Na tradição ocidental tem predominado a idéia de que no “interior” do corpo e por debaixo das diferenças sociais, há uma subjetividade que permite a auto-percepção da individualidade. E sobre a elaboração dessa noção vêm elaborando as teorias de valor da pessoa humana e os diversos humanismos, cristãos ou laicos, característicos da tradição filosófica e ética ocidentais. O descobrimento da América provocou um estímulo intelectual importante na reconsideração do humano – como demonstra os estudos de A. Pagden e outros.
Como assinala Viveiros de Castro, quando os espanhóis chegaram às Antilhas pela primeira vez, em 1492, se preocuparam em saber se os índios teriam uma alma racional, mas não duvidaram de que tinham corpo. Os índios, por seu lado, não se questionaram que os europeus tinham algo parecido com a alma (porque até os animais têm), mas duvidaram que aquelas formas corporais tão estranhas fossem verdadeiros corpos humanos.
Como assinala Viveiros de Castro, quando os espanhóis chegaram às Antilhas pela primeira vez, em 1492, se preocuparam em saber se os índios teriam uma alma racional, mas não duvidaram de que tinham corpo. Os índios, por seu lado, não se questionaram que os europeus tinham algo parecido com a alma (porque até os animais têm), mas duvidaram que aquelas formas corporais tão estranhas fossem verdadeiros corpos humanos.
Viveiros continua com a constatação de que o status do humano no pensamento ocidental é essencialmente ambíguo: em parte, o ser humano é uma espécie animal entre outras, e o reino animal é um domínio que inclui os humanos; por outro lado, a humanidade é uma condição moral que exclui os animais. Estes dois status coexistem na noção dijuntiva de “natureza humana”. Em outras palavras: a cosmologia ocidental postula uma continuidade física e uma descontinuidade metafísica entre humanos e animais. Já os ameríndios postulam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmo. Todos os seres têm cultura e, ainda que tenham diferenças entre si, essas “culturas naturais” possuem uma base comum que permite a comunicação entre elas e a comparação. Seu multiculturalismo é, então, mais radical e global; é um “multiculturalismo” que se manifesta no exercício continuado do perspectivismo – uma maneira indígena e pré-moderna de ser realista.
Perspcetivismo é uma teoria indígena segundo a qual o modo como os seres humanos percebem os animais e as outras subjetividades que habitam o mundo – deuses, espíritos, mortos, fenômenos meteorológicos, plantas, animais e até artefatos – difere profundamente da maneira como esses seres percebem os humanos e se vêem a sim mesmos. Tomemos, a título de exemplo, o estudo etnográfico de Tânia Tolze-Lima sobre um pequeno povo de língua tupi – os JURUNA – que vivem no Alto Xingu.
Quando os Juruna estão com desejo de comer carne de porco-do-mato, pedem ao xamã que aja para atrair os porcos. Segundo eles, os porcos vivem em comunidades divididas em famílias e organizadas em torno de um chefe com poderes xamânicos. O porco-xamã se diferencia dos demais por não ter pelos no traseiro e ter pelos muito duros na cara. O xamã dos Juruna convida desse porco para encontrarem-se em sonho; quando o porco-xamã se transforma em humano, o xamã-humanno busca sua amizade lhe oferecendo um cigarro. Quando sente que a amizade está consolidada, o xamã lhe diz que os humanos de sua alteia pretendem fazer uma caçada e o porco-xamã combina com o humano-xamã o lugar e o dia em que vão cruzar o rio. No dia marcado, os caçadores Juruna se dirigem para o lugar acertado entre os dois xamãs – o humano e o animal.
Os porcos se vêem a si mesmos como parte da humanidade e consideram a caça como um confronto, como uma guerra local, onde cada grupo tem que capturar inimigos. No plano da realidade humana, os porcos atacam e matam algum caçador, mas isso, para os porcos, é considerado uma captura, pois o homem morto se transforma em membro de seu grupo suíno.
Uns e outros - humanos e porcos – têm uma perspectiva diferente sobre suas respectivas peculiaridades culturais. Durante as noites de Lua Nova, é quando os porcos (e todos os animais da floresta) educam suas crias. Os Juruna, por seu turno, educam seus filhos durante a Lua Crescente, para evitar que seus rituais sejam simultâneos aos dos animais. A força física (para vencer na caça e na guerra) é o objetivo principal desses exercícios, mas também se preocupam com o desenvolvimento de certas aptidões, como a expressividade verbal e a inteligência. Mas o processo educativo já começa muito antes, durante o desenvolvimento embrionário, e refere-se à implantação e desenvolvimento do instinto social (no sentido de inclinação à comunicação com os outros). A proibição ritual do consumo de carne pelas mulheres grávidas, procura impedir que seja transmitida ao feto, pela alimentação, uma conduta típica dos animais, a saber: agressividade e medo.
O temperamento social que os Juruna procuram imprimir em seus filhos significa, antes de tudo, AUSÊNCIA DE AGRESSIVIDADE E DE MEDO. Ser sociável é não estar amedrontado e não ser violento.
Para os Juruna, como para muitos outros povos ameríndios, a dicotomia natureza-cultura foi construída – e é constantemente reforçada – através de inumeráveis signos diacríticos, porque não há nada substancial que as separe e diferencie. Os seres humanos não são suficientemente distintos do restante dos seres do mundo para poder estabelecer, sobre diferenças, uma singularidade moral ou um sistema de valores autônomo que sustente ou dê razão a algum tipo de humanismo. Não há a menor possibilidade de humanismos quando os porcos são tão pessoas quanto os seres humanos.
Baseado em um artigo de Manuel Gutiérrez Estévez
Oi amigo. Passando acompanhar esse espaço que tanto amo.
ResponderExcluirBeijão.