O termo FRONTEIRA, segundo Tassinari, evoca
várias noções do senso comum, como a de "fronteiras
da civilização", as "terras
de ninguém" habitadas apenas por "selvagens",
prontas para serem "desbravadas"
e colonizadas. Na verdade quando falamos em fronteira, lembramo-nos do processo
de formação da própria identidade nacional dos países colonizados. Essa imagem
radicaliza a diferença entre os colonizadores e os povos indígenas, cada qual
habitante de um espaço diferenciado, e também evidencia uma situação de conquista
e opressão dos primeiros sobre os segundos, a partir de uma guerra pelo
território. De alguma forma, é essa a imagem que está presente em noções
antropológicas como a de "frentes de expansão",
utilizada pela antropologia brasileira nas décadas de 50 e 60: o avanço de
segmentos da sociedade nacional, com claros propósitos econômicos
desenvolvimentistas, sobre áreas antes habitadas somente por índios.
Tendo em
vista esta multiplicidade de sentidos, inicialmente é importante retomar o
conceito de fronteira, que abrange mais do que sua especificidade colocada
historicamente pela área da geografia, como sendo aquela que demarca o
território de um estado ou nação. Segundo esta acepção, fronteira teria um
entendimento como algo que delimita, demarca e especifica território, separando
e dividindo: de um lado um território, diferente do que ficou do outro lado da
fronteira. Podemos chamar esta concepção de noção física ou geográfica de
fronteira.
Nas
ciências sociais usualmente trabalhamos com um conceito mais elástico de
fronteira, o qual pode ser entendido de forma mais abrangente, como sendo
situações de fronteira, ou ainda, situações limite, o que nos reporta para
aspectos sociais, econômicos, culturais e sendo assim, também podem ser
aspectos imaginados e representados culturalmente.
Ao tratar
dos povos indígenas em situação de fronteira, vamos tomar o primeiro sentido
como ponto de partida, mas, iremos também, privilegiar as noções relacionadas à
segunda conceituação de fronteira. Neste sentido, podemos dizer que as
fronteiras são construções históricas e culturais. São processos social e
historicamente – vale dizer, simbolicamente – produzidos. Devem ser concebidas
mais como abertura e atualidade, do que como dado ou acabamento. Locais de
mutação e subversão, regidos por princípios de relatividade, multiplicidade,
reciprocidade e reversibilidade. Quando trata, por exemplo, das fronteiras
étnicas e culturais, Fredrik Barth afirma que essas “fronteiras podem persistir apesar do que figurativamente pode ser
chamada de 'osmose' de pessoal através dela”, ou seja, mesmo havendo
trânsito de pessoas pelas diferentes fronteiras identitárias, elas mantém suas
identidades.
Em outras
palavras, podemos dizer que se as fronteiras são construções históricas e
culturais, ou seja, são impostas, muitos destes povos indígenas viviam nestes
territórios sem conhecer estes limites colocados pelos estados nacionais
modernos. Assim, muito antes do Tratado de Madri, de 1750, entre Portugal e
Espanha, o qual define parte da atual fronteira do Brasil com os demais países
da América do Sul, muitos povos indígenas viviam nesta região, independente da
pactuação destas fronteiras. Não é por acaso, que na atualidade, muitos
indígenas transitam de um lado para o outro da fronteira continuando com seus
costumes ancestrais de perambulação.
Os povos
indígenas foram repartidos arbitrariamente entre os Estados-nação que se
partilharam a região após os tratados sucessivos de delimitação territorial e
os processos de independência. Até recentemente, essas populações eram objetos
de políticas indigenistas, que, apesar de suas diferenças nacionais, tinham um
comum objetivo: a assimilação progressiva dos índios às novas nações em
construção. Apenas nas últimas duas décadas, essa situação parece ter mudado,
pelo menos do ponto de vista legal, com a adoção em vários países, inclusive no
Brasil, de Constituições nacionais que rompem com as ideologias
assimilacionista e procuram reconhecer a pluralidade étnica de sua população
(PIMENTA, 2009).
Não se
discute, na historiografia brasileira, a importância fundamental dos povos indígenas
na consolidação das nossas fronteiras. Na disputa entre portugueses e
espanhóis, boa parte do território do estado de Mato Grosso, por exemplo, foi
incorporada graças à aliança com os Kadiwéu. Ainda reportando-nos apenas à
nossa região, em fins do século XIX, sabemos da importância dos indígenas
Terena e Kadiwéu junto ao exército brasileiro na Guerra da Tríplice Aliança,
conhecida como Guerra do Paraguai.
Segundo
Pimenta (2009), o papel dos povos indígenas como guardiães das fronteiras
também foi estimulado pela República. Cabe lembrar que a política indigenista
brasileira republicana foi criada por um militar – Marechal Cândido da Silva
Rondon –, que fundou o SPI – Serviço de
Proteção ao Índio em 1910, o primeiro aparelho de Estado instituído para
definir e gerir a questão indígena. Esse órgão indigenista continuou atuando
para a construção dos limites políticos e simbólicos da nação, exercendo um
papel geopolítico fundamental. Demarcando e ocupando territórios, o SPI
fortaleceu o processo de construção da geografia nacional, imprimindo as marcas
do Estado nos sertões.
Ao mesmo
tempo em que garantia oficialmente parcelas do território nacional aos povos
indígenas, estes eram vistos como vivendo à margem da civilização e deviam ser
incorporados, pela educação e o trabalho, à comunhão nacional. Essa
incorporação era feita in loco,
mantendo os índios nas regiões onde se encontravam para povoar os sertões e
guardar as fronteiras. Desse modo, nacionalizar, através da tentativa da
integração dos índios era fortalecer as fronteiras e assegurar o controle sobre
os territórios mais isolados da Nação. A ênfase na nacionalização dos índios ou
“silvícolas”, como eram chamados, passava pela incorporação dessas populações
como “guardas de fronteiras”. Essa idéia foi claramente exposta na década de 1930,
quando o SPI passou a incorporar o Ministério da Guerra, integrando a
Inspetoria Especial de Fronteiras, da qual Cândido Rondon fora chefe até 1930,
na órbita do Estado-maior do Exército (Lima: 1992). Um novo regulamento,
instituído pelo decreto n° 736, de 6 de abril de 1936, marcava explicitamente
essa preocupação com a nacionalização dos “silvícolas”, com o objetivo de integrá-los
à Nação como “guarda de fronteiras”. O SPI devia trabalhar para que os índios
dessas áreas não cedessem à atração das nações limítrofes, desenvolvendo neles
uma pedagogia de civismo capaz de fomentar seus sentimentos de nacionalidade.
Nas fronteiras, os postos indígenas procuravam atrair e fixar em território
brasileiro os índios localizados próximos aos limites internacionais do país
(PIMENTA, 2009).
Dessa
maneira, após este rápido panorama histórico, podemos perceber que os povos
indígenas, mesmo sendo considerados de maneira etnocêntrica como selvagens ou
inferiores foram atores importantes no processo de conquista, delimitação e
conservação das nossas fronteiras. Atualmente os povos indígenas que vivem na
faixa de fronteira com outros países, continuam garantindo a soberania
brasileira.
Dentro do
amplo mosaico que é a realidade dos povos indígenas no Brasil, estimado em 227
povos falantes de 180 línguas, Mato Grosso do Sul apresenta-se como região de
uma grande diversidade demográfica caracterizando múltiplos aspectos culturais.
Além de possuir a segunda maior população indígena do país, com aproximadamente
70 mil índios, sendo ao redor de trinta mil crianças na faixa etária de 0 a 14
anos, esta região está encravada no coração da América do Sul, recebendo fortes
influências culturais de outras regiões brasileiras e dos dois países
fronteiriços: Paraguai e Bolívia.
Destaca-se
neste horizonte multicultural: os Guarani-Kaiowá
e Guarani-Ñandeva (habitantes da
região sul do Mato Grosso do Sul), os Terena
(subgrupo Guaná e vivem na região centro-oeste do Estado), os Kadiwéu (localizados no extremo oeste,
na maior área indígena fora da Amazônia Legal, suas terras estendem entre os
municípios de Bodoquena e Porto Murtinho), os Guató (antigos povos pescadores das margens do rio Paraguai, vivem
no extremo norte do Mato Grosso do Sul, fronteira Brasil/Bolívia), os Ofaie (localizados na região sudeste do
Estado) e os Kinikinau (subgrupo
Guaná e que vivem atualmente na Reserva Indígena Kadiwéu). Nesse cenário
indígena estão presentes ainda, os Kamba
(sediados em Corumbá, na fronteira com a Bolívia) e os Atikum, grupo étnico oriundo de Pernambuco.
Cada
sociedade indígena possui suas características culturais próprias, histórias de
contato, resistências, negociações e alianças, constituindo grupos com
populações que variam de 50 a 30.000 pessoas. Neste contexto, os Guarani
(Kaiowá e Ñandeva) e os Terena possuem o maior contingente populacional, sendo
cerca de 65 mil pessoas.
Para
falar sobre a temática dos indígenas e a situação de fronteira, vamos tomar o
exemplo do povo Guarani, atualmente presente em vários estados das regiões sul,
sudeste e centro oeste do Brasil, também encontra-se em outros três países:
Argentina, Paraguai e Bolívia. Com mais de 50 mil pessoas é a etnia mais
numerosa no Brasil, cujo maior contingente vive no estado de Mato Grosso do
Sul.
Os
estudos antropológicos distinguem, no Brasil, três grupos guarani: Kaiowá,
Ñandeva e Mbya. Em Mato Grosso do Sul, grande parte dos Guarani é do grupo
Kaiowá e o que denominamos Guarani é, na verdade, o grupo Ñandeva, o menor em
termos numéricos no estado.
O povo
Guarani vive nesta região de fronteira entre estes quatro países muito antes da
chegada dos europeus no século XVI. No mesmo período da fundação de Assunção –
capital do Paraguai – teve início as reduções jesuíticas no coração da nação
guarani, em meados do século XVI, as quais abrangiam, também, o atual
território de Mato Grosso do Sul, oeste do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
do Sul. A redução mais importante em nosso território foi o ITATIM, dizimado e abandonado pelos
jesuítas e indígenas após o assédio dos bandeirantes, em meados do século XVII.
Habitando
a região sul do Mato Grosso do Sul, os Kaiowá distribuem suas aldeias por uma
área que se estende até os rios Apa, Dourados e Ivinhema, ao norte, indo, rumo
sul, até a serra de Maracaju e os afluentes do rio Jejui, no Paraguai,
alcançando aproximadamente 100 km em sua extensão Leste-Oeste, indo também a
cerca de 100 km de ambos os lados da cordilheira do Amambaí (que compõe a linha
fronteiriça Paraguai-Brasil), inclusive todos os afluentes dos rios Apa,
Dourados, Ivinhema, Amambai e a margem esquerda do Rio Iguatemi, que limita o
sul do território Kaiowá e o norte do território Ñandeva, além dos rios
Aquidabán (Mberyvo), Ypane, Arroyo, Guasu, Aguaray e Itanarã do lado Paraguaio,
alcançando perto de 40 mil km2 (ISA, 2012).
O
território Kaiowá e Ñandeva atual toma parte dos estados de Mato Grosso do Sul
e Paraná, estendendo-se também ao Paraguai oriental. Migrações ñandeva do
início do século XX oriundas do Paraguai cristalizaram assentamentos no estado
de São Paulo, interior e litoral, assim como em Santa Catarina, no interior do
Paraná e do Rio Grande do Sul. O território atual dos Ñandeva compreende os
rios Jejui Guasu, Corrientes e Acaray, no Paraguai, e, no Brasil, o Rio
Iguatemi e seus afluentes, sendo encontrados também nas proximidades da junção
deste com o Paraná (ISA, 2012).
Após a
Guerra da Tríplice Aliança, também conhecida como Guerra do Paraguai,
iniciou-se no sul do então estado de Mato Grosso a exploração da erva mate
nativa, abundante na região, pela Companhia Mate Larangeira e utilizando boa
parte de mão de obra dos índios Kaiowá e Guarani.
As
histórias destes povos indígenas apresentam características idênticas: vivem confinadas
em áreas de pequenas extensões de terras, insuficientes para a sobrevivência, o
que caracteriza um descaso à sua reprodução física e a manutenção do modelo
cultural. Esta situação da maioria destes grupos estarem em situação de modelo
cultural. Esta situação da maioria destes grupos estarem em situação de
confinamento (transferência sistemática e forçada da população indígena das
diversas aldeias Kaiowá e Guarani para dentro das oito reservas demarcadas pelo
Governo Federal – SPI – entre 1915 e 1928, conforme Brand, 1993), em pequenas
porções de terra (reservas) acaba gerando complexos problemas na atualidade:
migração para as periferias das cidades, explosiva densidade demográfica,
acirramento das disputas territoriais, aumento das práticas de violência,
assalariamento compulsório dos homens com sua consequente ausência da família,
assim como o aumento da dependência de investimentos oriundos do governo. Para
os professores Brand e Nascimento (2006):
As
populações indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul são marcadas por um
processo histórico de contato interétnico agressivo e violento, no bojo do qual
foram constantemente desafiados a moldar e remoldar sua organização social,
construir e reconstruir sua forma de vida e desenvolveram complexas estratégias,
alternando momentos de confrontos diretos, permeado por enorme gama de
violência, com negociações, trocas e alianças.
Dessa
forma, podemos dizer que o Brasil foi alargando e avançando suas fronteiras em
direção a oeste, algumas vezes com a ajuda de alguns grupos indígenas, mas,
quase sempre, à revelia destes e, utilizando de muita violência, física
(extermínios e expropriação de seu território) e simbólica (discriminação,
preconceitos de várias formas, como chama-los de bugres e preguiçosos).
Historicamente, segundo Brand e Nascimento (2006), "As primeiras frentes não-indígenas adentraram pelo território Kaiowá e Ñandeva, a partir da década de 1880, após a guerra do Paraguai, quando se instala na região a Companhia Matte Larangeira. Esta Companhia, embora não questionasse a posse da terra ocupada pelos índios, nem fixasse colonos e desalojasse comunidades, definitivamente, das suas terras, foi, contudo, responsável pelo deslocamento de inúmeras famílias e núcleos populacionais, tendo em vista a colheita da erva mate".
Historicamente, segundo Brand e Nascimento (2006), "As primeiras frentes não-indígenas adentraram pelo território Kaiowá e Ñandeva, a partir da década de 1880, após a guerra do Paraguai, quando se instala na região a Companhia Matte Larangeira. Esta Companhia, embora não questionasse a posse da terra ocupada pelos índios, nem fixasse colonos e desalojasse comunidades, definitivamente, das suas terras, foi, contudo, responsável pelo deslocamento de inúmeras famílias e núcleos populacionais, tendo em vista a colheita da erva mate".
A Cia
Matte Larangeira instala-se em todo o território ocupado pelos Kaiowá e Ñandeva,
em Mato Grosso do Sul, após a Guerra do Paraguai, tendo em vista a exploração
dos ervais nativos, abundantes em toda a região. Antes disso, em 1767, o
Governo Português instalara, às margens do Rio Iguatemi, em pleno território Kaiowá,
o Forte Iguatemi – Povoação e Praça de Armas Nossa Senhora dos Prazeres e São
Francisco de Paula do Iguatemi –, de curta duração (Brand, 1997).
Com a
decadência da economia ervateira a partir de 1930, tem inicio uma nova política
de desenvolvimento batizada de “Marcha
para o Oeste”. Essa política criada no governo de Vargas foi responsável
pela formação da Colônia Agrícola Nacional de Dourado – CAND. “A implantação da Colônia em áreas de
aldeias Kaiowá marcou o início de uma longa e difícil luta dos índios pela
manutenção e recuperação de suas terras” (Brand, 1997, p. 78). Os indígenas
geralmente negavam-se a deixar suas terras e os novos donos buscavam, constantemente,
obter a expulsão dos índios, através de ações na justiça, ou através de meios
mais escusos.
Mesmo
contrariamente à historiografia oficial, podemos afirmar que os indígenas
também contribuíram para a colonização desta região do país, desde a ajuda na
implantação das redes de telégrafo, na construção da Ferrovia Noroeste do
Brasil, como mão de obra na Companhia Mate Laranjeira, na abertura de fazendas
com a derrubada de matas e plantação pastos para a pecuária e mais
recentemente, como mão de obra nas usinas de etanol e açúcar.
Texto de Antonio
H. Aguilera Urquiza
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