Dezembro
de 2005 marcou a eleição presidencial do líder cocalero da etnia aymara Evo Morales
à presidência da Bolívia. Essa eleição foi tão simbólica que foram realizadas
três cerimônias de posse diferentes: a primeira ocorreu em Tiahuanaku, na antiga cidade sagrada qolla – ou aymara – e contou
com todo o aparato ritual aymara: uso do chunco (poncho sagrado), pés
descalços, bastão dourado, adorno de cabeças de condores e o tradicional juramento
a Pachamama (Mãe Terra) e a Tata Inti (Pai Sol). A segunda
cerimônia realizou-se em La Paz, no Congresso Nacional, onde também a
simbologia aymara foi utilizada quando Evo pediu um minuto de silêncio em
homenagem aos heróis caídos em tantas batalhas pela América explorada. Por fim,
a última ocorreu na Praça de San Francisco em contato direto com o povo
boliviano.
Muitos
militantes aymara consideraram a eleição de Evo um fato bastante positivo na
trajetória das lutas aymara. Nas linhas de um projeto de REVOLUÇÃO ÍNDIA, bem organizado e consciente, que defende a recriação
do Qollasuyu, o espaço qolla (ou
aymara) de antes da chegada dos europeus.
Tal
projeto inicia-se a partir de um documento importante que marca a luta em
função da criação de um novo Estado, o Qollasuyu, publicado em 18 de dezembro
de 2002, por ocasição do Primer Encuentro
Indígena, realizado em Cuzco. Nele, os aymara desconhecem a autoridade de países
como Bolívia, Peru, Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai, posto que para eles
são apenas terras roubadas dos povos originários e batizadas como “Repúblicas”.
Da mesma forma, dentro desses países deve-se desconhecer estados, províncias ou
departamentos e adotar a divisão administrativa baseada em ayllu, marka, laya e suyu, do período pré-colonial. Para ser cidadão qollasuyano é
preciso exercer uma função que se volte ao benefício de todos, aprender a falar
pelo menos três idiomas (sendo ao menos um indígena) e apresentar um sinal
cultual qollasuyano, embora seja possível também para um estrangeiro nacionalizado.
Tal
cidadania não é estática, ou seja, também deve ser construída:
Artigo 23 – Todo quollasuyano está
obrigado à educação integral com base na nossa cultura, ciência e tecnologia
próprias e à utilização da ciência e tecnologia ocidentais para nossos
interesses, às quis deve ter acesso principalmente a partir da família na
língua indígena e, posteriormente, em outros idiomas ou REGIME CULTURAL DO
QOLLASUYU.
Também
estabelecem símbolos do Qollasuyu, como a wiphala
(bandeira quadriculada) e outros, tais como puma, jaguar, ankonda , folhas de
coca, o hino “El Condor Pasa”: o jilaqata
para o ayllu, malkus para a marka, kuracas para a laya e kinkas para o suyu; ficando também marcadas as
autoridades: as autoridades têm a obrigação de possuir família, experiência e
honestidade e, fundamentalmente, a trabalhar:
Artigo 43 – Cada qollasuyano está
obrigado a trabalhar rotativamente no altiplano, bem como no vale, yungas,
selvas e, inclusive na costa, distribuindo seu tempo de trabalho por meses e
por anos. Também atuarão um tempo em trabalhos manuais e, em outros momentos,
em trabalhos intelectuais, tanto no campo quanto na cidade. Ninguém pode estatizar-se
em apenas uma forma de trabalho.
Isso
merece uma pequena reflexão: em primeiro lugar, remetendo a uma antiga obrigação
das comunidades – ayllus – do
império inca, de enviar colonos a todos os outros pisos geológicos – litoral,
vales, altiplano – para complementar sua economia. Eram os chamados Mic
Mac, que periodicamente trocavam produtos com os ayllus de origem, numa economia de complementaridade. Outro aspecto
levantado é que as atividades de cada pessoa devem se alternar entre trabalhos
manuais e intelectuais sem que haja uma concentração em um só tipo de trabalho.
Essa preocupação aparece também na criação de escolas e universidades aymara,
conforme discutiremos posteriormente. Tal percepção busca criar cidadãos o mais
semelhantes possível entre si e é uma tese que já foi muitas vezes retomada por
pensadores marxistas e, de certa forma, embasou a visão de Mariátegui, a
caracterizá-la como “comunismo inca”.
Ao
mesmo tempo em que os aymara tentam criar o Qollasuyu, precisam combater o “modo estrangeiro de ser”, seus
símbolos, forma de administração política, heróis nacionais, sistema
educacional, etc, e, caso não seja possível, deve valer-se de todos os recursos
possíveis para resistir e usar a favor da “República
Indígena” o conhecimento adquirido do estrangeiro. Aqui encontramos uma
citação surpreendente, pois é a corporificação daquilo que James Scott chama de
“off stage”, ou seja, é um discurso
oculto que, como poucas vezes acontece, torna-se explícito assumido enquanto
estratégia de luta, sem se preocupar em ser descoberto:
Artigo 55 – Se ao qollasuyano for
imposto, pela força e ameaças, leis neoliberais, nacionalistas e colonialistas
em geral, deve simular sua relação com eles, para depois usar o dinheiro, a
infraestrutura e os projetos para em nossos interesses de independência e
soberania; também deve converter o Salão Provincial em um poder local para
restaurara a laya e estabelecer contato com outras layas para, paulatinamente,
consolidarmos a República originária e indígena.
Esse
documento é bastante rico para nossas reflexões, a Revolução Índia explicita as
táticas de resistência que devem ser implementadas até sua vitória final:
Artigo 58 – Devemos nos inserirmos entre
os alto oficiais do Exército, na cúpula da igreja, nas altas chefaturas dos
partidos políticos, nos altos cargos das instituições de Estado e
governamentais, para nos informarmos da política colonialista do Estado
boliviano, e, com essa informação e experiência, devemos avisar sobre o perigo
eminente contra os indígenas do campo e das cidades.
Trata-se
de utilizar todas as estruturas da sociedade branca contra ela mesma – inclusive
a Internet – penetrar em todas as instituições: Exército, Igreja, Partidos
Políticos, Instituições Estatais, Parlamento, governo etc e, se possível,
assumir a presidência. A citação anterior chega a ser chocante por sua
sinceridade e, de certa forma, retoma a linha de análise de Edward P. Thompson
ao falar da “turba” que enfrenta a Economia de Mercado na Inglaterra do século
XVII, mas que agora rompe com o discurso oculto que James Scott analisou,
partindo para um projeto explícito de enfrentamentos, revolucionário.
E
ainda o projeto do novo Estado prevê quase toda forma de ação militante
Artigo 59 – Toda mulher casada,
solteira, divorciada, abandonada e viúva deve ter mais que quatro filhos, para
manter viva a nossa população, cultura e território, e deve lutar contra toda
política de controle da natalidade, clube de mães, alimentos transgênicos e
outros que só buscam reduzir e exterminar a população indígena, para
possibilitar migrações européias, e apoderarem-se do nosso território e
usufruir nossos recursos naturais.
Há
aqui um importante elemento de mobilização de identidades que se radicaliza e
que vale a pena ressaltar: se a atuação sindical via CSUTCB foi muito
importante na luta camponesa e aglutinou como um guarda-chuvas outros
movimentos sociais da sociedade boliviana, como anteriormente na metade do
século passado havia realizado a COMIBOL, agora no século XXI a etnicidade
ressurge como uma força mobilizatória talvez nunca vista antes na história
latino-americana, pois o que impressiona é que os próprios atores tem clara noção
da força de seu movimento:
É evidente que nos últimos tempos se tem
acontecido um crescimento qualitativo importante dos Povos e Nações originários
do continente. Creio que os vários povos indígenas, hoje em dia, nos diferentes
Estados e Nações dessa região – sua presença é inegável – nos tornamos atores
fundamentais dentro das sociedades nacionais. Estamos e estaremos sempre
presentes. (MACAS & YATIYAWI, 2007)
Cientes
de sua força política no momento atual, os aymara defendem a interculturalidade
como forma de convivência com outros povos e nações:
Ao falar de interculturalidade, é preciso
reconhecer que as culturas que se encontram têm a mesma força e o mesmo valor:
a moderna e a indígena.
Se se pretende apenas ensinar às
crianças dos povos originários as idéias ocidentais em nossas línguas maternas,
é um grave erro, que está condenado ao fracasso (...) Mas se vamos falar de
interculturalidade, o primeiro passo é acercamo-nos da nossa cultura, vê-la a
partir de nossos olhos, aprender a respeitá-la para, depois, mostrar a outra,
podemos estar seguros e sem o menor medo em aceitarmos o que há de positivo
nela, a fim de continuarmos a levar a vida... como sempre a levamos.
A
Revolução Índia parte do pressuposto que se deve re-indianizar os aymara que foram
influenciados pelos costumes brancos e, a partir daí, seguros de sua cultura,
eles poderão partir para uma convivência com as outras, inclusive a branca, mas
contanto que a diversidade seja respeitada, algo que não aconteceu nem no
período colonial e nem no processo de constituição da república boliviana. No
futuro isso deverá ser diferente:
Outro elemento fundamental em que
devemos ter clareza no processo da interculturalidade é que os valores,
princípios, conhecimentos, sabedoria de nossos povos não devem ser apenas
recuperados e arquivados, mas devem ser oferecidos como uma contribuição de
nossos povos à sociedade em seu conjunto, como elementos substanciais para um
planejamento alternativo.
Eles
estabelecem passos a serem cumpridos até que a interculturalidade se torne realidade.
Num documento discutido num evento realizado na Guatemala em 2007 – o II Encuentro Continental de Pueblos y Nacionalidades
Indígenas de Abya Yala –, foi inclusive traçado um calendário de atividades
e objetivos a serem alcançados. A previsão da Revolução chega a ser exagerada,
com datas previstas para cada evento ocorrer pelos próximos cem anos, ou seja,
até os 600 anos da chegada de Colombo ao continente. Comentemos brevemente
essas fases, com a máxima fidelidade ao texto original:
De 1992 a 2002,
realizou-se o início do Pachacuti –
a nova era – através de reflexões acerca do colonialismo europeu e dos Estados
Nacionais latino-americanos, promovendo a re-emergência dos movimentos
nacionais indígenas; de 2003 a 2007
deu-se a reaproximação entre diferentes povos de culturas originárias,
criando-se espaços de articulação entre eles; de 2008 até 2012 é o tempo de se criar uma proposta de transição histórica,
de criação de uma sociedade intercultural; entre
2013 e 2017 deverão começar a ser postos em prática projetos integrados
para transformar estruturalmente a nova sociedade e combater o modelo econômico
dos Estados Unidos; de 2018 a 2022
deverá ocorrer o fim do “sistema colonial republicano”, assim como dos Estados
Unidos em prol de regimes pluralistas que, supomos, devem ser os de respeito à
individualidade de nações originárias; de
2023 a 2027 haverá a emergência dos Estados Andinos e de sociedades
interculturais no resto do continente; de
2028 a 2032 haverá a eliminação de antigos resquícios de práticas sócio-culturais
da colônia; de 2033 até 2042
surgirão os novos estados do novo continente, o TAWA INTI SUYU e de novas correntes econômicas mundiais, embora
eles não especifiquem o que sejam elas; de
2043 a 2092 ocorrerão as comemorações por cem anos de progresso comunal – partindo
do marco que foi 1992 – e a crise do sistema de economia de mercado.
Mas
a Revolução não termina nesse período, e as previsões se estendem até o século
XXV:
De
2093 a 2142 – fim
da era cristão, e processo de reconfiguração cultural nos diferentes
hemisférios do planeta. Eclosão em massa de novas sociedades de economia
sustentável.
De
2143 a 2192 – Eliminação
total das injustiças sociais.Processo de conversão tecnológica. Reversão
progressiva dos níveis de contaminação ambiental. Celebração dos 200 anos de
trânsito favovável do Pacha Kuti.
De
2193 a 2492 – Auge
das tecnologias saudáveis e equilíbrio ambiental; paz e justiça social entre os
habitantes desse planeta; harmonia espiritual.
Em
2493 – Início
da exploração e aproveitamento de novas jazidas e recursos naturais em planetas
próximos. Evitar o surgimento de novas tecnologias que provoquem um risco de
extinção de muitas formas de vida e formas de poder que nos conduzam ao
desequilíbrio social.
PROPUESTA GEOPOLITICA TAWAINTISUYU ABYA
YALA
COMUNIDAD QOLLASUYU TAWA INTI SUYU,
09.10.2006 19:08
Vejamos,
portanto, o radicalismo do projeto revolucionário, prevendo o fim da era cristã,
das injustiças sociais, das tecnologias perniciosas ao meio ambiente e a
emergência de um mundo de harmonia social e espiritual. Ou seja, o projeto
supera em muito as formas de resistência estudadas por muitos autores, que
deixou de ser implícita para vir a público com um verdadeiro cronograma de
atuações bem planejadas que já se encontram em realização.
A
preocupação com o estabelecimento de um cronograma tão pormenorizado, a nosso
ver, não deve ser nem tão exaltada e nem beirar o completo desprezo. É, sim,
causa de reflexão: se os aymara não se importam em divulgar esses dados é
porque têm noção de que a Revolução Índia só poderá ser feita a longo prazo, a
partir de um processo que compreende uma imensa variedade de lutas, tais como
de ações de resistência contemporânea, corporificadas em ações diretas de
cercamento de cidades, colocação de pedras em rodovias, transmissão de mensagens
de madrugada de porta em porta, de associação com outros segmentos da sociedade
boliviana em questões pontuais, como foi o caso da Coordenadora de Água e Vida,
em Cochabamba, no ano de 2000, a deflagração de um projeto consciente de re-indianização
de aymaras mais jovens que, geralmente, migraram do campo para as cidades e abandonaram
antigos rituais. Entretanto, tais ações não abandonam a ótica da ação política,
ao lutar-se por cargos nas eleições nacionais bolivianas e pela implantação da
nova constituição boliviana.
Trata-se
de uma luta que vem colhendo vitórias e propondo a construção de um Estado Multinacional
com conceitos novos e defesa de nacionalidades:
A Antropologia é uma falsa ciência,
criada pelo colonialismo britânico, e seus fundadores, todos eles senhores
colonialistas, estudavam os povos oprimidos como se estuda os macacos da selva.
Os Malinovski nas Ilhas Trobiand; os
Radcliffe Brown, os Evans-Pritchard, com os Nuer de Birmânia; os Firth entre os
Tikopia, etc, etc, nos estão mostrando qual é o caráter dessa pseudociência,
construída para estudar os “selvagens” como primitivos mas não como
colonizados, enquanto a Sociologia é a ciência que estuda aos povos “civilizados”,
mas não como colonizadores.
Nada de “etnias”! Trata-se, na Bolívia,
de nações e nacionalidades originárias e indígenas que tem proclamado
claramente sua autodeterminação de criar um grande Estado Multinacional de Nova
Democracia. (ALVARADO, 2009)
Portanto,
acompanhar a luta aymara nos permite analisar como as suas propostas podem ser
inovadoras ao mesmo tempo em que remetem constantemente a um passado milenar:
Ontem se tornou visível a Assembléia
Legislativa Plurinacional. Representantes dos afrobolivianos, indígenas,
militares, empresários, operários, mineiros, da classe média e intelectuais
receberam suas credenciais, que os habilitam a iniciar uma tarefa inédita:
refundar e projetar um novo Estado.
As credenciais também foram entregues,
através do Órgão Eleitoral Pluninacional – OEP, no meio de uma festa
democrática, aos reeleitos presidente Evo Moares e vice-presidente Álvaro
García Linera.
O auditório do Banco Central da Bolívia
foi o cenário em que se reunirão, pela primeira vez depois de sua eleição, a
Assembléia completa, que substitui o Congresso. Às 09:32h, Morales começou seu
discurso com uma saudação ao fato histórico, tornando patente tratar-se de uma
etapa de “transformações profundas da reconstrução da Bolívia”.
‘Na Bolívia, continuamos fazendo
história, continuamos escrevendo uma nova história, mas com o povo boliviano
como sujeito. É a democracia!’, disse ele.
Texto
de Celso Gestermeier do Nascimento
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