domingo, 17 de agosto de 2014

OS YÃMIYXOP – ESPÍRITOS SÁBIOS DO POVO MAXAKALI


No primeiro capítulo do livro "Par-delà nature et culture", Philippe Descola faz um pequeno inventário das concepções sobre o que nós Ocidentais designamos pelo termo "Natureza", englobando vários povos do mundo. Seu ponto de partida foi o contexto etnográfico que lhe é mais familiar, os Achuar do Equador, entre os quais não há uma disjunção absoluta entre Natureza e Cultura, uma vez que para este povo: Longe se reduzir a lugares prosaicos provedores de sustento, a floresta e as roças cultivadas constituem os teatros de uma sociabilidade sutil onde, dia após dia, se vai adular [amadouer] seres que somente a diversidade de aparências e a falta de linguagem distinguem verdadeiramente dos humanos (Descola, 2005).

Com base nesse preceito, os Achuar criaram uma forma de relacionamento estável com esses seres, estabelecendo mecanismos de comunicação não verbal com entes cuja interioridade seria supostamente idêntica àquela presente na humanidade, mediante o uso de encantamentos mágicos (anent) e através dos sonhos (Descola, 2005). Longe de se constituir num caso etnográfico isolado, essa concepção encontraria eco em numerosas sociedades autóctones da América do Sul, para as quais "as características atribuídas às entidades que povoam o cosmos depende menos duma definição prévia de sua essência que de posições relativas que elas ocupam umas em relação às outras em função das exigências de seu metabolismo, e, notadamente, de seu regime alimentar. A identidade dos humanos, vivos e mortos, das plantas, dos animais e dos espíritos é inteiramente relacional e, portanto, sujeita a mutações e metamorfoses segundo os pontos de vista adotados" (Descola, 2005).

Essa concepção sobre as cosmologias dos povos autóctones da América do Sul, chamada de animista por Descola a partir do diálogo com a noção de perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro (2002), resultaria em uma inversão formal dos termos presentes na noção ocidental sobre a Natureza e a Cultura. Nesta última haveria uma diversidade subjetiva e/ou cultural entre os seres do mundo, a qual seria repartida sobre um fundo natural comum; já para os povos tributários deste tipo de cosmologia, os atributos comuns aos seres seria uma subjetividade de tipo humano e as disjunções ocorreriam nos atributos naturais das espécies. Tal postulado serviria de base para o estabelecimento de relações entre os humanos e os demais seres que habitam o cosmos, nas quais estes dois tipos de sujeitos não estariam opostos, mas comporiam graus variados de relações sociais similares àquelas vigentes entre os humanos.

Um exemplo disso é a análise de Descola sobre os motivos da não domesticação do pecari pelos povos autóctones da Amazônia. Para este autor, as relações estabelecidas entre os humanos e os não humanos teriam como modelo aquelas vigorantes na humanidade. Sendo assim, embora disponham de todas as técnicas e conhecimentos necessários para domesticar o pecari, essas populações não teriam algo próximo da domesticação - isto é, da instrumentação utilitária de outrem - em seu estoque de relações sociais. Com isso, as modalidades autorizadas de relação estabelecida com esses animais seriam: a caça, baseada no modelo vigente nas interações existentes entre parentes afins e inimigos - isto é, a predação -, e a adoção dos filhotes caçados, cujo parâmetro é fornecido pelas relações existentes entre os parentes consanguíneos (Descola, 2002).

Após inventariar as imagens sobre a "Natureza" de povos situados em outras regiões do planeta (Norte da América, Sibéria, Indonésia, índia, Japão, África, etc.), Descola afirma que as posições assumidas não são tão dessemelhantes às dos Achuar e demais povos autóctones da América, por não apresentarem uma separação absoluta entre Natureza e Cultura concebida pelo naturalismo Ocidental (Descola, 2005). Com isto, tal quadro permitira "a tomada de consciência que a maneira pela qual o Ocidente moderno representa a natureza é a coisa do mundo menos compartilhada [pelos povos do mundo]. Em numerosas regiões do planeta, humanos e não humanos não são concebidos como se desenvolvendo em mundos incomunicáveis e segundo princípios separados; o meio ambiente não é objetivado como uma esfera autônoma; as plantas e os animais, os rios e os rochedos, os meteoros e as estações não existem em um mesmo nicho ontológico, definido pela sua falta [défaut] de humanidade. E isto parece verdadeiro quaisquer que sejam as características ecológicas locais, os regimes políticos e os sistemas econômicos, os recursos acessíveis e as técnicas utilizadas por lhes explorar" (Descola, 2005).

O caso dos MAXAKALI não escapa ao quadro geral esboçado por Descola. Trata-se de um povo engolfado pelas frentes de expansão colonial na segunda metade do século XVIII, início do século XIX. Atualmente eles vivem confinados em uma Terra Indígena e duas Reservas Indígenas, cuja área somada tem somente 6020 hectares, situadas no nordeste do Estado de Minas Gerais, próximo da fronteira com a Bahia. Este povo fala uma língua classificada junto ao tronco linguístico Macro Jê e o termo mais próximo de uma autodenominação é TIKMU'UN, uma espécie de pronome pessoal da primeira pessoa flexionado no plural, utilizado para fazer referência às pessoas que vivem ou estão juntas.

Tal qual a demonstração de Descola sobre a maior parte dos povos do mundo, os Tikmu’un não postulam uma disjunção entre os atributos humanos e aqueles dos demais entes que povoam o mundo. Tal aspecto fica evidente quando se analisa os YÃMIYXOP, termo composto do radical "yãmiy", o qual pode ser traduzido como "espírito" e do sufixo "xop", usado para formar coletivo. Assim, a tradução literal desta expressão é "grupo de espíritos", mas este termo é aplicado: a) na designação dos espíritos dos ancestrais humanos, dos animais e dos vegetais, e mesmo de alguns entes e dispositivos provenientes do mundo colonial, como o avião, helicóptero e a cachaça, entre outros; b) para fazer referência aos conjuntos desses espíritos, pois o pensamento Tikmu’un os reúnem em grupos; c) para mencionar as performances rituais e os cantos associados a estes entes.


Um dos aspectos mais notáveis da cosmologia Tikmu’un é o fato de este povo viver em uma região cujo meio ambiente foi devastado pela ação do colonizador, onde a floresta originária foi posta abaixo ainda no início do século XX, como indica a passagem que Nimuendaju (1982) fez à região em 1938-9. Nas palavras do autor: "Os Machacarí (sic.) consideram como terras desde tempos antigos habitavam na região das cabeceiras do Rio Itanhaém pela margem esquerda, e igualmente a situada em ambas as margens da Água Boa que despeja no Ribeirão do Norte, afluente também do Itanhaém, que corre paralelo ao Umburanas e a oeste dele [...] A terra apesar de ligeiramente acidentada, era ótima para a lavoura. Os Ribeirões Água Boa, Pradinho e Umburanas conduzem excelente água e nunca secam. Hoje, porém, já dois terços desse paraíso dos índios lavradores e caçadores, que estava coberto de mata ininterrupta, estão transformados em vastas pastagens de capim-colônia, na sua maior parte sem uma única rez, pelos intrusos..." (Nimuendaju, 1958).

A despeito deste fato, os Tikmu’un atuais mantém um profundo saber sobre os seres da Mata Atlântica, atualizado nos cantos e ritos realizados por ocasião dos yãmiyxop. Os cantos fazem referências a situações do cotidiano, a hábitos dos seres que povoam o mundo, a mitos que explicam a constituição atual do cosmos, como indicarei mais detalhadamente à frente.

Curiosamente, este complexo sistema de conhecimento havia sido pouco estudado até recentemente. A primeira monografia a esse respeito foi escrita por Harold Popovich (1976), um missionário do Summer Institute of Linguistics (SIL) que dominava a língua Maxakali. Em seu "Maxakali supernaturalism" o autor identifica nos yãmiyxop uma espécie de classificação totêmica das espécies e seres da floresta, sem se aprofundar nas circunstâncias narradas nos yãmiyxop. Em 1992, Myriam Martins Álvares publica sua dissertação de mestrado, na qual ela identifica nos yãmiyxop a existência de um mecanismo estrutural de controle do fluxo destes entes. Segundo esta autora, os Tikmu’un seriam o "povo do canto", dada a importância que esta prática tem para sua existência. Todavia, este trabalho não aprofunda o teor presente nas mensagens dos mesmos, identificando somente como esse circuito de yãmiy formaria a noção de pessoa própria a eles.

Foi somente na década de 2000 que se pôde obter um maior detalhamento dos conteúdos presentes nos yãmiyxop, em especial por conta do projeto coordenado pela professora de musicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Dra. Rosângela Pereira de Tugny. Esta pesquisadora trabalhou na formação de um acervo sobre os cantos sagrados deste povo, transcrevendo-os na língua escrita Maxakali e os vertendo em seguida para o português, mediante a ativa colaboração de professores bilíngues e de especialistas Tikmu’un nos yãmiyxop. Ao longo do processo, os Tikmu’un produziram uma copiosa iconografia a respeito dos seres presentes nos yãmiyxop, retratando entes e situações enunciados nos cantos. Após estes trabalhos uma nova compreensão sobre a cosmologia deste povo emergiu, resultando, até o momento, na produção de duas dissertações de mestrado (Alvarenga, 2007 e Campelo, 2009), além da publicação no ano passado de duas versões bilíngues de dois destes complexos rituais, uma dedicada ao Xunin (espírito do morcego) e outra ao Mõgmõgka (espírito do gavião). Neste texto pretendo discutir como o que chamamos de "Natureza" aparece no que se sabe acerca deste complexo cosmológico, tentando indicar como este sistema se afigura como um modo de recomposição da história colonial a que esse povo está submetido.

Os Tikmu’un reúnem os yãmiyxop em 10 grandes grupos, cada qual formado por uma miríade de seres que narram suas histórias através dos cantos. Os nomes de tais grupos são retirados do ente reputado de ser o mais "forte" de cada uma deles, sendo que seis deles são encabeçados por espíritos animais: Putuxox (espírito do papagaio), Mõgmõka (espírito do gavião), Xunin (espírito do morcego), Ãmãxux (espírito da anta), Tatakox (espírito de uma lagarta que vive na taquara), Po'op (espírito do macaco); os outros quatro são ligados a outros tipos de seres: Koatkuphi (o fio não comestível da mandioca), Yãmiy (espíritos ancestrais humanos masculinos), Yãmiyhex (espíritos ancestrais humanos femininos) e Kõmãyxop (ritual ligado à amizade formal, ou seja, às pessoas que se tratam reciprocamente pelo termo komãy). Há ainda o Hemex (um ser que não possuí corpo animal), que pode ser feito junto ao ciclo ritual de Xunin e Yãmiy, produzindo a vinda yãmiyhex e imhup, quando se pretende "encurtar um ciclo ritualístico" (Pereira de Tugny, 2009).

Os Tikmu’un atribuem uma personalidade específica a cada um dos yãmiyxop, sendo que os grandes grupos mencionados acima são formados por entes específicos e desiguais, a um só tempo. Eles seriam específicos, pois a letra das músicas e a composição destes grupos de cantos seriam invariantes, tendo sido dada de uma só vez para os humanos pelos yãmiyxop no início dos tempos. Para me explicar este aspecto, os Tikmu'un sempre comparam seus cantos com a música comercial de nossa sociedade, a qual muda toda hora, ao passo que os cantos dos yãmiyxop seriam diferentes, pois estes não mudariam nunca.

Mas estes conjuntos de espíritos são desiguais em mais de um aspecto. Primeiro, porque não há obrigatoriedade de haver um mesmo número de entes no interior de cada grupo, existindo, ao contrário, uma variação grande na quantidade e na qualidade de cantos/entes no interior de cada yãmiyxop - uns têm pouco mais de 80 cantos/entes, enquanto outros têm mais de 200. Além disso, cada um desses seres está associado a um aspecto da existência, de modo que a ação dos yãmiyxop ocasiona efeitos distintos e específicos. Assim, há aqueles que são reputados pela bravura e coragem, como Putuxop (papagaio) e Mõgmõgka (gavião), cuja presença é sempre evocada quando da emergência de conflitos com grupos externos ou na confrontação de entes potencialmente hostis, tais como a onça (hãmgãy) e o Inmõxa. Há outros, como Po'op (macaco) que atuam na caça e outros, como Xunin (morcego), cuja presença é bastante requisitada nas práticas terapêuticas. Ademais, para os Tikmu’un, os yãmiyxop são os donatários de todo o conhecimento verdadeiro a respeito das coisas, cujo contato permitiria aos humanos o acesso às benesses decorrentes deste saber. Isto explica o zelo dedicado pelos Tikmu’un à sua relação com os yãmiyxop, pois estar em contato constante com estes seres permitiria acessar as benesses decorrentes de sua ação.

Todo canto está associado a um yãmiyxop particular, cuja letra e entonação vocálica são de domínio público. No entanto, cada canto pertence a uma pessoa específica, que o recebeu de duas maneiras: seja pela herança de um parente mais velho, normalmente um consanguíneo; seja através de uma visita na forma de sonho, no qual o yãmiyxop aparece e ensina a história que ele quer legar aos humanos. Em geral, este tipo de ocorrência só acontece entre os mais velhos e experimentados, os quais dispõem de longo contato com os yãmiyxop. Nestes casos, mostra-se o canto aprendido na kuxex (casa de religião) e depois ele é inserido no yãmiyxop "apropriado", no lugar "certo" da sequência.

Infelizmente, nenhum pesquisador acompanhou um processo como este e não se sabe ao certo quais os critérios e formas de deliberação que atuam no ordenamento dos cantos novos no interior de um yãmiyxop qualquer. Tal descoberta seria importante, por permitir compreender melhor a lógica atuante na classificação dos cantos/entes sagrados no interior de um grupo de yãmiyxop, bem como o princípio que atua na determinação do qual lugar ele ocupa na série de cantos. Há, no entanto, um canto que se sabe ter sido originado de um processo semelhante. Trata-se do canto da capivara (kuxakuk), pertencente ao Xunin:

Capivara
Gilberto [dono do canto]
hai ii iaaa heidia o a
heidia iii dia a
do alto da cachoeira rolando
do alto da cachoeira rolando
ela veio caindo e morreu
ela veio caindo e morreu
vi, tive pena
sentei e chorei
sentei e chorei
hai ii iaaa heidia o a
heidia iii dia a
do alto da cachoeira rolando
do alto da cachoeira rolando
ela veio caindo e morreu
ela veio caindo e morreu
vi, tive pena
sentei e chorei
sente e chorei
heai hoooa
hui huui

Como nos mostra a exegese do canto, ele narra uma cena de caçada, envolvendo os pais de dois Tikmu’un contemporâneos, Guigui e Toninho. Enquanto aqueles homens caçavam, eles teriam encurralado uma capivara no alto de uma cachoeira, localizada nas cercanias da terra indígena demarcada, mas que foi deixada de fora do processo de homologação das terras dos Tikmu’un pelo Estado brasileiro. Ao tentar escapar, a capivara rolou cachoeira abaixo, vindo a morrer. À noite, Xunin teria aparecido em sonho e ensinado o canto acima a um dos caçadores e este o repetiu na casa de religião (kuxex) para os demais homens, que em conjunto consideraram-no um ensinamento sagrado de Xunin, incorporando-o ao seu repertório. Assim, este exemplo é significativo por mostrar como as experiências pessoais são incorporadas no complexo cosmológico dos Tikmu'un.

Ademais, este fato ilustra uma das razões pelas quais os complexos de cantos podem sofrer pequenas alterações entre os grupos locais dos Maxakali. Tal fato se explica pelo teor das relações políticas deste povo, uma vez que não há uma instância transcendental de totalização da experiência, o que abre margem para a emergência deste tipo de variação. Mas há também um aspecto histórico intervindo neste processo, pois os Tikmu’un dizem que seus grupos de cantos são formados pela coalizão das pessoas que se reuniram nesta região na passagem do século XIX para o XX. Cada qual teria contribuído com um trecho dos atuais 10 grupos de cantos existentes e através da troca de músicas eles puderam criar os atuais yãmiyxop. Tal fato atesta que os yãmiyxop estão longe de serem tomados como um dado bruto da realidade, sendo, ao contrário, percebidos como o resultado relativamente contingente da história.

Ademais, este aprendizado de cantos pelo sonho contradiz a idéia mencionada acima de um fechamento absoluto dos grupos de cantos, pois, de fato, alguns dentre eles são mais permeáveis à modificação, como é o caso do Xunin, enquanto outros estariam menos propensos à alteração de sua composição interna, como é o caso do Komãyxop. Talvez essa aparente contradição se resolva com a referência a alguns mitos dos Tikmu'un sobre a origem dos yãmiyxop. Alguns deles, como o de Koatkuphi e Komãyxop, narram que no início dos tempos estes entes eram desconhecidos dos humanos e que após um encontro casual, sempre ocorrido na floresta e marcado por algum acontecimento extraordinário, os yãmiyxop resolvem ir morar na kuxex, aliando-se com os humanos, mediante a união de cada um dos entes com uma pessoa particular, a qual passa ser seu "dono" - isto é, de seu canto. Após algum tempo ocorre alguma quebra de etiqueta, o que faz com que os yãmiyxop se retirem da aldeia, mas mantenham sua união com os homens, voltando temporariamente à kuxex sempre que eles fossem chamados, mediante o respeito à etiqueta que eles exigem. Por conseguinte, creio que a alusão à origem e imutabilidade dos cantos seria antes uma referência a essa necessidade de se respeitar as normas e predicados necessários para normalizar as relações com os yãmiyxop, ao invés de explicar o modo de acesso primeiro aos cantos sagrados.

Acerca do conteúdo das letras das músicas, há um grupo delas compostas de "palavras vazias", isto é, de sons melódicos sem nenhum significado associado. A maioria, todavia, apresenta letras com significação, sendo que boa parte delas consiste na narração por um yãmiyxop de algum acontecimento, ou então na descrição do comportamento de algum dos seres que habitam o mundo (homem incluso). Os temas abordados variam bastante, indo desde os hábitos dos animais que viviam junto aos mõnãyxop (antepassados) na floresta (mimmãtix xexka, isto é, na "mata grande"), até o comportamento de homens e mulheres alcoolizados quando de suas idas às cidades, passando pelas situações excepcionais vividas por heróis culturais.

O narrador pode ser o ente que dá nome ao grupo de cantos, ou os demais yãmiyxop que lhe são associados, segundo a classificação vigente entre os Tikmu’un - por exemplo, os cantos entoados pelos Puxap (Pato) pertencem ao subgrupo do yãmiyxop Putuxop. Há casos em que os cantos são narrados por seres que se metamorfoseiam em outros - por exemplo, quando o Gavião se transforma em Xakuxux (Urubu) no mito de Putuxop, narrando algo de sua perspectiva -, e mesmo cantos nos quais um ser narra os acontecimentos na perspectiva de outro ente, como se vê no canto a seguir:

História do cachorro (Koktix - macaco-prego)
Yê, yê, quati me matou
Quati me matou
Yê, yê, macaco me matou,
Macaco me matou,
Yê, yê , armadilha me matou,
Armadilha me matou,
Yê, yê, cobra me matou,
Cobra me matou,
Yê, yê, e agora estou conversando com Tupã
e agora estou conversando com Tupã
Yê, yê.

O narrador do canto acima é Koktix, o espírito do Macaco-Prego, o qual conta, em primeira pessoa, a história do cachorro. Os primeiros versos descrevem como o cachorro perseguia vários animais que acabaram "virando o jogo" e matando-o. Assim, o cachorro perseguiu primeiro o Quati e depois o Macaco, mas foram estes últimos que o comeram. Em seguida, há menção a outras duas formas de morte: uma por ter caído numa armadilha e outra em decorrência de picada de cobra. Por fim, o cachorro teria ido para o céu, encontrado Tupã e conversado com ele. Segundo Ana Cristina de Alvarenga (2007), este canto apresenta um jogo de perspectivas (o canto é do macaco, mas é narrado em primeira pessoa pelo cachorro e cantado pelos homens) e há um tom jocoso na narrativa, por conta dos acontecimentos que o acompanham no ritual, no qual uma mulher oferece bananas ao macaco, e outra as rouba em seguida, a meio caminho da kuxex. E no prosseguimento: "O macaco cai, depois se levanta e corre atrás da mulher. Ele a pega por trás, num gesto fálico, vai até as outras mulheres, assustando-as, e volta ao kuxex. O clima é de pura diversão, com muitas gargalhadas. No caminho, o macaco passa pelo homem cuja esposa ofereceu as bananas e faz o mesmo gesto fálico." (Alvarenga, 2007).

Embora todos os adultos saibam as letras, vocalizações e ritmos das músicas existentes em todos os grupos de yãmiyxop mencionados acima, o uso dos cantos durante os rituais somente pode ser feito mediante a presença de seu dono. Além disso, há uma ordem específica a ser respeitada nessas ocasiões, de modo que existem alguns homens responsáveis por zelar pelo bom andamento do rito, bem como pela entoação dos cantos na ordem precisa e pela execução correta das performances e danças dos yãmiyxop no pátio dos grupos locais (hãpxeop), quando é o caso. Trata-se, geralmente, de pessoas mais velhas e prestigiosas, conhecidas por serem as responsáveis pela kuxex (casa de religião), a casa que ocupa o ponto focal partir do qual se constroem as demais moradias de um grupo local. A kuxex é inabitada no dia-a-dia, mas serve de morada aos yãmiyxop quando estes acorrem ao mundo dos humanos. Trata-se de um espaço masculino, onde os homens iniciados acorrem para realizar toda a atividade ritual e secreta destinada aos yãmiyxop, estando vedada àqueles não iniciados (geralmente os estrangeiros) e mesmo aos jovens muito pequenos. Ademais, esta casa serve de abrigo para conversas e reuniões informais realizadas pelos homens ao longo do dia, se constituindo num verdadeiro espaço de articulação dos nexos entre os moradores de um grupo local.

A principal atividade realizada na kuxex consiste em entoar os cantos sagrados. Para este fim, os homens "emprestam" suas vozes aos yãmiyxop, sendo inclusive conhecidos como yãmiyxop täg, isto é, como "pais" dos yãmiyxop. Quanto às mulheres, durante a realização dos rituais elas se postam no hãpxeop (pátio) e zelam ao longo dos longos períodos dedicados a realização dos mesmos, preparando a comida que é servida para alimentar os yãmiyxop e acompanhando cantos feitos e as evoluções feitas no pátio, sendo por isso conhecidas como yãmiyxop tug, isto é as mães dos yãmiyxop.

Um ponto digno de nota é a miríade de seres presentes neste sistema de referências. Tais quais os sistemas cosmológicos animistas de Philippe Descola ou o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro, os animais (xoxuk) ocupam um lugar de destaque, sendo que a eles são imputadas uma vida cultural semelhante à humana. Daí que as modalidades de relação instauradas nos yãmiyxop sigam aquelas vigentes entre os humanos.
Ora, como se sabe desde os escritos de Marcel Mauss (1974) e Claude Lévi-Strauss (1976) sobre a reciprocidade, este é um mecanismo central para a instauração da unidade nos povos sem Estado. Lévi-Strauss dirigiu sua atenção às trocas instauradas pelo parentesco, que se baseiam numa regra negativa (o tabu do incesto), para produzir um efeito positivo (as alianças matrimoniais). No entanto, ele mesmo assevera que ela deve englobar três instâncias: os bens, as mensagens e as pessoas (mulheres), como se vê em suas palavras: "Uma sociedade é feita de indivíduos e de grupos que se comunicam entre si. Entretanto, a presença ou a ausência de comunicação não poderia ser definida de maneira absoluta. A comunicação não cessa nas fronteiras da sociedade. Mais que fronteiras rígidas, trata-se de limiares, marcados por um enfraquecimento ou deformação da comunicação, e onde, sem desaparecer, esta passa a um nível mínimo. [...] Em toda sociedade, a comunicação se opera ao menos em três níveis: comunicação de mulheres, comunicação de bens e de serviços, comunicação de mensagens" (Lévi-Strauss, 1985).

Para poupar espaço nesta exposição, não detalharei o sistema de parentesco dos Tikmu'un. Basta resumir aqui que ele instaura uma instância de intercâmbio que impede o fechamento dos grupos entre si, tendo como casamento ideal aquele que envolva primos cruzados. Há, somente, uma polêmica na bibliografia sobre o alcance desta regra, pois segundo Frances Bock Popovich (1980) o casamento preferencial envolveria somente os primos cruzados matrilineares, sem esboçar nenhuma explicação para esta interdição. Já de acordo com Myriam Álvares (1992) haveria uma bilateralidade na escolha, bastando que eles sejam de segundo grau.

Mas o sistema de parentesco não é o único mecanismo de reciprocidade, pois o circuito cerimonial presente nos yãmiyxop seria o único sistema de dons recíprocos que extrapola os limites das relações de parentesco e engolfa o grupo local por inteiro. Os homens reunidos na kuxex entoam os cantos e em contrapartida as mulheres lhes doam alimentos. Via de regra, a doação é feita pela mulher daquele que é o dono do canto, no caso de um homem, instaurando um mecanismo de dom e contra-dom entre mensagens e bens. Há casos, em que a reciprocidade é mais explicita, pois nestes casos as mulheres entregam os alimentos na kuxex pedindo que um canto/vocalização seja entoado/a em seguida. Ora, tal forma de reciprocidade vigora em especial entre os parentes afins e os não-parentes, mas dada a forma da economia atual dos Tikmu'un, não há nenhuma instância que arregimente grupos mais extensos de pessoas, algo reservado somente aos yãmiyxop. Como estes complexos rituais foram formados pela troca de trechos cantos entre as famílias formadoras dos Tikmu’un atuais, nenhuma parentela possui os cantos necessários para se realizar um yãmiyxop isoladamente e a própria reprodução deste complexo cosmológico somente é possível mediante a manutenção da aliança entre os moradores de um grupo local. Assim, é necessário manter a concórdia entre as pessoas particulares para que haja o ritual e o socius Tikmu’un transcenda os limites das relações de parentesco.

Na construção da reciprocidade nos yãmiyxop, há um cuidado especial em atribuir uma equivalência nos dons de acordo com as preferências atribuídas a cada espírito. Assim, há determinados espíritos, como o Xunin e o Koktix, reputados por gostarem de bananas e são elas que lhes são dirigidas. Tal conhecimento do gosto dos yãmiyxop se baseia num extenso saber zoológico e botânico e na atribuição de relações similares às humanas na forma de interação destes seres entre si - daí que a reciprocidade possa instaurar uma relação positiva dos humanos para com estes entes, tal como ocorre nos humanos.

No entanto, embora os animais (xokxop) constituam a maior parcela dos seres presentes nestas interações, as narrativas presentes nos yãmiyxop também retratam intercâmbios com entes ligados à situação colonial. Segundo o texto do "Handbook of South American Indians", de autoria de Alfred Métraux e Curt Nimuendajú (1946), a única referência histórica do uso de substância psicoativa por parte deste povo se dá com okutekut, uma lagarta que vive na taquara. No entanto, há vários cantos dos yãmiyxop nos quais se relata o uso da cachaça, uma bebida psicotrópica proveniente do mundo colonial, como se vê no canto abaixo:

Cachaça brava
Antônio José [dono do canto]
ia aaaaa i ii
ia aaaaa i ii
aaa i a iia
ruim vocês
dando cachaça brava
yãmiy virando morto
aaa ii a AA
ruim vocês
dando cachaça brava
yãmiy virando morto
aaa ii a AA
virando morto
aaa ii a AA
virando morto
aai dia abiai
aai dia abiai
diac aabiaí aidiac aaia ô ôôô

A exegese do canto explica que o yãmiyxop narrador deste episódio é Hemex, mas quem atua é Xunin, mostrando mais uma vez um jogo de modificação de perspectivas semelhante ao mencionado acima por ocasião do canto de Koktix. Xunin teria visto dois homens brancos conversando, tendo ganhado cachaça de um deles e indo repousar em seguida. Embora possamos considerar que há uma apreciação negativa do ato de se utilizar da cachaça ("ruim vocês/dando cachaça brava"), isso não impede a experimentação da situação. Além disso, em outras passagens os Tikmu’un fazem várias menções críticas à forma de vida dos agentes coloniais e talvez seja essa a fonte da desaprovação presente neste canto. Mas, repito: nenhuma dessas circunstâncias negativas impede o uso das bebidas alcoólicas por parte de Xunin e que, por conseguinte, que haja uma interiorização deste tipo de experiência por parte da cultura deste povo.

Isso se torna ainda mais evidente quando se considera que a principal queixa dos agentes coloniais com relação aos Tikmu’un é o consumo de bebidas alcoólicas. Pode-se mesmo dizer que este é apresentado como o "problema Maxakali" por excelência. Toda ida à cidade é ocasião para que os membros deste povo busquem essa substância, cuja comercialização é vedada aos indígenas desde o ano de 1976. Nem é preciso mencionar que esta proibição levou à implantação de um comércio clandestino de bebidas, com preços majorados, ao invés de interromper sua utilização. Embora parte da bibliografia consagrada aos Tikmu'un desenvolva a idéia de que este povo somente conseguiria "pilhar" os elementos provenientes do mundo do colonizador (Álvares, 1992; Vieira, 2006), creio que estes indícios mostram a possibilidade de haver um relacionamento do mesmo tipo que o vigente com os demais seres.

Na verdade, penso que a questão do dia para os Tikmu’un seja desenvolver formas de interação mais adequadas ao universo vigente a partir da submissão ao colonizador. E nesse processo, as lições presentes no universo relacional dos yãmiyxop orientam a construção desta forma relacional. Sendo assim, o modo pelo qual se dá a apropriação dos bens do colonizador indica este esforço de construir uma forma de reciprocidade para com ele. O problema aqui é o não-reconhecimento deste mecanismo por parte do outro termo envolvido, pois no tocante aos animais, à flora, e mesmo para com os demais povos autóctones com os quais os Tikmu’un interagiam antes da submissão colonial, esta forma comunicacional era eficaz, produzindo uma instância de reconhecimento mútuo capaz de implementar as formas relacionais vigentes àquela altura. Como indicado acima, os seres da Mata Atlântica eram tomados como sujeitos equiparáveis aos humanos e não opunham resistência para que este sistema funcionasse na interação mantida para com eles.

Já o caso do colonizador é diferente e a única instância em que há um mínimo reconhecimento parcial deste sistema é no tocante às trocas comerciais. Não espanta que seja justamente nestes momentos em que o consumo exacerbado de bebidas alcoólicas ocorra, pois este é um meio, ainda que inconsciente, dos Tikmu'un protestarem contra a falta de reciprocidade e de comunicação vigente no relacionamento contra a grande alteridade com a qual se deparam no presente. Vale notar que são ocasiões nas quais os membros deste povo perdem a compostura, brigando entre si e dando verdadeiros espetáculos nas praças das pequenas cidades que circundam a terra indígena Maxakali. Não admira que este seja o problema indígena por excelência por parte dos agentes coloniais. Todavia, estes últimos não reconhecem o apelo feito pelos Tikmu'un de sair deste curto-circuito comunicacional e preferem projetar nos membros deste povo a pecha de "índios beberrões", ao invés de entender qual processo está se delineando diante de seus olhos.

Enfim, toda essa reflexão mostra como o conceito de "Natureza" é inadequado para se pensar o universo relacional instaurado pelos yãmiyxop entre os Tikmu'un. Como indiquei acima, não há uma distinção a priori entre os seres que habitam os cosmos, de modo que aos animais e vegetais é imputada uma interioridade idêntica aos humanos. Com isso, um jogo relacional inspirado nas relações sociais recíprocas serve de modelo para as interações mantidas para com estes entes. Mostra também como este mesmo modelo relacional serve de parâmetro para as relações para com o colonizador e seus bens, simbólicos ou não. Com isso, quis mostrar que é possível fazer uma abordagem mais histórica das cosmologias ameríndias, me afastando um pouco do modelo instaurado pela noção de perspectivismo ameríndio, através da qual se tem efetuado as análises sobre a cosmologia deste povo. A grande dificuldade das análises inspiradas neste modelo tem sido lidar com os acontecimentos decorrentes da submissão ao colonialismo luso-brasileiro.

Tentei mostrar como são as relações entretidas no dia a dia que presidem a construção do imaginário social, aproximando-me da posição mantida por Maurice Godelier (1981, 1984, 2001). Segundo este autor, são as relações mantidas pelo homem no processo de transformação da natureza que criam a história. E suas palavras: “no coração das relações materiais do homem com a natureza, aparece uma parte ideal onde se exercem e se juntam três funções do pensamento: representar, organizar e legitimar as relações dos homens entre si e com a natureza” (Godelier, 1984)

No caso dos Tikmu’un esse processo criou um mecanismo relacional que permitiu a reprodução deste grupo desde tempos imemoriais. Um mecanismo que foi abruptamente convulsionado pela situação colonial. No entanto, foi a partir dele que se erigiu um meio para reassentar o socius Tikmu’un sob novas bases. Agora, não mais atuando prioritariamente na interação junto àquilo que chamamos natureza, mas diante das condições de vida colonial. Nesta situação, o imaginário social deste povo começa a produzir um conjunto de representações acerca das interações que eles entretêm no cotidiano, acomodando-se no sistema cosmológico criado para lidar com os seres da mata Atlântica. Do ponto de vista econômico essa solução não tem sido a mais bem sucedida, pois ao longo do século XX diversas tentativas de recriar uma economia Tikmu'un autônoma falharam, por tentarem modificar a base material deste povo sem levar em conta o sistema de referências que guia as interações cotidianas. Todavia, tal prática tem mostrando como: “Há sempre no exercício do pensamento qualquer coisa que transborda o momento histórico e as condições materiais e sociais deste exercício, qualquer coisa que reenvia a uma outra realidade a uma outra história que a do homem, qualquer coisa que reenvia à história da natureza, anterior, exterior, mas ao mesmo tempo interior àquela do homem, pois ela o dotou de um organismo material (o corpo) e de um órgão (o cérebro) que lhe permitem de pensar” (Godelier, 1984).

Godelier escreveu estas palavras visando explicar os motivos do desenvolvimento de outras formas de vida social ao longo do devir histórico humano. Segundo ele, não estaríamos presos à mera reprodução da vida material tal qual a recebemos de nossos antepassados, podendo inserir uma dimensão ideal nas relações materiais, de modo da alterar as formas vigentes de relações sociais. De minha parte, quis mostrar como essas idéias se aplicam a algo diferente: a reestruturação das condições de existência com base num modelo ideal de vida baseado numa relação material que não pode mais existir, dadas as condições ambientais e sociais presentes. Com isso, a parte ideal do real desempenha ainda hoje um papel destacado na reprodução da vida social. Ao menos creio que é assim que se passa com os Tikmu’un e seus yãmiyxop.

Texto de Rodrigo Barbosa Ribeiro
Xupapoynãg - Espírito da Lontra

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