios súbito mataram centenas de pessoas na floresta. Rios secaram, os leitos acarpetados de peixes mortos. Um mega-niño no século XI pode ter causado as secas naqueles anos, causando uma violenta mudança climática que pôs severamente à prova as sociedades Wari e Tiwanaku.

Seja como for, pouco depois do ano 1000 d.C., os tiwanakotas cindiram-se em fragmentos que só seriam reunidos novamente quatro séculos depois, quando os Inkas assumiram o governo da região.

Na mesma época, na península de Yucatán, no México, pátria dos MAIAS, a cidade de CALAKMUL cobria uma área de nada menos que 65 quilômetros quadrados, com milhares de edifícios e dúzias de reservatórios e canais. Os pesquisadores limparam e fotografaram mais de 100 monumentos. Em 1994, paleógrafos identificaram o nome antigo da cidade-Estado: KAAN, o Reino da Cobra.

Uma coleção de cerca de 12 reinos e cidades-Estado numa rede de alianças e feudos tão enovelados quanto aqueles da Alemanha no século XVII, o reino Maia foi o berço de uma das culturas intelectualmente mais sofisticadas do mundo. Tinham vários sistemas de escrita, estabeleceram vastas redes de comércio, fizeram mapeamentos das órbitas dos planetas, criaram um calendário de 365 dias e registraram sua história em “livros” dobrados em sanfona, feitos de papel fabricado a partir da casca da figueira. Mas sua maior façanha intelectual foi a invenção do “zero”: o primeiro “zero” registrado nas Américas ocorreu em um entalhe maia de 357 d.C., possivelmente antes do zero sânscrito que chegou à Europa só no século XII.

Os Maias entraram em colapso mais ou menos no mesmo período que as civilizações Tiwanaku e Wari e pelo mesmo motivo: uma enorme seca! Os maias, amontoados aos milhões numa terra pobremente adequada à agricultura intensiva estariam perigosamente próximos de exceder a capacidade de suporte dos seus ecossistemas. A seca, possivelmente causada pelo mega-niño, teria apenas antecipado uma catástrofe que já parecia eminente.

Ao norte dali, mais para perto das montanhas, situavam-se as beligerantes e cindidas cidades-Estado de ÑUDZAHUI (Mixtec) e os TOLTECA, a 1.600 metros de altura onde hoje está a Cidade do México. Essas duas civilizações viviam uma guerra shakesperiana, explicada por acusações de embriaguez e incesto, forçando a saída do rei há muito empossado, Topiltzin Quetzalcoatl, em 987 d.C. Ele fugiu com barcos carregados de legalistas para a península de Yucatán, prometendo retornar. Em 1000 d.C., Quetzalcoatl tinha conquistado a cidade maia de Chichén Itzá e a estava reconstruindo à imagem tolteca.

A sudoeste dos Estados Unidos encontramos a sociedade mississipiana do Meio-Oeste: CAHOKIA, o maior centro populacional ao norte do Rio Grande. A construção começou por volta do ano 1000 d.C., sobre uma estrutura de barro que cobriria finalmente 6 hectares, elevando-se a cerca de 30 metros de altura. Mais alto do que qualquer coisa em volta por quilômetros. Sobre o monte, situava-se o templo dos reis divinos, que eram responsáveis por manter o clima favorável à agricultura.

Continuando para o norte, encontramos a última terra assentada: o reino dos caçadores-coletores – os POVOS INDÍGENAS DAS GRANDES PLANICIES. Eles viviam no interior, remota e esparsamente assentados; suas vidas eram tão distantes dos senhores wari ou toltecas quanto os nômades das Sibéria o eram dos altos e nobres personagens de Beijing. Os grupos das Planícies nos deixaram cinqüenta anéis de pedras, reminiscências da Idade da Pedra. Em 1000 d.C., relações comerciais já haviam coberto o continente por mais de mil anos, com madrepérola do golfo do México sendo encontrado sem Manitoba, e cobre do lago Superior em Louisiana.

No atual estado do Acre, naquele ano 1000 d.C. encontramos uma rede de pequenos povoados associados em terraplanagens circulares e quadradas em padrões muito próprios. Naquela época, o rio Amazonas era muito mais povoado do que é agora. As populações pescavam no rio e cultivavam nas planícies aluviais, e em algumas partes do terreno elevado. Os pomares dos povoados estendiam-se por quilômetros a partir da faixa ribeirinha. Os amazônicos praticavam uma espécie de agro-silvicultura, cultivando árvores sem qualquer semelhança com o tipo de agricultura praticado na Europa, na África ou na Ásia.

Os MARAJOARAS, na foz do Amazonas, naquele ano, tinha uma população estimada em 100 mil habitantes. E a 960 quilômetros rio acima, existia um outro povoamento de igual tamanho atualmente conhecido como TAPAJÓS. Ocupavam uma área de mais de 4.800 quilômetros de extensão, espessamente coberta por fragmentos de louça e artefatos de cerâmica. A região pode ter sustentado ate 400 mil habitantes, o que faria dela, em tão, um dos maiores centros populacionais do mundo.

As Américas antes de 1492 era um lugar supreendentemente diversificado e florescente, de uma agitação de línguas, comércio e culturas, de uma região em que dezenas de milhões de pessoas amavam, odiavam e cultuavam, como pessoas fazem em toda parte do mundo. Muito desse mundo desapareceu após Colombo, varrido por doenças e subjugação. Foi tão abrangente o apagamento que, em poucas gerações, nem conquistadores saibam que aquele mundo tinha existido. Agora, contudo, ele está ressurgindo. Cabe-nos dar uma olhada...

Baseado no texto de Charles C. Mann

domingo, 13 de setembro de 2009

OS MUISKA

A civilização MUISKA é a melhor conhecida de todos os povos da Colômbia. Os primeiros cronistas espanhóis dão-lhe a mesma importância dos povos do México e do Peru. Entretanto, do ponto de vista arqueológico, ela é relativamente pobre.

MUISKA significa “Os Homens”. Eles viviam nas savanas e nos altos vales dos rios Bogotá e Chicamocho, ente 2.500 a 2.800 m. de altitude, gozando, portanto, de um excelente climas e terras muito férteis. Por esse motivos, eram suas cidades eram muito povoadas, mas ignora-se o número exato de habitantes, embora a cifra de um milhão aventada não parece longe da verdade.

Eles tinham dois chefes: o ZIPA e o ZAQUE, que partilhavam entre si a região cibcha. O Zipa reinava sobre os territórios da savana de Bogotá, e o Zaque, sobre os territórios situados ao norte, cuja capital é HUNZA (Tunja).

Os poderes do Zipa e do Zaque estendiam-se a um grande número de localidades, tendo cada qual seu chefe local. Acontecia freqüentemente os diferentes chefes locais não se entenderem entre si e invadirem o território do outros. Mas em relação ao Zipa e ao Zaque, sua submissão não se desmentia jamais. Por exemplo: nenhum deles ousava olhar um desses dois chefes no rosto, o que parece provar que a função do Zipa e do Zaque tinha um caráter não só político, mas também sacerdotal. A saliva do Zipa era sagrada, sendo recolhida piedosamente num prato. Ambos eram transportados em liteiras e construíam cadeiras especiais para eles..

A função de chefe era hereditária, seguindo uma ordem de sucessão matrilinear: o herdeiro do chefe não era seu filho, mas o filho de sua irmã e, se esta não tivesse filho, seu próprio irmão. Mas entre as pessoas comuns, seguia-se o princípio patriarcal.

Um homem podia ter tantas mulheres quantas lhe permitissem seus recursos. Certos nobres tinham uma centena de mulheres; todas elas viviam muitas, afastadas de seu marido comum. As moças eram submetidas a uma iniciação: durante seis dias consecutivos deviam permanecer sentadas em um canto com a cabeça coberta; depois eram banhadas e entregavam-se a abundantes libações de chicha (cerveja de milho).

Na região Muiska, o comércio era bem desenvolvido, mercados funcionavam de quatro em quatro dias nas aglomerações mais importantes. Não existia dinheiro, usando o sistema de troca. Certos mercados eram especializados; encontrava-se esmeraldas, por exemplo, unicamente nos mercados de Moniquirá. Como não existia ouro na região Muiska, trocavam-se os produtos locais – sobretudo sal, vestimentas de algodão e esmeraldas, pelo ouro dos povos vizinhos. Mas apesar dessa falta, a ourivessaria Muiska era muito eficiente. As figurinhas conhecidas com o nome de TUNJO eram trabalhadas segundo a técnica da “cera perdida”. O ouro, o cobre ou, com mais freqüência, a TUMBAGA – liga de ouro com cobre -, eram os principais metais empregados.

A mitologia dos Muiska é impar. Os deuses eram numerosos e de duas espécies: os criadores e os que assumiam uma determinada função de manutenção.

Entre os criadores podemos citar, em primeiro lugar, CHIMINIGAGUÁ – pai de tudo que existe, inclusive o Sol e a Lua. Depois dele, o próprio Sol e Lua – responsáveis pelo calor, pela seca e pela chuva. O Sol parece ter merecido a maior consideração; os cronistas descrevem vários templos dedicados a ele. Quando os espanhóis chegaram, os Muiskas tomaram-nos por “FILHOS DO SOL”... o que facilitou a conquista.

Os Muiskas tinham várias versões cosmogônicas. Por um lado, Chiminigagua estaria na origem de tudo. De acordo com outra versão, o Sol e a Lua estavam na origem do universo. Uma terceira atribuía a criação a dois caciques metamorfoseados em sol e em lua, de modo que essa versão confunde-se com a precedente. Os primeiros homens teriam sido feitos de argila, e as mulheres de ervas.

Um outro mito conta como o gênero humano foi engendrado por uma mãe comum – BACHUE. Esta proviria de um lago perto de Iguape, com uma criança de três anos nos braços. Quando o menino tornou-se adulto, ela desposou-o. Inúmeros filhos nasceram desse casamento, de quatro a seis de uma vez e foram os primeiros humanos. Quando Bachue e seu filho-consorte tornaram-se velhos, desapareceram no lago, transformando-se em serpentes.

A humanização da divindade é um traço característico da religião Muiska. O Sol é sempre masculino e fecundador da Lua, sua esposa, mas também de mulheres... como acontece com a mãe de Goramchacha, um cacique de Tunja. O Sol fala aos homens e lhes dá ordens; quando zangado, era necessário sacrificar-lhe crianças para que se acalmasse.

Outros dois deuses muito populares eram BOCHIVA e MUISKACUM. Eles eram rivais. Muiskacum não gostava dos humanos e por isso, enfurecido, vivia inundando a savana de Bogotá com chuvas diluvianas. Os humanos, desesperados, recorreram a Bochica, e ele, com um golpe de sua vara de ouro, fende os rochedos de Tuquendama para que as águas escoassem. O local mitológico coincide com aquele onde estão as famosas quedas d’água de Tuquendama. Em seguida, Bochica condena Cibchacum a carregar a terra sobre os ombros. Por esse motivo, cada vez que a terra treme, sabe-se que é Muiskacum que a passa de um ombro para o outro.

Naturalmente, Bochiva e Muiskacum têm aparência humana. Na sua qualidade de heróis civilizador, Bochica veio do leste – no nascer do Sol –, com uma barba comprida e uma abundante cabeleira, que lhe chegava à cintura. Andava descalço e ensinou aos antigos a arte de fiar o algodão e tecer as vestes. Ensinou, também, a pintar nas roupas motivos em forma de uma cruz de quatro baços iguais.

Entre os sacrifícios, os mais importantes eram os MOJAS – rapazes de 15 as 16 anos, trazidos geralmente de longe, das vertentes das planícies, comprados ou prisioneiros de guerra. Enquanto eram preparados para o sacrifício, seu umbigo era cortado, pois o sangue que sai do umbigo era a alimentação do Sol. Eram muito vigiados pois se tivessem relações sexuais, já não serviam para o sacrifício, pois perdiam a capacidade de intermediar a relação homens-sol.

O sacrifício era feito geralmente em elevações, na encosta voltada para o leste: Estendia-se a vítima sobre um pano precioso e, então, era morta com facas de bambu pelos JEQUES (sacerdotes). Depois aspergia-se os rochedos com o sangue, ao nascer do sol, e deixava o cadáver ali mesmo, para que fosse comido pelo Sol.

Os Jeques presidiam todas as festas: a comemoração a criação do mundo (solstício de verão), a benção das construções, a semeadura, a coleita e a purificação das pessoas e dos locais. Nessas ocasiões, faziam-se procissões em estradas especialmente construídas para isso. Nelas também se faziam as “Corridas Rituais” – muito populares, mas terminavam freqüentemente com a morte de vários participantes, que ultrapassavam suas forças no desejo de alcançar a vitória e adquirir o prestígio que isso conferia.

A posse de um novo líder comunitário era uma manifestação espantosa. Em Guatavita, por exemplo, o candidato era todo pintado com argila misturada com pó de ouro e, depois, embarcava com quatro companheiros num barco de cana até o centro de uma laguna. Lá atiravam às águas punhados de contas de ouro e esmeraldas.



Baseado no texto de Henri Lehmann

sábado, 12 de setembro de 2009

NÓS VIVEREMOS

Quando a terra-mãe era o nosso alimento,
Quando a noite escura formava o nosso teto,
Quando o céu e a lua eram nossos pais,
Quando todos éramos irmãos e irmãs,
Quando nossos anciãos eram grandes líderes,
Quando a justiça dirigia a lei e sua execução...

Ai outras civilizações chegaram!

Com fome de sangue, ouro, terrra e todas as riquezas,
trazendo numa mão a cruz e na outra a espada,
sem querer aprender os costumes de nossos povos,
nos classificaram abaixo dos animais.
Roubaram nossas terras e nos levaram para longe delas,
transformando em escravos os "Filhos do Sol".
Entretanto, não puderam nos eliminar,
nos nos fazer esquecer o que somos,
porque temos uma ascendência milhenar e somos milhões.
Mesmo que nosso universo inteiro seja destruído...

NÓS VIVEREMOS

por mais tempo que o império da morte!

Declaração Solene dos Povos Indígenas
Assembléia Geral do Conselho Mundial dos Povos Indígenas

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O POVO TAPIRAPÉ




Não sei exatamente como vai terminar este drama.
Só sei que nós estamos animados de uma grande esperança
e estamos resolvidos a mudar os caminhos da nossa história.

Lourenço Tixabae Eworôros, da nação Borôro



No final da época colonial, os TAPIRAPÉ, como os outros povos originários, haviam se refugiado nas cabeceiras dos grandes rios, onde poderiam estar mais protegidos dos ataques dos portugueses que buscavam ouro e escravos. Entretanto, a inimizade com outros grupos indígenas os obrigaram a buscara a região do Araguaia, nas nascentes do rio Tapirapé, não longe da ilha do Bananal. Ali cresceram e puderam constituir cinco aldeias, com uma população de aproximadamente 1.500 pessoas.

Embora fossem perturbados esporadicamente por ataques dos Kayapó, que em incursões guerreiras aprisionavam mulheres, a maior ameaça veio com a chegada de cearenses que percorriam a região em busca de seringueiras, já que a Amazônia vivia, na virada do século XIX para o XX, a Febre da Borracha. Com eles chegaram a gripe e a malária.

Os contatos continuavam intermitentes, não só com sertanejos (com os quais comercializavam instrumentos de ferro, como machado e facão), mas também com missionários católicos e evangélicos, que viajavam pelo Araguaia em busca de grupos arredios para batizar.

As doenças se alastravam e faziam muitas vítimas, já que os Tapirapé não apresentavam resistência a elas. No final dos anos 30, das cinco aldeias iniciais, só restavam duas: Tapi’itãwa (a aldeia da anta), com 147 pessoas, e Xsexotãwa (a aldeia do peixe), com apenas 40 pessoas.

O tempo e as doenças continuavam espalhando a morte. Em 1947, o grupo estava reduzido a 80 pessoas.

O golpe fatal ocorreu no final desse mesmo a no, quando os Kayapó Mentuksktire atacaram Tapi’itãwa, num dia em que os homens estavam na mata, repartidos entre a roça e a caça. Os velhos que se encontravam na aldeia foram mortos, e várias mulheres e meninas, seqüestradas, segundo a tradição do povo Kayapó, que procura mulheres de outros grupos para se casar. Apavorados, os sobreviventes fugiram, e durante a fuga um grupo se embrenhou pela mata, desgarrando-se dos demais. Outro grupo, mais numeroso, procurou o recém-criado posto do SPI, na desembocadura do rio Tapirapé.

Por três anos os Tapirapé deixaram de existir como sociedade, ficando dispersos entre famílias de sertanejos e nas fazendas da região. Graças aos padres dominicanos e a um funcionário do SPI, 51 remanescentes foram reagrupados próximo ao posto indígena, na foz do rio Tapirapé.

Construíram a Aldeia Nova, com cinco casas de adobe, do tipo sertanejo, dispostas em círculo, ao redor da takãra, a casa dos solteiros, construída na forma tradicional tupi, toda de palha.

Algum tempo depois, em 1952, chegaram as “Irmãzinhas de Jesus”, da Congregação de Charles de Foucauld, que buscavam um pequeno grupo, “um punhado de homens pelos quais ninguém se interessa”, como dizia a fundadora dessa ordem religiosa. Não chegavam, como os demais missionários, com a perspectiva desestruturadora de catequizar, batizar e “civilizar”. Vinham de outra experiência religiosa, em que o importante era a convivência discreta e silenciosa, a solidariedade com os mais pobres e a encarnação na cultura do outro. E esse apoio discreto e a convivência respeitosa fizeram com que um grupinho de pessoas, condenadas à extinção, voltasse a constituir um povo.

Em 1977, os Tapirapé já contavam com 137 pessoas, quase o triplo dos 25 antes. O controle médico-sanitário desenvolvido pelas Irmãs evitou novas epidemias. A autoconfiança voltou a reinar, e os Tapirapé não pararam de crescer. Por falta de mulheres na comunidade, alguns se casaram com moças Karajá, apesar das desconfianças deixadas pelo passado de vizinhança conflitiva.

Com o aumento populacional, as festas retornaram, como a dos jovens e a dos adolescentes. Nessa última, os meninos de 8 a 12 anos, num ritual de iniciação à vida adulta, raspam a cabeça e furam os lábios, depois de passar algum tempo morando na casa dos homens, aprendendo as atividades dos adultos.

As caçadas e pescarias voltaram a ser feitas pelos wyrá (sociedade de pássaros), que são agrupamentos masculinos, subdivididos em grupos por idade: o dos homens mais velhos,s o dos adultos e o dos jovens. Antes havia verdadeiras disputas entre eles, que foram substituídas pela competição. Todos os grupos possuem um ou mais Espíritos Animais protetores ou, como de diz também, “animais de poder”. Sempre de aves, como a garça e o papagaio, e por isso o nome “wyrá”. Para essas aves devem ser feitas algumas obrigações, como acolhê-las no takana e representá-las nos rituais, com danças e cantos.

Pra reaprender rituais de cura, alguns Tapirapé foram ao Parque do Xingu, receber a iniciação dos pajés Kamayurá.

A escola também teve importante papel na recuperação da autoconfiança e da auto-estima. Além de poderem aprender a ler e a escrever em seu idioma, os Tapirapé puderam ilustrar dois livros de história indígena, escritos por seus professores, que tiveram sucesso editorial (“História dos Povos Indígenas” e “Confederação dos Tamoios”). Vários alunos, como Rafael Oparãxowí, elaboraram textos que mostram como vêem o futuro de seu povo.

Hoje alguns jovens Tapirapé se formaram professores, num projeto alternativo assessorado por professores da UNICAMP e com o apoio de entidades da região de São Félix do Araguaia – MT. Ao contrário dos outros professores, a formatura ocorreu na aldeia, e fizeram questão de se apresentar pintados e com cocar de penas, de acordo com a tradição.

As crianças, que nasciam em grande número, passaram a ser sinal de vida. Em 1985, os Tapirapé já constavam com 202 pessoas, e em 1995, compunham 350.

Três fatos importantes ocorreram nos últimos anos do século XX: a demarcação da área onde vivem, em 1983; a criação da Associação dos Povos Tupi do Mato Grosso, Amapá, Pará e Maranhão – AMTAPAMA, surgida em 1985; e a retomada, em 1993, da área do Urubu Branco, onde existia a aldeia Tapi’itãwa, ocupada ainda pela fazenda Tapsiraguaia.

A luta pela terra tem uma longa história. Os Tapirapé, que o início tiveram o importante apoio das Irmãzinhas e dos agentes da pastoral da Prelazia de São Felix, aos poucos foram assumindo a luta e criando lideranças capazes de enfrentar o jogo duro dos fazendeiros e exploradores que invadiram a área indígena. Depois de muitos pedidos sem resposta feitos a Brasília, os Tapirapé, incentivados pela IX Assembléia de Chefes Indígenas, realizada sem sua aldeia, resolveram partir para a autodemarcação. Lideranças Xavante, Borôro, Paresi, Kaingang e Nambikuara, que participaram da reunião, se ofereceram para uma eventual ajuda. Mas sem conseguir impor suas condições aos fazendeiros, os Tapirapé começaram a matar os bois que encontravam em suas terras. Aproveitando esse incidente, o presidente da FUNAI, Coronel Nobre da Veiga, exigiu que seus funcionários deixassem a reserva, alegando falta de segurança, e solicitou reforço da polícia militar de São Felix, para “proteger” as fazendas.

Nesse momento, a sociedade civil e religiosa passou a se mobilizar, principalmente em Brasília e Goiânia. Em solidariedade aos Tapirapé, algumas entidades divulgaram nota de apoio à luta desse povo, denunciando a ineficiência da Funai. Tudo isso fez com que o então ministro do Interior, Máriio Andreazza, desautorizasse o procedimento do coronel Nobre da Veiga.

Outro encontro indígena, com a presença de lideranças Iranxe, RIkbaktsa, Pareci e Karajá, deu novo ânimo à luta. O novo presidente da FUNAI concordou em demarcar a área reivindicada, além de retirar os posseiros que nela viviam. Finalmente em março de 1983, o então Presidente João Figueiredo homologou a área de 66.166 hectares, ponto fim a esses anos de luta.

Mas os Tapirapé nunca se esqueceram de sua antiga aldeia, que ficou fora dessa demarcação. Sempre voltavam à região do Urubu Branco, de onde traziam a taquara para suas flechas. Na X Assembléia da Amtapama, realizada em outubro de 1995, voltam a pedir essa área tradicional. E lembrando-se da velha prática de autodemarcação, no final de 1993 um grupo de Tapirapé se transferiu para a antiga aldeia. Esse retorno não era apenas a ocupação de mais um pedaço de terra, mas a reconquista de uma área de onde saíram no final dos anos 40, acossados pelas doenças e pela morte. Ali bebem na fonte das antigas tradições, para enfrentar os novos problemas criados pela convivência com a sociedade ocidental.


Esse desafio entre o novo e o tradicional pode abalar a estrutura do povo Tapirapé. Mas eles esperam superá-lo com muita sabedoria. Xãwãrãxowí, um de seus líderes, aidna na década de 1980, procurou tranqüilizar uma pesquisadora, que se inquietava com as transformações ocorridas na aldeia: “Não se preocupe não. Tudo isso é coisa de pele. O que vale é o que corre aqui dentro da minha veia. E isso é Tapirapé. Isso não muda!”

Baseado no texto de Egon Heck e Benedito Prezia

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

TIAHUANAKU

A civilização Tiahuanaku incorporou e simbolizou dois elementos chaves na vida dos Andes: a PEDRA e a ÁGUA.

Construída em pedra e argila, Tiahanaku é uma cidade monumental: a 15 quilômetros do Lago Titicaca, próxima a um pequeno rio e com inúmeras fontes, incorporou um sistema sofisticado de canais de pedra, dutos e drenos projetados para exibir o controle ritual bem como real do fluir das águas. O coração cerimonial da cidade dominada por plataformas de templos e peças de arte monolíticas, era cercado por um fosso de água que talvez fizesse da cidade um reflexo simbólico das ilhas do Sol e da Lua, no meio do lago TIticaca.

Embora as origens de Tiahanakus não sejam ainda bem conhecidas arqueologicamente, a cidade e os lago são características sempre repetidas na criação cosmogônica e religiosa do povo da região. Em uma versão incas, o Deus Criador VIRACHOCHA criou um novo mundo no local onde a cidade foi construída, mandado o primeiro homem e a primeira mulher de lá chamarem os povos andinos de todos os aspectos da natureza.

Foi entre 100 e 600 d.C. que a cidade cresceu em sua máxima extensão e incluía o grande centro cerimonial que somente agora começou a ser cientificamente investigado. Tiahanaku é, sem dúvida, o centro mais importante e impressionante do sul dos Andes, frequentemente descrito como centralizado, hierárquico e teocrático. Em seu auge, a cidade provavelmente se estendia por 8 quilômetros quadrados, dentro dos quais o núcleo cerimonial possuía 16 hectares. Sua população estava em torno de 30 mil a 40 mil habitantes.

Três construções monumentais dominam o perfil sagrado de Tiahanaku: os complexos de templos de Kalasasaya, Pumapunku e Akapana. Kalasasaya e Pumapunhu são plataformas em forma de U, abertas para o sol nascente; ambas com entrada cerimonial em pedra monolítica.

Mas parece que o centro cerimonial mais antigo deve ter sido os chamados TEMPLO SEMI-SUBTERRÂNEO, que se assemelham aos de Pukara e Chiripa - que são pré-Tiahanaku. Trata-se de uma grande praça escavada, cujas paredes são adornadas com pequenas cabeças entalhadas em pedra, que devem ter sido inseridas junto á parede e que foram provavelmente substituídas ou renovadas diversas vezes. A estrutura inteira pode ter sido dedicada à divindade referida como ESTÁTUA BÁRBARA: um monolito de culto, na forma de uma coluna retangular escavada com traços de um ser humano e mãos proeminentes, que ainda fica na praça.

Próximo a esse templo, há um "monte artificial" de 15 metros de altura, chamado de AKAPANA. Na verdade, trata-se das ruídas de um templo de sete degraus, revestido originalmente em argila e pedra, que deve ter sido a miniatura simbólica das montanhas sagradas que dominam a paisagem ao redor. Acredita-se que o cume do Akapana tenha sido projetado com idéias de geografia sagrada, pois parece ser o único lugar do chão do vale de onde os distantes picos cobertos de neve (Monte Illimani) e o reluzente lago Titicaca podem ser observados com um único olhar. Investigações revelaram que essa e outras estruturas foram associadas ao fluir da água, e talvez à idéia de loção. O cume do Akapana possuía uma camada de seixos verdes provenientes de montanhas próximas e drenos de pedra para regular a passagem da água e talvez para produzir fontes.

Escavações recentes trouxeram imagens íntimas da prática de sacrifício humano e das maneiras pelas quais a sabedoria da elite de Tiahanaku ligou a religião, morte ritual e material cultural. Uma das descobertas foi um baú de KERO - copos cerimoniais de forma única, com uma coroa brilhante, usados provavelmente para beber e para libações. Pelo que parece, esses vasos, no fim do ritual, eram ritualmente esmagados e então cuidadosamente enterrados; sua decoração possuía, normalmente, o motivo de troféus-cabeças. Próximo a esse baú, encontrou-se restos de sacrifício humano, na maioria decapitados, e a imagem entalhada em pedra de uma figura ajoelhada usando uma máscara de felino e segurando um troféu-cabeça. Essas sepulturas parecem ser do século VII. Akapana, portanto, parece estar ligado ao sacrifício humano e ao antigo simbolismo andino do Felino Sagrado.

Adjacente a Akapana, fica KALASASAYA: um outro centro de rituais, dentro do qual fica a impressionante estátua conhecida como MONOLITO PONCE - um monolito que aparece emoldurada pela grande entrada de pedra que fica em cima de uma escada, também monolítica, de entrada ao templo. Ela tem os olhos e a boca retangulares (que é o estilo Tiahanaku) e segura um cetro e um kero. Kalasasaya é cercada por uma parede maciça e possui canais de água elaborados. Próximo, a construção chamada de COMPLEXO PUTUNI é considerada um palácio construído para a elite dominante de Tiahanaku. Abaixo dele está disposto um sistema de esgoto e, na sua superfície, uma fonte de água fresca foi canalizada ao redor do palácio. A escavação de uma câmara do palácio trouxe os restos de uma mulher de alto status, acompanhada de uma máscara de ouro em miniatura, uma coleção de lascas de obsidiana e uma gargantilha de minerais multicoloridos que incluíam turquesas e lápis-lázuli; em outra câmara lateral, foram encontrados um espelho de cobre e outros itens em metal.

O terceiro maior complexo arquitetônico é a plataforma cerimonial de PUMAPUNKU. Construída de andesita e arenito, tem uma grande fachada em pedra e diversas entradas monolíticas. O lintel de uma está entalhado com uma figura felina de longa cauda - provavelmente um PUMA. Essa obra parece sugerir que, como em outras civilizações andinas, os pumas e jaguares eram honrados e cuidados como animais de estimação e para propósitos rituais.

Baseado no texto de Nicholas J. Saunders

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

UAIKI - o amigo da vida


O poder humano de criar a chamada “civilização” equivale, hoje, ao seu poder de violação da natureza. Numa civilização que chegará, na metade desse século, a 9 bilhões de pessoas, não é mais possível pensar a “casa” humana só no espaço circunstancial da cidade. O impacto da existência e a medida do poder desses seres se alastram e, talvez nós tenhamos que rever a nossa relação com o planeta, recalcular a força de nossa interferência e o efeito do nosso comportamento. Enfim: REPENSAR O ETHOS!

A palavra grega ETHOS está ligada à vida na POLIS (cidade), lugar das tradições, valores, místicas e religiosidade. Ethos liga-se à morada humana, e a sua compreensão mais profunda remete à condição do homem como co-habitante de um mesmo lugar, onde partilha a vida com outros seres humanos e, numa versão mais atual, com os outros seres vivos. Portanto, quem quiser entender a condição humana deve sempre se perguntar sobre o ETHOS que a origina e que a circunda.

Pensemos a morada, não necessariamente como a casa de paredes, o edifício, a vivenda, mas o ETHOS, que e a tradução dos princípios fundamentais que regem a organização da vida dentro dela. A casa compreende todas as relações que os habitantes desse lugar estabelecem, seja consigo mesmos, com os outros humanos, com os outros seres vivos, com o mundo que os cerca e até com os Deuses que cultuam. Assim, cada casa tem uma forma própria de viver o ethos, como construção histórica de um destino próprio que dá o seu caráter, o modo como cada um vê o mundo, os valores que possui, ou ainda as normas que cria a partir dessa forma de organizar a vida.

Ethos é o jeito como nós vemos a casa a partir de dentro – o lugar existencial, o nosso modo de ser e de exercer a nossa humanidade, a nossa essência enquanto seres humanos. A isso denominamos ÉTICA.

O ethos, além de ser a casa vista de seu interior, é também o modo como os moradores nela se comportam. Ele emerge do ambiente cultural de determinado grupo em certo período da história. E a isso que Heráclito, no século V a.C., chamou de ETHOS ANTHROPO DAIMON – que, numa tradução mais solta, significa: “A habitação do homem está nos deuses!”.



Daimon denota, aqui, simplesmente o destino pessoal do homem, o qual é determinado pelo seu próprio caráter e não por poderes externos que atuam sobre os indivíduos. Heidegger afirma que o enigma da frase heraclítica afirma que o que faz o ser humano ser o que ele é são os Deuses que ele escolhe para morar embaixo do mesmo teto, para co-habitar. Dessa forma, Daimon é a voz interior do ser humano, proveniente de um poder superior. Concluímos, então, que a frase de Heráclito nada mais é do que uma contravenção ao sentido da ética oferecido pelos filósofos sistemáticos, os quais, numa tradição contrária, tentaram negar o Daimon (a voz interior, o lado dos quereres, dos instintos, da vontade, do amor, das pulsões...) como algo perigoso demais, com o intuito de afirmar uma voz exterior baseada na racionalidade, tida como força constituinte capaz de anular e/ou controlar o Daimon.

Mas perante a atual crise ecológica provocada pelo processo de “civilização”, parece ser preciso resgatar o Daimon e reintegrá-lo ao sentido da ética. É preciso reinterpretar a ética a partir de uma visão integradora do ser, como o lugar donde deriva todo o mundo simbólico, mítico, religioso e sacramental da própria vida, entendida não como uma linha divisória, mas como uma instância aproximadora dos seres, círculos celebrativos da existência cósmica. Esse tipo de ética está na raiz da condição humana e precede qualquer elaboração racional de regulamentos, padrões ou normas morais.

Essa compreensão de ética parte da fé no ser humano. Faz acreditar que a essência humana se traduz em noções como cuidado, amor, procura, pertença, integração, interconectividade, afeto, ternura... Esses são os valores hoje evocados diante da maior crise que a humanidade talvez tenha vivido: a crise de sua própria essência, a crise de sua própria existência! As notícias de catástrofes e flagelos, calamidades e desgraças, ainda que explicadas como “naturais”, evocam a responsabilidade do ser humano na sua produção. São resultado da ação destrutiva desse ser que negou a essência de cuidado e apostou na racionalidade enquanto tentativa de domínio tecnocientífico do mundo. Torna-se urgente resgatar o Daimon porque é ele que nos possibilitará ouvir a voz de Pachamama, a Terra viva. Resgatar o Daimon nosso e o da própria Terra é uma forma de ressacralizar a natureza e re-humanizar o homem, antes que seja tarde demais.

Essa nova ética aponta para mudanças nas normas de comportamento, uma vez que os padrões atuais estão levando a morada à bancarrota. É preciso que nos sintamos de novo uma “parte”, protegendo e restaurando, dando chance para que a casa se regenere em vista da garantia dos direitos humanos, dos direitos da Terra e do bem-estar de toda a comunidade viva.

Não nos serve mais uma ética antropocêntrica. A ética passa, sobretudo, pela reverência a todas as formas de vida e pela compreensão do ser humano como partícipe dessa aventura. Ela exige a consideração sobre os interesses da natureza no jogo da vida, não apenas os interesses propriamente humanos. Isso significa procurar n ao só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas. Revestir, enfim, de dignidade aquilo que a tecnociência despiu de sacralidade. Aprender que o bem do ser humano se encontra dependente do bem dos outros seres e da natureza como um todo.

O desafio é repensar o lugar do ser humano no seio da vida, e não transformá-lo num indesejado alienígena dentro da natureza. A vida humana continua sendo o critério ético fundamental, mas é preciso reconhecer que ela não existe isoladamente, e mais: que ela se inter-relaciona com todas as outras formas de vida no planeta. O ambiente só faz sentido a partir dos agentes que nele vivem e nele se integram, todos aconchegados no ventre silencioso de Pachamama, cuidados e abraçados.

Baseado no texto de Jelson Oliveira e Wilton Borges