domingo, 9 de março de 2014

ESPIRITUALIDADE INDÍGENA

Quando as pessoas morrem, dizem os Suruí-Paiter, as almas têm que percorrer um caminho largo e longo, o MARAMEIPETER, aberto na floresta dos céus. É uma viagem terrível, e os pajés e parentes dos mortos choram e rezam na terra para que os deuses tornem possível a travessia. Os pajés acompanham a alma, podem ir ao além e voltar para os vivos.

A morte antigamente não existia. A lua também não. Os mitos que explicam a vida e regem o cotidiano ainda são encontrados e contados nas aldeias. Há cerca de 170 línguas diferentes, faladas por 200 povos indígenas no país. As religiões seguidas pelos índios no Brasil não foram esquecidas, embora sejam poucos os jovens que sigam os passos dos seus pais e avós.

Os pajés costumam ter reuniões em lugares ignotos e invisíveis, entendem-se e conversam uns com os outros mesmo quando falam línguas distintas e pertencem a diferentes povos — assim nos explicam os Gavião-Ikolen de Rondônia. Com seu poder de invocar quem rege o universo, constituem uma só humanidade. Nós, que não temos essa capacidade, enfrentamos a barreira das 170 línguas indígenas brasileiras, e pouco sabemos em que acreditam os mais de duzentos povos do país. Eles convivem conosco, e ainda agora a grande maioria mantém sistemas de diálogo com deuses próprios e com o além.

Como cada povo tem uma explicação do mundo, que julga ser a verdadeira em contraposição à dos outros, não podemos falar em crenças ou religião dos índios como um todo. É preciso tomar alguns casos, para procurar compreendê-los melhor, e para estimular a pesquisa e a curiosidade sobre a imensa diversidade espiritual indígena.

É verdade que há características semelhantes e genéricas. As tradições dos índios brasileiros inserem-se numa vasta vertente religiosa, a do xamanismo, com a qual autores como Mircea Eliade ou Alfred Métraux, por exemplo, tanto nos fazem simpatizar. Famosos na Ásia, passando por todos os continentes, sabemos da existência de xamãs ou pajés, capazes de voar aos céus, descer às profundezas subterrâneas ou das águas, transformar-se em onças e outros animais, atingir o êxtase e o transcendente, casar-se com espíritos, expressar-se em línguas incompreensíveis para o comum dos mortais. Submetem-se a provas e rituais como prolongadas reclusões, suportam temperaturas excessivas, a do fogo ou a do gelo (alguns podem dormir na neve e derretê-la com seu calor interno), vêem as almas dos mortos, causam e curam doenças e males. Recorrem a alucinógenos ou tabaco e utilizam instrumentos como bastões e maracás dotados de poderes especiais, via para o sagrado, para convocar os deuses e chamá-los à terra, ou para o abandono transitório do corpo pela alma, no sonho ou na vigília, subindo para esferas imateriais.

A matéria-prima para as observações que se seguem são as pesquisas de campo da autora, em cerca de quinze povos indígenas de Rondônia e Mato Grosso, realizadas desde 1979. A bibliografia disponível, leituras e fontes secundárias, contribuem para o conteúdo (como o livro de Franz Caspar, Die Tupari, um estudo feito na região há mais de meio século). Mas o fundamental é a experiência vivida, contada e registrada em suas línguas por uns quarenta pajés, que se tornaram amigos próximos e colaboradores. Quase todos são homens, embora também algumas narradoras tenham transmitido conhecimentos preciosos.

Os povos em foco nessas linhas têm contato com a sociedade brasileira há poucas décadas — cerca de trinta anos os Suruí-Paiter, sessenta os Gavião-Ikolen, assim como os Arara-Karo ou os Tupari, ou há uns setenta, os Macurap. Apenas os Suruí, e há poucos anos, não estão praticando os rituais de cura, embora fossem até 1995 os mais avessos ao cristianismo. Mas mesmo entre eles, como em todos os outros, as tradições religiosas continuam acesas. Deve-se reconhecer, porém, que estão agora mescladas a novas influências, como do fundamentalismo protestante e de informações vindas da cidade, e que praticamente não surgem novos pajés ou jovens que pensem em seguir o caminho dos pais e avós.

Os pajés Gavião-Ikolen de Rondônia aprendem, ao longo do seu ofício, a transformar-se em animais. E sob a forma de papagaios, periquitos, araras que voam em busca das almas dos doentes, roubadas por entes do mato, como os ZAGAPUY ou os temíveis ZEREBÃI, que as camuflam em sua morada, em cestos, pedaços de algodão, esconderijos vários. Dialogando ou ameaçando os predadores, os pajés trazem de volta as almas ao corpo enfermo, curando-o. Pajés também se metamorfoseiam em animais ferozes: gostam de ser onças, lontras, porcos-do-mato e outros. E quando muito experientes, divertem-se assustando um jovem que desejam ter como aprendiz: ameaçam-no, tomando a aparência de jaguar, revoam em torno dele, falam, invisíveis.
É quando "acontece", conta quem se iniciou, um desmaio, vozes esquisitas na floresta, febres estranhas ao voltar. É o chamado para o difícil caminho de se tornar pajé, a revelação. O aprendiz não pode ter medo da onça que encontra (como saber se é o pajé mais velho ou um animal selvagem?); deve fitá-la nos olhos. Com o tempo, também conseguirá ser um jaguar. Há casos de pajés que flecharam a si próprios, quando incautos andavam em forma de onça... e acordaram no dia seguinte com a boca entranhada de pelos. Cada pajé mais velho cobiça alguns aprendizes, perpetuando a sua sábia linhagem.

Em 1981 os Gavião-Ikolen haviam abandonado os rituais de pajelança, pois eram dominados pelos missionários da seita “Novas Tribos do Brasil”. Foi então que o pajé Alamãa desapareceu misteriosamente da Casa do Índio em Porto Velho, e nem a polícia nem os parentes descobriram qualquer pista sua. Meses depois, reapareceu na aldeia, a centenas de quilômetros, em transe permanente. Sua chegada foi precedida por animais tidos como zerebãi, espíritos assustadores. Alamãa contou que aprendera com eles a arte de transformar-se em lontra, ave, onça, e sobreviver como animal, e que voando, nadando ou caçando viera pela selva reencontrar os seus. Com ele, recomeçaram a pajelança e os rituais de cura; índios e FUNAI expulsaram os missionários, a luta pela terra ganhou força vitoriosa contra os numerosos invasores. Anos depois, em 1992, Alamãa sumiu outra vez – agora em desespero pela ação ilegal dos madeireiros, ao ver tombar a floresta milenar, morada dos deuses. Na sua última fuga, exibiu tal vigor que cinco fortes guerreiros jovens não conseguiram retê-lo; desapareceu nas brenhas. Ainda hoje há ocasionais boatos de que vive em terras dos índios Zoró, mas outros acreditam que se juntou aos Goianei, Espíritos das águas, e nunca mais voltará na forma anterior.

Quando as pessoas morrem, dizem os Suruí-Paiter, as almas têm que percorrer um caminho largo e longo, o Marameipeter. Quem tem doenças graves também faz a viagem, vê os seres queridos que já se foram e, se sarar, retorna à vida normal. Há, assim, muitas testemunhas do que se passa nos céus.

Grandes perigos acometem os viajantes na estrada misteriosa. São descomunais para os covardes, os transgressores, os criminosos, como quem cometeu incesto ou matou parentes, mas se tornam diminutos para os bravos, os corajosos, de conduta correta, que fizeram muitas roças e sustentaram grandes famílias.

Os homens deparam-se mais adiante com uma mulher gigante, LAPOTI, com a vagina semelhante a uma caverna para engolir o viajante. Para o homem valente, a boca e a vagina se suavizam e diminuem, como em uma mulher normal, com quem ele copula, seguindo sossegado. Para as mulheres, há um homem com pênis gigantesco, dilacerando as que foram malcomportadas; ou apenas com uma tirinha de nada, suportável, para as bem-sucedidas em vida.

Há muitos outros pavores. Lembremos o GRANDE FOGO, queimando quem merece, ou pequena chama para os virtuosos; os ESPINHOS DESCOMUNAIS; as PEDRAS QUE ESMAGAM; os próprios parentes mortos que retêm quem chega, por amor e saudade talvez, mas o extingue; a LANÇA QUE FURA AS ALMAS; a minhoca imensa MOTINGNI, mordendo os covardes ou desfazendo-se em mil fragmentos para os fortes; a ONÇA DEVORADORA, e muitos outros. Quando vencem, as almas bravias chegam a uma morada paradisíaca, onde vivem com deuses e com os parentes que foram capazes de afrontar os monstros.
Quando os pajés relatam como se iniciaram, delineia-se um padrão. Há um elemento de hereditariedade, predominando pajés em algumas famílias. Dentro do parentesco, o acaso ou revelação: sonhos ou visões súbitas, e a proximidade com a morte, por doença grave ou, com freqüência, por mordida de cobra. Os deuses causam as doenças e, pela intervenção dos pajés, fazem-nas desaparecer.

É sempre um susto para quem é atingido: vai ao país das almas, enfrenta monstros e grandes perigos, e encontra os deuses, que anunciam as reclusões e duras provas a que deve submeter-se, como a travessia do Caminho das Almas. Os jovens, ou mesmo seus pais, sempre desejam fugir do chamado, que aterroriza, exige coragem sobre-humana e regras rígidas de comportamento, como longos períodos de abstinência sexual — mas não há como recuar diante da vocação imposta por desígnios divinos.

Os pajés mais velhos acompanham os aprendizes, ensinam-lhes cantos, que eles aprendem também diretamente dos próprios deuses. Certa ocasião, recluso em sua pequena oca, atendido apenas por crianças, pela jovem noiva impúbere prometida e pelo pajé-mestre, um aprendiz cantou dias e noites ininterruptos, sem dormir, trêmulo, sempre em transe, agarrado ao NARAÍ, seu cetro de xamã, incorporando a cada vez um deus diverso. Por sua boca falava GAPAME, um entre centenas de Espíritos, que desce à Terra acompanhado de ventos, aos quais apenas o seu belo cocar de plumas coloridas resiste, enquanto árvores se despedaçam e folha se esparramam.

Alguns aprendizes fracassam por não ter coragem suficiente. Outros morrem, ao infringir a proibição de namorar no período dedicado aos deuses.

Os pajés e os mortos Ikolen percorrem um caminho das almas nos céus, no GARPI, análogo ao dos Suruí, atormentado por perigos. Mas os pajés acentuam a face prazerosa das suas viagens, destinadas a amparar a passagem dos falecidos, a buscar os doentes e também a passear. As ocas e aldeias do além, eles contam, estão em festa permanente. Enquanto seus corpos adormecem na rede, ao lado das esposas, os pajés passam a noite dançando, bebendo, casam-se com mulheres-espíritos ou deusas, com quem têm filhos, que por sua vez vão amparar os mortais.

Num ritual de cura, os filhos e a mulher divinos do pajé Tsiposegov chegaram à aldeia uma um, proibindo sob grave pena que alguém olhasse para eles na noite sombria. Inquiriram como estavam os irmãos humanos; traziam saúde e a cura e conversaram em voz alta, registrada em gravador. Carne e espírito parecem não se opor; o namoro une o físico ao imaterial. Há, ao mesmo tempo, abstinência sexual, levando as pessoas a fixar-se num alvo e dedicar-se ao sagrado sem dilaceramentos.

Diz o pajé Txipiküb-ob que pisa o chão do Caminho das Almas, mas não é como ir à roça e tocar a terra com os pés: é um piscar de olhos que o faz ir muito longe, por tempo infinito, permitindo voltar. E um êxtase que os que não experimentaram não consegue entender.

As almas podem ser muitas, em cada povo, sediadas em diferentes partes do corpo. Notemos que os Tupinambá atribuíam ao fígado qualidades semelhantes às que nos evoca o coração.

Os Ikolen têm o TI – seria talvez a energia ou psique animadora, a que faz criar –; o ZAGONKAP, o nosso invólucro ou "semente do coração", "casca do coração", que gosta de viajar, com ou sem corpo; o IXO, imagem ou sombra, que não tem morada fixa, erra no mato, a que mais conhecemos e tememos, porque quer nos arrastar. Paixão, hálito, sopro, alento, emoção, daimon, duplo, reflexo, ânimo? Cada alma há de ter um pouco da substância que faz o corpo não ser corpo apenas.

Texto de Betty Mindlin

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