domingo, 16 de março de 2014

POVOS E ALDEIAS NO RIO DE JANEIRO DO SÉCULO XVI

Há 500 anos, quem morava aqui eram povos que foram denominados genericamente de ÍNDIOS pelo colonizador europeu. Esta denominação dá uma impressão errada, como se designasse um único povo, com uma só cultura e até com o mesmo tipo físico. Na verdade, da mesma forma que o termo europeu agrupa povos tão diferentes como os portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, holandeses e tantos outros, o nome índio esconde centenas de nações independentes, que falam línguas diferentes, muitas delas não-intercomunicantes entre si. Cada uma tem uma história própria, organização social, habilidades tecnológicas e crenças religiosas peculiares. Cada uma possui a sua própria cultura, os seus costumes, o seu jeito de ser e o seu próprio nome.

Não é fácil dizer quem eram os índios que moravam no Rio de Janeiro no século XVI. Esses povos transmitiam o que sabiam apenas por meio da palavra falada, própria da memória oral; não deixaram, portanto, documentos escritos de identidade. Poucas vezes disseram como se autodenominavam. Quando o fizeram, nem sempre foram compreendidos. Os primeiros colonizadores portugueses, franceses e espanhóis tentaram, em alguns casos, identificar o nome próprio de cada povo, criando às vezes uma grande confusão, porque quase sempre desconheciam as línguas faladas pelos índios. Nos documentos que escreveram, às vezes batizaram o mesmo povo com vários nomes, como é o caso dos Tupinambá, conhecidos também como Tamoio. Outras vezes, usaram um nome só - por exemplo, Coroado - para designar grupos que apesar das semelhanças físicas eram culturalmente muito diferentes. Registraram nomes que aparecem em poucos documentos e não conseguiram se firmar como Bacunin ou Caxiné. Escreveram o mesmo nome com grafias desiguais: Goitacá, Guaitacá, Waitaka ou Aitacaz. Inventaram nomes que mudaram com o tempo. Fica, portanto, difícil saber quem era quem, com base apenas nessas denominações. É necessário procurar outros critérios.

Um critério comumente empregado para identificar e diferenciar os povos é a língua: indivíduos que falam o mesmo idioma são considerados como pertencentes a uma mesma pátria. O que é discutível hoje para as modernas nações que construíram um estado - pois brasileiros e portugueses ou americanos e ingleses falam a mesma língua, mas possuem pátrias diferentes - pode ser um critério válido para identificar as nações indígenas. A questão, então, é saber quando a língua falada por duas comunidades é a mesma, quando é diferente e em que consiste essa diferença. Os lingüistas estudaram e classificaram muitas línguas, estabeleceram relações entre elas, identificando seus elementos históricos para, desta forma, determinar o seu grau de parentesco. Quando, apesar das diferenças, se descobre semelhanças entre línguas, elas são colocadas dentro de uma mesma família. As famílias com afinidades são reunidas num tronco comum. Assim, uma família lingüística agrupa línguas diferentes, mas aparentadas, porque considera-se que têm uma origem comum, que são provenientes de um único tronco, como o português, o espanhol, o francês e o italiano, que são originários do latim.

Com esse critério, as línguas indígenas foram classificadas e mapeadas por alguns estudiosos. O alemão Curt Nimuendajú, que viveu mais de 40 anos entre os índios, em 1944 fez o seu “Mapa Etno-histórico”, considerado o maior documento etnográfico brasileiro, e o tcheco Cestmir Loukotka desenhou a última versão do seu em 1968. Nos últimos trinta anos, várias universidades brasileiras formaram linguistas que se dedicaram a pesquisar as formas de falar dos índios. Com base no estado atual desses trabalhos, podemos dizer que o território do Estado do Rio de Janeiro foi habitado por povos que falavam pelo menos 20 idiomas diferentes, um deles não classificado e os demais pertencentes a quatro famílias lingüísticas:

I - A FAMÍLIA TUPI, ou tupi-guarani, compreendia mais de uma centena de línguas, faladas em áreas que pertencem atualmente ao Brasil e a alguns países hispano-americanos. Pelo menos cinco delas eram faladas no Rio de Janeiro pelos seguintes povos:
1.    Tupinambá ou Tamoyo, habitantes das zonas de lagunas e enseadas do litoral, do Cabo Frio até Angra dos Reis;
2.    Temiminó ou Maracajá, localizados na Baía de Guanabara;
3.    Tupinikin ou Margaya no litoral norte fluminense e Espírito Santo;
4.    Ararape ou Arary, no vale do Paraíba do Sul; e
5.    Maromomi ou Miramomim, na antiga Missão de São Barnabé. Segundo Lukotka, trata-se de uma língua tupi. Outros estudiosos, como o padre Serafim Leite, preferem situá-la como um sub-grupo dos índios Guarulho.

II. A FAMÍLIA PURI foi vinculada pelo pesquisador Aryon Rodrigues ao tronco Macro-Jê. Dividida em 23 línguas, espalhava-se também por regiões que atualmente fazem parte dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo. Doze delas eram faladas no Rio de Janeiro. As três primeiras aqui enumeradas desapareceram, mas deixaram alguns registros. As demais, pouco conhecidas e extintas, podem ter pertencido a esta família, segundo suposições de Loukotka, que não apresenta evidências linguísticas para isso:
1.    Puri, Telikong ou Paqui, falada nos vales do Itabapoana e Médio Paraíba e nas serras da Mantiqueira e das Frecheiras, entre os rios Pomba e Muriaé. Estava dividida em três sub-grupos denominados Sabonan, Uambori e Xamixuna.
2.    Coroado, em ramificações da Serra do Mar e nos vales dos rios Paraíba, Pomba e Preto. Subdividida em vários grupos, entre os quais, Maritong, Cobanipaque, Tamprun e Sasaricon.
3.    Coropó, no rio Pomba e na margem sul do Alto Paraíba.
4.    Goitacá, Guaitacá, Waitaka ou Aitacaz, nas planícies e restingas do Norte Fluminense, em áreas próximas ao Cabo de São Tomé, no território entre a Lagoa Feia e a boca do rio Paraíba. Subdividida em quatro grupos: Goitacá-Mopi, Goitacá-Jacoritó, Goitacá-Guassu e Goitacá-Mirim.
5.    Guaru ou Guarulho, falada na serra dos Órgãos e também nas margens dos rios Piabanha, Paraíba e afluentes, incluindo o Muriaé, com as suas ramificações por Minas Gerais e Espírito Santo.
6.    Pitá, na região do rio Bonito.
7.    Xumeto, na Serra da Mantiqueira.
8.    Bacunin, no rio Preto e próximo à atual cidade de Valença.
9.    Bocayú, nos rios Preto e Pomba.
10. Caxiné, na região entre os rios Preto e Paraíba.
11. Sacaru no vale do Médio Paraíba.
12. Paraíba, também no Médio Paraíba.

III. A FAMÍLIA BOTOCUDO, pertencente ao tronco Macro-Jê, é composta de 38 dialetos, quase todos falados em áreas do atual Espírito Santo e Minas Gerais, como os Krenak no rio Doce e os Naknanuk, no Mucuri e São Mateus, destacando-se no Rio de Janeiro o Botocudo, Aimoré ou Batachoa, nos vales do rio Itapaboana, e também na região do rio Macacu.

IV. A FAMÍLIA MAXAKALÍ ou MASHAKALÍ, vinculada por Aryon Rodrigues ao tronco Macro-Jê, abrange 27 línguas, faladas em áreas dos atuais Estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. No Rio de Janeiro, existe referência a apenas uma língua: o Maxacari ou Mashakali, falada durante um tempo na área do rio Carangola, nas atuais fronteiras do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais.

V. LÍNGUA NÃO-CLASSIFICADA
O Goianá, Guaianá, ou Guaianã, cujos falantes estavam concentrados na capitania de São Vicente. Alguns grupos foram localizados na Ilha Grande, em Angra dos Reis e em Parati.
De todos esses idiomas, o Tupinambá era o que mantinha o maior número de falantes, espalhados por extenso território da costa atlântica. Por isso, desde o século XVI, foi aprendido por muitos portugueses e franceses, que tinham interesse econômico em comunicar-se com os índios. Os missionários fizeram, então, uma gramática, explicando como funcionava essa língua, que acabou sendo usada na catequese. Traduziram para ela orações, hinos, catecismos e até peças de teatro.


No momento da chegada dos primeiros europeus, os índios viviam em aldeias ou tabas espalhadas por todo o território do Rio de Janeiro. A aldeia era a maior unidade política das sociedades indígenas. Cada uma delas tinha autonomia e reconhecia como autoridade maior o seu chefe, tuxaua, morubixaba ou cacique.

Os nomes dessas aldeias - os topônimos indígenas - referem-se a acidentes geográficos, denominações de animais, de plantas, de elementos culturais. Às vezes, eram designadas pelo nome do seu próprio chefe. O cosmógrafo francês André Thevet elaborou um mapa da Ilha do Governador onde aparecem cerca de 36 tabas. Era nesta ilha que ficavam as aldeias Paranapucuhy, Pindó-usú, Koruké, Pirayijú, Coranguá. Outro cronista francês, Jean de Léry, num levantamento parcial, encontrou em torno da baía de Guanabara um total de 32 aldeias tupis entre 1550 e 1560. Depois, novas listas, também parciais, foram feitas por missionários e cronistas portugueses, acrescentando outras povoações.

O primeiro nome da lista de Léry é a aldeia Kariók ou Karióg, situada no sopé do morro da Glória, na foz do rio Carioca, o rio sagrado dos Tamoio que tinha, além dessa, uma segunda foz, mais caudalosa, na praia do Flamengo, onde localizava-se outra aldeia, chamada Urusúmirim ou Abruçumirim. O Pão de Açúcar também estava cercado por aldeias indígenas. Três delas situadas ao lado do Morro da Babilônia: Jaboracyá, Eyramiri, Pana-ucú. Duas - Japopim e Ura-uassú-ué - quase em frente ao penedo. Entre o Pão de Açúcar e o Morro da Viúva, ficava a aldeia Okarantim. No caminho para o rio Carioca, a aldeia Tantimã. Na barra da Tijuca, a aldeia Guiraguadú-mirim. A aldeia Maracajá, na ilha do Fundão, era ocupada pelos Temiminó.

A lista continua. Próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas, existia uma aldeia chamada Kariané. Distribuídas pelos morros de Santa Tereza e Santo Antônio, as aldeias de Katiuá, Kiriri, Anaraú e Purumuré. Na região ocupada hoje pelos subúrbios ao longo da Central do Brasil existiam dezenas de aldeias, entre as quais Pavuna, Irajá Catiú, Savigahy, Taly, Uepeé, Itauá, Uery, Acorosó, Margavia, Sarapú, Iraramem, Sapopema.
Do outro lado da baía, em Niterói, existiam também muitas aldeias, algumas das quais foram registradas em documentos históricos, como Icaraí, Itauna, Nurucuné, Arapatué, Urapué, Uraramery, Caranacuy.

Eram centenas e centenas de tabas, ao longo de todo o território, habitadas por um número incalculável de índios. Segundo os relatos da época, a população de cada aldeia tupinambá variava entre 500 a 3000 índios.

Baseado em texto de José Ribamar Bessa Freire e Márcia Fernanda Malheiros,
em “Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro”

domingo, 9 de março de 2014

RITUAL YAÕKWA - O Banquete dos Espíritos


Os ENAWENE NAWE possuem uma população de 545 habitantes que vivem em uma única aldeia, localizada no rio Iquê, tributário do Juruena, na porção sul da terra indígena. A atual aldeia - Halataikiwa - é composta por dezesseis edificações, sendo quinze residências comunais (hakolo) e uma Casa das Flautas (Yaõkwa ehakolone), onde são armazenados os instrumentos e algumas indumentárias rituais. As casas são grandes edificações que abrigam inúmeros grupos familiares.

As residências são ocupadas por diversos grupos familiares que, ligados por relações de parentesco, se associam com outros grupos familiares formando grupos domésticos dentro dos quais se organiza a produção de alimentos. O conjunto de grupos domésticos de uma casa forma o grupo residencial.

Já a Casa do Yaõkwa representa a presença constante dos espíritos no espaço aldeão. Em formato cônico, associado a um morro (numa referência a morada dos Yakaliti, e também da pedra de onde os Enawene Nawe saíram, segundo o mito de origem), essa edificação possui uma coluna central embaixo da qual, o Yakaliti, Kote, guarda os cantos. Quando um visitante chega à aldeia, em geral ele é acomodado em uma das residências. Mas essa situação não ocorre com todos. Relatos apontam a acomodação de visitantes na Casa das Flautas, o que demarcaria uma situação de hostilidade, como aponta Jakubazko: “Enquanto os visitantes bem vindos ou moradores forasteiros são incorporados pela dinâmica social Enawene Nawe - "adotados" por núcleos familiares, instalados no interior das residências, recebendo insígnias de inserção no universo social Enawene Nawe, enfim: domesticados, submetidos à sua ordem social, neutralizando a alteridade; os Cinta Larga, por exemplo, quando estiveram em visita (1981), ficaram alojados no interior da Casa das Flautas a casa dos Yaokwa (clãs), reduto dos entes sobrenaturais”.

O centro da aldeia é caracterizado como um local de sociabilidade masculina (com encontros diários no início da manhã e fim de tarde quando se conversa sobre diversos assuntos de interesse do grupo) e também palco das performances rituais.

O seu modelo de produção é regulado por padrões próprios. O calendário ritual organiza os plantios das espécies agrícolas centrais (mandioca e milho) e secundárias (feijão, batatas, carás, etc); além das expedições de pesca (nas modalidades de barragem, timbó, anzol, arpão) e coleta (mel, castanha do brasil, jenipapo, etc). Sua dinâmica de ocupação espacial lhes permite percorrer periodicamente grande parte do território (tanto o demarcado quanto o não-demarcado) a fim de cumprir o calendário de responsabilidades clânicas envolvido no jogo de reciprocidade com os Yakaliti e Enoli.

A vida ritual dos Enawene Nawe é tão rica e intensa que podemos afirmar que ela move o cotidiano deste povo; durante todo o ano enawene nawe há sempre alguma atividade ritual/sazonal acontecendo: ou se está em performances músico-coreográficas na aldeia, ou se está em expedição a partes alhures de seu território – sendo que mesmo em muitos períodos de expedição, os que ficam na aldeia também realizam performances diariamente.

O ano nativo é dividido em quatro períodos rituais articulados – Yaõkwa, Derohe, Saloma, Kateoko - que regulam as relações sociais, econômicas e com o meio ambiente. Estes ciclos constituem a única maneira de manter a harmonia com os ENOLI e YAKALITI, estes últimos, donos dos recursos naturais e causadores de doenças e mortes quando não são saciados pelas ofertas dos Enawene Nawe. Já, com os Enoli, habitantes do eno (céu), eles guardam relações mais amistosas, ligadas a relação de ancestralidade. Dizem os Enawene Nawe que eles são como seguranças que os acompanham em situações de risco.

A realização dos rituais Yaõkwa e Derohe, associados aos Yakaliti, regula as atividades de plantio e pesca. Os rituais Saloma e Kateoko, associados aos Enoli, regulam as atividades de coleta de mel, pequenas pescarias familiares e pescarias coletivas com timbó em algumas lagoas marginais dos rios. Estas atividades são entendidas por Rodgers como elementos fundamentais para a vida cerimonial deste grupo: “as expedições de pesca e o cultivo do milho e da mandioca compõem as atividades imprescindíveis para a mobilidade e funcionamento da máquina ritual enawene nawe”.

Como aponta Silva (1998) “o calendário cerimonial estabelece as condições sociais (e cósmicas) da produção”. Assim, o seu modelo de produção está salvaguardado pelas práticas rituais que o regula. Conforme aponta Santos: “O extenso e complexo calendário ritual enawene é organizado em função de suas cerimônias devotadas a estas e outras subjetividades, em que o peixe aparece como item catalisador. Balizador das pescas de caráter coletivo, seu calendário é formalizado nos rituais”.

Mesmo diante de um novo contexto pautado pela vida em um território demarcado, os Enawene Nawe demonstram preferir manter o seu padrão de ocupação seguindo a lógica da ocupação imemorial, que abrange uma área muito maior do que os 742.088 hectares homologados, uma situação que, ás vezes, culmina em conflitos por uso de recursos com outros agentes regionais, tais como proprietários rurais e outras etnias Isso porque eles não adotam uma visão compartimentalizada ou meramente utilitária do território. Este está entrelaçado com sua concepção de vida (ritual, mitos, religiosidade, distribuição geográfica dos recursos, etc). Sua cultura é intrinsecamente associada às particularidades da hidrografia e do ciclo ecológico. Por isso, qualquer alteração no regime das águas ou na ictiofauna pode trazer conseqüências incomensuráveis ao desenvolvimento ritual, fato reconhecido, pelo Complemento do Componente Indígena: “A médio e longo prazo, pelo efeito cumulativo do conjunto das PCHs, esses impactos tendem a aumentar, causando alterações na qualidade da água – também pelo sucessivo turbinamento -, na dinâmica fluvial do rio, influenciando diretamente os organismos dos ecossistemas aquáticos, principalmente os peixes que são muito sensíveis Às modificações do meio em que vivem, constituindo o grupo animal mais evoluído que depende exclusivamente da água”.

O oferecimento de bebidas e peixes, conforme afirma Santos, é considerado a única forma de apaziguar a ira dos Yakaliti: “O peixe,vale dizer, é o artigo mais nobre da culinária enawene, figurando como símbolo de status, ainda que fugaz (até seu consumo), entre as famílias. Sua importância se dá, também, na relação do grupo com os seres pantagruélicos, os iakayreti, detentores do poder de vida e morte, sensivelmente aplacados com a oferta e consumo de peixe”.

Foi justamente por compreender a importância desse processo de harmonização dos espíritos que a antropóloga Virginia Valadão não teve dúvidas ao escolher o nome de – O Banquete dos Espírito – para o documentário realizado por ela, sobre o Yaõkwa, o mais longo ritual dos Enawene Nawe, com aproximadamente sete meses de duração.

Nas palavras de Santos: “Sempre preocupados em produzir e oferecer comida aos iakayreti, os Enawene-Nawe organizam, exclusivamente para eles, fartos banquetes, onde são vertidas bebidas ao chão, que, segundo os Enawene-Nawe, seguem diretamente para suas imensas panelas de pedra já bem posicionadas sob a terra”. A maior parte dos recursos (naturais e financeiros) acessados pelo grupo são envolvidos pela ótica da interdependência entre homens e espíritos.

O peixe tem função central dentro deste banquete. Ele é a moeda de troca, oferta apaziguadora da fúria e da belicosidade dos Yakaliti. É justamente para obtenção do pescado – para subsistência, ou fins cerimoniais - que eles realizam grandes expedições de pesca. De acordo com Santos: “Considerado como o mais nobre e desejado alimento, o peixe é usado como símbolo maior do pagamento do – preço da noiva e da conquista sexual, como retribuição aos serviços de cura xamânica e aos fitoterápicos administrados aos convalescentes e adolescentes – iniciados. Ele é, sobretudo, o mais importante tributo destinado aos deuses e espíritos: aos enore-nawe pela proteção, e aos iakayreti para que não façam mal nem causem a morte das pessoas”

O Yaõkwa é o ritual mais conhecido, e também o mais extenso. A cada dois anos os nove clãs se revezam no papel de anfitriões para realização do cerimonial. Esse rodízio visa apaziguar a relação com os espíritos Yakaliti, como aponta Rodgers: “A música dedicada ao ritual yãkwa, o qual ocupa sete meses anuais, é dos espíritos subterrâneos, dos yakayriti: dos yaka nawe – em linguagem ritual = povo flechador –, e eles não sobem à superfície para brincar em serviço... Há mesmo um excesso dessa presença, essa presença é acachapantemente afetante: o que se pode fazer é entrar vertiginosamente em sua dança para ritmicamente conviver com a inexorabilidade faminta (literalmente!) de suas volições, de seu querer interminável”.

Cada clã está relacionado a um conjunto de espíritos e flautas aos quais os Enawene Nawe devem ofertar peixe, sal e bebidas. O descumprimento destas obrigações implica na represália violenta da legião de Yakaliti, como aponta Santos: “Os iakayreti, espíritos habitantes da paisagem e ‘senhores dos peixe’ são seres que vivem na sua dependência, e que, se não forem fartamente alimentados, ceifarão suas vidas”. Sendo assim, os Enawene Nawe se revezam bienalmente num ciclo de dez anos, que ao seu final deve ter contemplado todo o conjunto de espíritos. O revezamento para realização do Yaõkwa está diretamente relacionado com a organização clânica que abrange homens, espíritos, instrumentos musicais e território¸ como aponta Rodgers: “Entre os Enawene Nawe, música e território, estética e ecologia, estão estreitamente associados através de uma relação ritualizada com a ancestralidade. Para esse povo indígena, a topologia territorial – amplamente reconhecida e detalhadamente nomeada pela população em geral – está supreendentemente associada de forma direta a uma topologia musical da casa de flautas na aldeia (hayti) – algo bastante incomum nesse contexto sociocultural. O elo vital e motor dessa relação estreita é o ritual: toda a vida enawene nawe depende de uma vigília ritual ininterrupta a qual refaz continuamente uma espécie de ciência dos caminhos (awiti), os quais, entre outras coisas, ligam o território à casa de flautas através da noção de pertencimento clânico. Os caminhos atuam em várias dimensões cognitivas como vetores norteadores de toda reinvenção vital e cotidiana de sua sociocosmologia; a ciência de como percorrer, extrair, produzir, mas também desfazer e cuidar desses caminhos e seus ecossistemas (...) Essa ciência dos caminhos compõe uma estética no sentido mais amplo do termo: trata-se de uma ecologia estética, uma ecologia músico-ritual”.

A cada fase da vida o indivíduo é dotado de obrigações e responsabilidades que são imprescindíveis na ocupação de papéis sociais e da transmissão interna dos conhecimentos. O prestígio do indivíduo pode estar também associado ao status sazonal proporcionado à determinados indivíduos de acordo com a posição ocupada dentro de cada ciclo ritual. A cada ciclo, determinados indivíduos carregam certas responsabilidades que incluem, em geral, o direcionamento dos cerimoniais. De acordo com Mendes: “Dizem os Enawene-Nawe que o honerekayti é alguém que se encarrega de transmitir a ‘palavra bonita’ (aware xinakahã) aos pescadores. Este seu papel de conselheiro é exercido já na aldeia, antes mesmo da saída para as pescarias. O honerekayti é, acima de tudo, um mestre de cerimônias, designado especialmente para coordenar os ritos das pescas nos rituais de yãkwa e lerohi. (...) Em todas as atividades que mobilizam os rituais de salumã/kateokõ, aparecem dois tipos de personagens, ikinio e wakaniare(lo). Ikinio são, de um lado, os homens pertencentes a dois ou mais grupos clânicos, e de outro, as esposas dos harekare, mulheres de diferentes clãs; wakaniare(lo) são todos os demais da aldeia, mulheres e homens a partir de cerca de dez anos de idade”.

Ainda, as especialidades figuram como elemento de extrema importância dentro da organização social dos Enawene Nawe. Existem vários tipos de especialistas:
  • BARATALI/BARATALO (herbalistas) – conhece, manipula e prescreve plantas medicinais.

  • SOTALITI/SOTALOTI (xamãs) – cura doenças, retira substâncias deletérias do corpo, acessa o patamar superior, contacta e invoca as divindades celestes, recupera e repõe a alma (hesekonase) retida pelas árvores e a planta de mandioca, executa tapagem contra a fuga da alma usando yakoti.

  • HOWENATALI/HOWENATALO (benzedores) – sopra objetos, lugares e pessoas quando estas estão submetidas às regras de kadena; sopra as manivas de mandioca para o plantio, protege contra o ataque dos atahare-wayate e (do espírito) da planta de mandioca (atolo), lança males, doenças e morte às pessoas.

  • EHOLALALI/EHOLALALO (envenenadores ou feiticeiros) – fabrica e manipula substâncias venenosas, detém poderes e forças do mal, promove doeças e morte das pessoas.

  • SOTAKATALI (mestre de cantos) – detém os textos e partituras musicais, repassa a memória coletiva ao grupo, canta diante do doente grave para reter sua alma.

O sotakatali é a especialidade com maior prestígio e também uma das mais difíceis de exercer, como descreve Rodgers: “Os sotakatare são como guias do povo enawene nawe por entre esses caminhos, e é a sua sabedoria, a sua ciência, que imprime singularidade ao modo de vida enawene nawe”. Além da extrema dedicação despendida para aprendizado e memorização dos cantos, o sotakatali tem que estar atendo a uma série de regras comportamentais que incluem a parcimônia, a concentração, a evitação do sono, etc. Os Enawene Nawe são o povo da música e, por isso, não é mero acaso que os sotakatali sejam as figuras de destaque dentro desse cenário, conforme indica Jakubazko: “Os Sotakatare, por sua vez, consistem numa categoria de agentes sociais que, assim como os outros, dominam especialidades de vital importância para a ordem social Enawene, no entanto são considerados como os grandes pensadores, filósofos dessa sociedade, sendo imensa a admiração, prestígio e autoridade a eles conferidos”.

O seu ofício tem uma função primordial na garantia da harmonia entre homens e espíritos e, consequentemente, na garantia da existência de seu povo. Rodgers apresenta uma clara definição dessa relação (in)tensa: “Um povo, cujas eternas idas e vindas que são, na verdade, o único caminho possível para o conhecimento, o aprendizado profundo – e portanto para se preservarem da morte através da sábia administração do ritual –, que pressupõem o adensamento das distâncias relativas entre um ponto do território e sua aldeia, entre uma casa de um determinado conjunto de yakayriti e a casa de flautas, entre um motivo musical (ritmo, melodia e texto) e outro, entre um determinado conceito e outro, o único meio, portanto, para se jogar o jogo político das temporalidades sobrepostas”.

A representação simbólica do líder para os Enawene Nawe está condensada na figura de WADALI, antepassado que guiou o grupo na saída da pedra. A noção de chefia, em sua associação com o ancestral mítico, abrange fala calma, capacidade de comunicação, de contornar situações conflituosas e manter as boas relações e convivência na aldeia. Em contraposição ao Wadali, seu irmão WAYALIOKO é o personagem humanizador da mitologia. Wayalioko “dificulta” a vida dos Enawene Nawe ao descumprir regras sociais, mas, em contraposição, por meio de suas peripécias, ensina a necessidade da força para vencer a batalha da vida.

Segundo sua visão, “antigamente os Enawene moravam dentro da pedra. Um dia um raio atingiu a pedra e fez um buraquinho. Um passarinho acordou e saiu. Lá fora ele viu as flores, comeu peixe-agulha, comeu lobó, comeu traíra, olhou os rios, as árvores, e voltou para dentro da pedra. Na volta, o passarinho passou bem apertado pelo buraco dentro da pedra ficou pensativo e calado. Vendo o passarinho assim, o chefe Wadare falou:
- O que houve titio, você está doente?
- Não, sobrinho, eu sai por aquele buraco eu vi lá fora, é bonito! Eu peguei lobó... Eu vi lá fora, é bonito! Wadare, meu sobrinho, eu vi tudo lá fora, é bonito! Venham comigo, vamos sair lá fora, é bonito!
Wadare chamou o picapau de cabeça vermelha e disse:
- Aumente este buraco para a gente sair
O picapau foi batendo, toc, toc... e abriu um buraco do tamanho dessa porta as pessoas foram saindo da pedra e cada povo tomou um rumo”.

Esta pedra está localizada nas cabeceiras do rio Papagaio (afluente do Juruena), num local que é reivindicado pelos Paresi como área indígena. Após a saída da pedra, guiados pelo ancestral mítico, Wadali, os Enawene Nawe passam por um período de deslocamento ao encontro do local que seria considerado como seu território por excelência, que se estende até a foz do Tonowina (rio Juina-Mirim).

Existem também laços de origem cosmológica com o alto rio Juruena. Foi no salto do Juruena que o tabu das flautas às mulheres foi rompido quando Doliro, filha do Yakaliti Kañawali, sobreviveu à condenação lhe imputada pelo fato de ela ter visto as flautas sagradas do Yaõkwa, após ter se banhado com uma erva – mekali – com efeitos purificadores. O caldo desta erva caiu nas águas do Juruena formando a espuma que, até os dias de hoje, corre abaixo do salto. Esse mito está presente em cantos do Yaõkwa e em versos de cura dos howenerekati: “Hiyeyalo Yaõkwa, hiyeyalo Yaõkwa (Você viu o Yaõkwa). Maiha yako nowayowa, maiha yako nowayowa (Não, eu não o vi)”.

No ritual Saloma, a referência ao salto do Juruena, considerado território e local da aldeia dos peixes. Já no Yaõkwa, a referência à região de implantação do Complexo Juruena aparece na seguinte canção que fala sobre a aldeia dos peixes, onde eles realizavam seus rituais. Nessa história, os peixes convidam uma mulher muito bonita, chamada Ayadero, para dançar no pátio de sua aldeia: “Kohase nawe awerohanaita (Os peixes estão dançando). Halakolo Ayadero ekakwa. (De braços dados com Ayadero)”.

Segundo Santos & Santos, antigamente, para os Enawene Nawe, os peixes eram dotados de características antropocêntricas que foram perdidas, ao longo do tempo, em decorrência do descumprimento de determinadas regras sociais: “Segundo os Enawene-Nawe, no começo dos tempos os peixes dominavam a língua dos humanos, a arte do canto, da composição, da instrumentação e da dança; tinham a habilidade do benzedor, hoenaytare, isto é, de soprar e proferir textos mágicos; obedeciam a certas regras de parentesco e de hierarquia, viviam em aldeias e praticavam rituais, tais como os humanos. A condição social e antropocêntrica primeira dos peixes definia, de antemão, a natureza e o grau de interação entre eles e as demais espécies e criaturas do universo. Tais relações se apoiavam em estatutos de eqüidade entre sujeitos com semelhantes posições sociais e compromissos jurídicos. Fatos marcantes, porém, envolvendo assassinato e antropofagia, desestabilizaram a condição eqüiestatutária entre peixes e humanos, fazendo com que os primeiros fossem arremessados para o limbo da sociabilidade, sem que isto tenha acarretado a perda ou a laminação integral de sua condição antropocêntrica”.

Dessa maneira, os cantos prenunciam o caráter transitório da existência, posto que este pode ser rompido, a qualquer momento, diante do descumprimento das obrigações sociais, tal como ocorreu com os peixes ao perderem o seu ancestral, de acordo com o mito relatado por Santos & Santos: “Depois de ter devorado alguns indivíduos da comunidade dos gaviões, o peixe Dokose, líder e avô de todos os peixes, resolveu também vitimar um garoto enawene. Em resposta, os gaviões e os próprios Enawene decidiram arquitetar sua morte, conseguindo, com a força e astúcia da harpia, arremessá-lo para fora d’água. Mas, com a morte de Dokose, os peixes perderam definitivamente sua memória histórica, esqueceram para sempre o que haviam aprendido: a música, a arte da cura, o papel sócio-político. Outra perda considerável foi sua capacidade de comunicação com os humanas e, com ela, o comprometimento das qualidades antropocêntricas. Com isso, os peixes foram relegados a uam condição quase negativa de sociabilidade com os humanos”.

Observa-se que as relações mitológicas e produtivas entre os Enawene Nawe e o rio Juruena, ultrapassam os limites da área demarcado. Cabe aqui um comentário a respeito da noção que os Enawene Nawe possuem sobre território. Para eles, a paisagem não é mera invenção da natureza e de sucessivas eras geológicas do planeta, como afirma Rodgers: “Trata-se, portanto, de uma ecologia ancorada em fortes referências territoriais e musicais, inextricavelmente imbricada em todos os aspectos da efervescente vida social enawene nawe”.

A paisagem, enquanto morada dos espíritos, foi também construídas por estes. A geografia corresponde a uma noção de ocupação imemorial dos Yakaliti – retomada através dos cantos e sopros de cura - que transitam num intenso vai-e-vem ao longo do território, como aponta Santos & Santos: “Os iakayreti deslocam-se pelas águas dos rios e pelas profundezas da terra. Sua moradia são os acidentes e outros locais da paisagem natural: ilhas, morros, cachoeiras, lagoas, brejos e corredeiras e barrancas de rio”. Sendo estes ocupantes incontestáveis da região, são eles também os donos dos recursos naturais e cabe, aos Enawene Nawe, retribuir com fartura a concessão destes para a utilização dos recursos.
Por tudo isso, podemos afirmar que, onde um de nós vê um morro, um Enawene Nawe pode ver um majestoso conjunto habitacional da legião de Yakaliti; onde um de nós vê uma bela cachoeira – ou bom ponto para se instalar uma hidrelétrica -, um Enawene Nawe vê o pátio da aldeia dos peixes onde eles dançam e celebram seus próprios rituais. Estas relações estabelecidas entre os Enawene Nawe e o alto rio Juruena são desconsideradas pelos estudos antropológicos do Complexo Juruena.

Baseado no texto de Juliana de Almeida

A RELIGIÃO, OS DEUSES E OS MITOS

Para os índios, são os mitos que contêm a verdadeira história do mundo. Os mitos não são fantasia ou ficção, e sim a explicação do universo: a origem do cosmos, da humanidade, da sexualidade, dos astros, da caça, da agricultura, das mulheres, da arte e da música, de tudo que é possível conceber. Cerimônias, festas, rezas, cantos, proibições, regras de comportamento – tudo aquilo que faz parte do que costumamos chamar de religião – têm como chão um corpo mítico, inerente ao cotidiano, sem nítida distinção entre o sagrado e o profano, familiar para todos, embora os pajés detenham um conhecimento mais profundo e a prerrogativa das viagens místicas.

Na festa de cura e invocação de abundância na colheita e no plantio, como o HOEIETÊ dos Suruí-Paiter, o Lua, um homem, incorpora-se ao pajé, cantando e contando quem é, espetáculo para a comunidade inteira. Antes de existir o Lua, ele visitava sua irmã, que morava sozinha numa pequena oca, em reclusão de vários meses pela primeira menstruação, e namoravam em segredo, sem que ela soubesse quem era ele.

Aconselhada pela mãe, enquanto ele dormia, a moça pintou-o de jenipapo, tinta negra indelével. Desvendou-se a identidade do moço na manhã seguinte, quando a mãe o viu entre os homens da aldeia. Com a vergonha pelo incesto, os dois jovens subiram aos céus e transformaram-se na Lua, um astro assim criado no cosmos: as manchas escuras são o jenipapo, marca da transgressão e da paixão.

Nos povos de Rondônia, como em inúmeros outros, os criadores do universo costumam ser um par de companheiros ou irmãos. Um deles é mais folgado e preguiçoso, sempre na rede balançando; o outro, arteiro e desastrado, inventa e prega peças, mas traz novidades para os seres humanos. Assim é entre os Aruá, com ANDAROB, menos inteligente, o de cabeça vermelha, e PARICOT, assanhado. Não havia mulheres, embora tivessem uma irmã (mistério!). Para casar, Paricot copulou com o morro de cupim e, meses depois, do fundo da terra, nasceu a humanidade, que ele soltou abrindo um buraco nas rochas. Paricot inventou a agricultura, trouxe a água, o fogo, com seu irmão sempre atrapalhando, e até morreram queimados os dois, para depois renascer. Paricot ensinou uma só língua para todos os povos; Andarob fez confusão, fez cada grupo saber uma língua diferente. Juntos criaram o adultério, transformaram gente em animais, para brincar e para ter caça, inundaram a terra, e depois consertaram as modas esquisitas que desencadearam.

Nos Macurap, nos Jabuti, nos Tupari, nos Arikapu ou Ajuru, sempre há esse jogo de opostos; não são o bem e o mal, mas se trata de uma ordem e uma brincadeira criativas. Vale a pena conhecer as suas travessuras e desastres, e saber como chegam a ser punidos pelos homens por exagerar.

Lembremos que os criadores ou demiurgos, em todos esses povos, são sempre homens, nunca mulheres. Nos Suruí, as primeiras mulheres provêm de um homem e uma cabaça; esse homem já tinha mãe, personagem acessória, não aparecendo como ser primordial.
Em muitos povos, antigamente, a morte não existia. As pessoas morriam e retornavam. O grande mal é explicado em cada lugar de um jeito.

Os Macurap contam de um homem que morreu, foi enterrado na própria oca, como era costume, mas disse à mãe que não chorasse, pois voltaria, como de fato fez, na forma de uma criança que ia crescendo aos poucos, com as batatas com que a mãe o alimentava. Quando já estava quase na forma anterior adulta, sua mãe foi à roça, e ele ficou sozinho com uma velha gulosa e exigente que não cessava de lhe pedir o alimento. Ele deu enquanto tinha, mas a batata acabou. A velha ranzinza amaldiçoou-o: "Você não tinha morrido? Por que voltou? Fique lá embaixo!" Ofendido, ele se foi para o reino dos mortos. A mãe, desesperada, seguiu-o, mas teve que morrer, mordida por um escorpião, para ficar junto dele.

Desde então os mortos se afastaram para um domínio longínquo, e têm que ser chamados pelos pajés para serem homenageados. Cada morte, hoje em dia, exige complexos rituais e dedicação dos pajés, com muita dor e tristeza de todos.

Os Tupari contam que antigamente os mortos voltavam. Um homem, Patopkiá, havia proibido as irmãs de chorarem quando morresse. Mas quando elas o viram morto, quiseram aprender a chorar, porque só sabiam assobiar, e pediram à velha Ubaiped que lhes ensinasse. A velha ensinou um canto e um choro, só que no caminho elas sempre se esqueciam.

Tropeçavam repetidas vezes, e esqueciam. Até que a velha resolveu acompanhá-las, e quando encontraram Patopkiá saindo da sepultura, foi uma choradeira de fazer medo. Ele ficou furioso, atirou pedras na velha, porque não agüentava mais a barulheira dos lamúrios, e pendurou-a no meio do rio. Desde então existe a morte, por causa dessa velha.

Nos Tupari e nos Macurap é uma cobra ou um arco-íris a ponte que leva as almas dos mortos para a esfera imaterial, cruzando um grande rio. Nos Tupari, os mortos perdem a memória, ficam como criancinhas, vão para a casa de Patopkiá, o chefe dos mortos. Antes, porém, têm que passar por duas cobras e dois jacarés estirados, e enfrentam grandes perigos. Nos Macurap, a cobra-ponte é um arco-íris, que vem buscar de mansinho os espíritos dos mortos para levá-los às alturas. Não é simples o caminho, as almas sofrem demais até chegar ao seu destino.

Faz parte da espiritualidade dos índios um leque amplo de seres fantasmagóricos, assustadores, que as pessoas temem encontrar na floresta, sobretudo quando estão sozinhas, ou mesmo quando se afastam no escuro perto das ocas, para pequenas saídas noturnas biológicas ou para namoros camuflados. Nos Macurap, o TXOPOKOD, uma aparição, vive mudando de personagem. Um deles tem o papel de amante proibido; usando apenas a mão, faz o clitóris de uma mulher casada crescer de prazer até tornar-se descomunal. Nos Tupari, é o TARUPÁ o ser maléfico, tanto assim que esse é o nome atribuído ao colonizador não-índio, que trouxe doenças e invenções tecnológicas. Um dos Tarupás toma a aparência da avó de uma criança, oferecendo de carregá-la no colo enquanto a mãe dança, e a rouba. Há uma mulher Tarupá coberta de pelos que quer namorar o caçador. O WAINKÔ dos Ajuru também parece humano e finge ser a melhor amiga de uma menina para levá-la para uma velha malvada. Nos Suruí ou nos Gavião e Zoró, o GERBAI e o ZEREBÂI podem parecer gente inimiga, ou animais estranhos, que é preciso evitar, pois querem matar. É comum o ZAGAPUY dos Ikolen engravidar moças solteiras, que se apaixonam por eles, quando assumem contornos de sedutores.

Espectros capazes de destruir, a maioria desses entes são também pouco inteligentes e podem ser enganados por índios espertos. Dois amigos Tupari convencem um Tarupá que estão esmagando os próprios testículos para comê-los como ovos ou coquinhos de tucumã. O Tarupá guloso imita-os, espoca suas bolas... e morre, doido de dor. Suas cinzas têm o poder de tornar as pessoas invisíveis. (Há um episódio parecido em Macunaíma, de Mário de Andrade). Outro Tarupá é persuadido por dois amigos Tupari, que para ter um cabelo bonito como o deles deve submeter-se a um corte com um instrumento afiado, e os dois malandros o decepam. Enganar espíritos é uma arte que vale a pena aprender.

Chamam a atenção, nas aldeias tradicionais, como nas Suruí, as inúmeras reclusões a que devem obedecer as meninas na menarca, as mulheres menstruadas, as parturientes, as pessoas de luto, os pais de nenês pequenos e os que mataram. O isolamento chega a levar meses, com restrições alimentares. Se as regras são desobedecidas, acredita-se que podem advir males para todos ou doenças para os familiares.

Muitas mortes são atribuídas à quebra de tabus, sobretudo quanto à comida. O sangue representa um perigo, como o dos recém-nascidos e suas mães. Há em toda rotina cotidiana um clima sobrenatural, a ameaça permanente de quebrar uma ordem divina ou provocar visagens. As palavras podem desencadear processos indesejáveis, provenientes do invisível. Pronunciar o nome de certos parentes, por exemplo, nos Suruí, os filhos dizerem o dos pais, ou o dos mortos, traz conseqüências funestas, como se estivessem sendo invocadas aparições. Há pios ou ruídos, trovões ou luzes, que anunciam tragédias. O cenário mais calmo, da floresta ou da aldeia, é repleto de transformações virtuais, que fazem a paz desmoronar.

Para assegurar a fartura e a tranqüilidade, a saúde, é preciso providenciar numerosas festas com bebida e comida, unindo a comunidade, trazendo os deuses e honrando-os.

Festas como nos Suruí, o MAPIMAÍ, nos Ikolen, a dos céus GARPII, a do fogo ou dos jacarés para os GOIANEI das águas, e nos povos do Rio Guaporé e Rio Branco (Tupari, Macurap, Jabuti, Ajuru e outros), as reuniões de pajés, com longo preparo de alucinógenos, fazem parte da esfera da produção e do bem-estar, ponte entre os mortais e os eternos, da qual o efêmero arco-íris é uma bela imagem.

É temerário pincelar em poucas páginas o universo místico dos índios, que só de relance conseguimos adivinhar. Não foram sequer aflorados povos muito estudados, nem rituais famosos como o de morte e criação, o Kwarup do Alto Xingu, ou o drama da feitiçaria, com sua intricada relação como mecanismos do poder político, ou as cerimônias e festas proibidas às mulheres por razões religiosas, infundindo temor e reverência em certas ocasiões. Que leitores, índios e editores, invoquem os deuses das matas e campos brasileiros, abram-lhes o infinito espaço que é deles, preparem festas grandiosas e os convidem para beber e comer, conclamando-os a descer às feiras literárias e metamorfosear-se com seus dons mágicos em livros e bibliotecas, faldas e escritas

Texto de Betty Mindlin

ESPIRITUALIDADE INDÍGENA

Quando as pessoas morrem, dizem os Suruí-Paiter, as almas têm que percorrer um caminho largo e longo, o MARAMEIPETER, aberto na floresta dos céus. É uma viagem terrível, e os pajés e parentes dos mortos choram e rezam na terra para que os deuses tornem possível a travessia. Os pajés acompanham a alma, podem ir ao além e voltar para os vivos.

A morte antigamente não existia. A lua também não. Os mitos que explicam a vida e regem o cotidiano ainda são encontrados e contados nas aldeias. Há cerca de 170 línguas diferentes, faladas por 200 povos indígenas no país. As religiões seguidas pelos índios no Brasil não foram esquecidas, embora sejam poucos os jovens que sigam os passos dos seus pais e avós.

Os pajés costumam ter reuniões em lugares ignotos e invisíveis, entendem-se e conversam uns com os outros mesmo quando falam línguas distintas e pertencem a diferentes povos — assim nos explicam os Gavião-Ikolen de Rondônia. Com seu poder de invocar quem rege o universo, constituem uma só humanidade. Nós, que não temos essa capacidade, enfrentamos a barreira das 170 línguas indígenas brasileiras, e pouco sabemos em que acreditam os mais de duzentos povos do país. Eles convivem conosco, e ainda agora a grande maioria mantém sistemas de diálogo com deuses próprios e com o além.

Como cada povo tem uma explicação do mundo, que julga ser a verdadeira em contraposição à dos outros, não podemos falar em crenças ou religião dos índios como um todo. É preciso tomar alguns casos, para procurar compreendê-los melhor, e para estimular a pesquisa e a curiosidade sobre a imensa diversidade espiritual indígena.

É verdade que há características semelhantes e genéricas. As tradições dos índios brasileiros inserem-se numa vasta vertente religiosa, a do xamanismo, com a qual autores como Mircea Eliade ou Alfred Métraux, por exemplo, tanto nos fazem simpatizar. Famosos na Ásia, passando por todos os continentes, sabemos da existência de xamãs ou pajés, capazes de voar aos céus, descer às profundezas subterrâneas ou das águas, transformar-se em onças e outros animais, atingir o êxtase e o transcendente, casar-se com espíritos, expressar-se em línguas incompreensíveis para o comum dos mortais. Submetem-se a provas e rituais como prolongadas reclusões, suportam temperaturas excessivas, a do fogo ou a do gelo (alguns podem dormir na neve e derretê-la com seu calor interno), vêem as almas dos mortos, causam e curam doenças e males. Recorrem a alucinógenos ou tabaco e utilizam instrumentos como bastões e maracás dotados de poderes especiais, via para o sagrado, para convocar os deuses e chamá-los à terra, ou para o abandono transitório do corpo pela alma, no sonho ou na vigília, subindo para esferas imateriais.

A matéria-prima para as observações que se seguem são as pesquisas de campo da autora, em cerca de quinze povos indígenas de Rondônia e Mato Grosso, realizadas desde 1979. A bibliografia disponível, leituras e fontes secundárias, contribuem para o conteúdo (como o livro de Franz Caspar, Die Tupari, um estudo feito na região há mais de meio século). Mas o fundamental é a experiência vivida, contada e registrada em suas línguas por uns quarenta pajés, que se tornaram amigos próximos e colaboradores. Quase todos são homens, embora também algumas narradoras tenham transmitido conhecimentos preciosos.

Os povos em foco nessas linhas têm contato com a sociedade brasileira há poucas décadas — cerca de trinta anos os Suruí-Paiter, sessenta os Gavião-Ikolen, assim como os Arara-Karo ou os Tupari, ou há uns setenta, os Macurap. Apenas os Suruí, e há poucos anos, não estão praticando os rituais de cura, embora fossem até 1995 os mais avessos ao cristianismo. Mas mesmo entre eles, como em todos os outros, as tradições religiosas continuam acesas. Deve-se reconhecer, porém, que estão agora mescladas a novas influências, como do fundamentalismo protestante e de informações vindas da cidade, e que praticamente não surgem novos pajés ou jovens que pensem em seguir o caminho dos pais e avós.

Os pajés Gavião-Ikolen de Rondônia aprendem, ao longo do seu ofício, a transformar-se em animais. E sob a forma de papagaios, periquitos, araras que voam em busca das almas dos doentes, roubadas por entes do mato, como os ZAGAPUY ou os temíveis ZEREBÃI, que as camuflam em sua morada, em cestos, pedaços de algodão, esconderijos vários. Dialogando ou ameaçando os predadores, os pajés trazem de volta as almas ao corpo enfermo, curando-o. Pajés também se metamorfoseiam em animais ferozes: gostam de ser onças, lontras, porcos-do-mato e outros. E quando muito experientes, divertem-se assustando um jovem que desejam ter como aprendiz: ameaçam-no, tomando a aparência de jaguar, revoam em torno dele, falam, invisíveis.
É quando "acontece", conta quem se iniciou, um desmaio, vozes esquisitas na floresta, febres estranhas ao voltar. É o chamado para o difícil caminho de se tornar pajé, a revelação. O aprendiz não pode ter medo da onça que encontra (como saber se é o pajé mais velho ou um animal selvagem?); deve fitá-la nos olhos. Com o tempo, também conseguirá ser um jaguar. Há casos de pajés que flecharam a si próprios, quando incautos andavam em forma de onça... e acordaram no dia seguinte com a boca entranhada de pelos. Cada pajé mais velho cobiça alguns aprendizes, perpetuando a sua sábia linhagem.

Em 1981 os Gavião-Ikolen haviam abandonado os rituais de pajelança, pois eram dominados pelos missionários da seita “Novas Tribos do Brasil”. Foi então que o pajé Alamãa desapareceu misteriosamente da Casa do Índio em Porto Velho, e nem a polícia nem os parentes descobriram qualquer pista sua. Meses depois, reapareceu na aldeia, a centenas de quilômetros, em transe permanente. Sua chegada foi precedida por animais tidos como zerebãi, espíritos assustadores. Alamãa contou que aprendera com eles a arte de transformar-se em lontra, ave, onça, e sobreviver como animal, e que voando, nadando ou caçando viera pela selva reencontrar os seus. Com ele, recomeçaram a pajelança e os rituais de cura; índios e FUNAI expulsaram os missionários, a luta pela terra ganhou força vitoriosa contra os numerosos invasores. Anos depois, em 1992, Alamãa sumiu outra vez – agora em desespero pela ação ilegal dos madeireiros, ao ver tombar a floresta milenar, morada dos deuses. Na sua última fuga, exibiu tal vigor que cinco fortes guerreiros jovens não conseguiram retê-lo; desapareceu nas brenhas. Ainda hoje há ocasionais boatos de que vive em terras dos índios Zoró, mas outros acreditam que se juntou aos Goianei, Espíritos das águas, e nunca mais voltará na forma anterior.

Quando as pessoas morrem, dizem os Suruí-Paiter, as almas têm que percorrer um caminho largo e longo, o Marameipeter. Quem tem doenças graves também faz a viagem, vê os seres queridos que já se foram e, se sarar, retorna à vida normal. Há, assim, muitas testemunhas do que se passa nos céus.

Grandes perigos acometem os viajantes na estrada misteriosa. São descomunais para os covardes, os transgressores, os criminosos, como quem cometeu incesto ou matou parentes, mas se tornam diminutos para os bravos, os corajosos, de conduta correta, que fizeram muitas roças e sustentaram grandes famílias.

Os homens deparam-se mais adiante com uma mulher gigante, LAPOTI, com a vagina semelhante a uma caverna para engolir o viajante. Para o homem valente, a boca e a vagina se suavizam e diminuem, como em uma mulher normal, com quem ele copula, seguindo sossegado. Para as mulheres, há um homem com pênis gigantesco, dilacerando as que foram malcomportadas; ou apenas com uma tirinha de nada, suportável, para as bem-sucedidas em vida.

Há muitos outros pavores. Lembremos o GRANDE FOGO, queimando quem merece, ou pequena chama para os virtuosos; os ESPINHOS DESCOMUNAIS; as PEDRAS QUE ESMAGAM; os próprios parentes mortos que retêm quem chega, por amor e saudade talvez, mas o extingue; a LANÇA QUE FURA AS ALMAS; a minhoca imensa MOTINGNI, mordendo os covardes ou desfazendo-se em mil fragmentos para os fortes; a ONÇA DEVORADORA, e muitos outros. Quando vencem, as almas bravias chegam a uma morada paradisíaca, onde vivem com deuses e com os parentes que foram capazes de afrontar os monstros.
Quando os pajés relatam como se iniciaram, delineia-se um padrão. Há um elemento de hereditariedade, predominando pajés em algumas famílias. Dentro do parentesco, o acaso ou revelação: sonhos ou visões súbitas, e a proximidade com a morte, por doença grave ou, com freqüência, por mordida de cobra. Os deuses causam as doenças e, pela intervenção dos pajés, fazem-nas desaparecer.

É sempre um susto para quem é atingido: vai ao país das almas, enfrenta monstros e grandes perigos, e encontra os deuses, que anunciam as reclusões e duras provas a que deve submeter-se, como a travessia do Caminho das Almas. Os jovens, ou mesmo seus pais, sempre desejam fugir do chamado, que aterroriza, exige coragem sobre-humana e regras rígidas de comportamento, como longos períodos de abstinência sexual — mas não há como recuar diante da vocação imposta por desígnios divinos.

Os pajés mais velhos acompanham os aprendizes, ensinam-lhes cantos, que eles aprendem também diretamente dos próprios deuses. Certa ocasião, recluso em sua pequena oca, atendido apenas por crianças, pela jovem noiva impúbere prometida e pelo pajé-mestre, um aprendiz cantou dias e noites ininterruptos, sem dormir, trêmulo, sempre em transe, agarrado ao NARAÍ, seu cetro de xamã, incorporando a cada vez um deus diverso. Por sua boca falava GAPAME, um entre centenas de Espíritos, que desce à Terra acompanhado de ventos, aos quais apenas o seu belo cocar de plumas coloridas resiste, enquanto árvores se despedaçam e folha se esparramam.

Alguns aprendizes fracassam por não ter coragem suficiente. Outros morrem, ao infringir a proibição de namorar no período dedicado aos deuses.

Os pajés e os mortos Ikolen percorrem um caminho das almas nos céus, no GARPI, análogo ao dos Suruí, atormentado por perigos. Mas os pajés acentuam a face prazerosa das suas viagens, destinadas a amparar a passagem dos falecidos, a buscar os doentes e também a passear. As ocas e aldeias do além, eles contam, estão em festa permanente. Enquanto seus corpos adormecem na rede, ao lado das esposas, os pajés passam a noite dançando, bebendo, casam-se com mulheres-espíritos ou deusas, com quem têm filhos, que por sua vez vão amparar os mortais.

Num ritual de cura, os filhos e a mulher divinos do pajé Tsiposegov chegaram à aldeia uma um, proibindo sob grave pena que alguém olhasse para eles na noite sombria. Inquiriram como estavam os irmãos humanos; traziam saúde e a cura e conversaram em voz alta, registrada em gravador. Carne e espírito parecem não se opor; o namoro une o físico ao imaterial. Há, ao mesmo tempo, abstinência sexual, levando as pessoas a fixar-se num alvo e dedicar-se ao sagrado sem dilaceramentos.

Diz o pajé Txipiküb-ob que pisa o chão do Caminho das Almas, mas não é como ir à roça e tocar a terra com os pés: é um piscar de olhos que o faz ir muito longe, por tempo infinito, permitindo voltar. E um êxtase que os que não experimentaram não consegue entender.

As almas podem ser muitas, em cada povo, sediadas em diferentes partes do corpo. Notemos que os Tupinambá atribuíam ao fígado qualidades semelhantes às que nos evoca o coração.

Os Ikolen têm o TI – seria talvez a energia ou psique animadora, a que faz criar –; o ZAGONKAP, o nosso invólucro ou "semente do coração", "casca do coração", que gosta de viajar, com ou sem corpo; o IXO, imagem ou sombra, que não tem morada fixa, erra no mato, a que mais conhecemos e tememos, porque quer nos arrastar. Paixão, hálito, sopro, alento, emoção, daimon, duplo, reflexo, ânimo? Cada alma há de ter um pouco da substância que faz o corpo não ser corpo apenas.

Texto de Betty Mindlin

TXOPOKOD, um espírito amante

Uma mulher casada não gostava nem um pouquinho do marido. Achava horrível dormir com ele e o evitava sempre que possível. Vivia espiando os rapazes da aldeia. Era graciosa, andava leve, parecia estar sempre dançando, e não lhe faltavam candidatos a namorados.

Um dia, andando pela floresta para apanhar frutos, encontrou por acaso com um dos guerreiros mais valentes. Nem precisaram conversar muito para já estarem rolando no chão entre as folhas, brincando e ardendo.

Agora, à noite, ela vivia em fogo, imaginando estar nos braços dele, alisando suave suas costas, seu peito, suas pernas, misturando peles, agarrando-se um ao outro.

Ao pôr-do-sol, quando todo mundo costumava buscar lenha ou tomar banho, eles procuravam se encontrar em algum lugar fechado da mata, não muito distante. Mas sempre havia alguém vigiando, principalmente as crianças, e ela tinha que se cuidar para não voltar com terra ou gravetos grudados no corpo. O seu maior desejo seria receber o amado na rede, num silêncio sossegado, sem serem vistos e sem mordidas de formigas ou outros bichinhos do chão.

Para fugir melhor das investidas do marido, a moça pendurava sua rede num canto da maloca, um pouco afastada dos demais, e adormecia encostada na parede de palha.

Um dia, já quase deslizando no sono, ela sentiu mãos que a acariciavam. Começaram pelo rosto, de leve, os dedos desenhando com ternura seus olhos, nariz, boca, faces e pescoço. Foram descendo sem pressa, demoraram-se nos seios e nos bicos dos peitos. Ela se lembrou dos gestos do namorado nas escapadas raras demais e ficou caladinha, morta de medo que alguém os interrompesse. As mãos desceram sábias, não deixaram um cantinho sem tocar e se refestelaram na xoxota. Os dedos dos braços misteriosos que haviam atravessado a parede de palha bolinavam e puxavam o clitóris, enfiavam-se ousados como se fosse uma lança masculina. Ela estremecia em sóis de prazer, procurava tocar o corpo do amado, desejosa de retribui o dom da magia noturna, mas só encontrava a lisura dos braços, doces como polpa de pariri. Queria furar a barreira da maloca e alcançar o namorado do lado de fora, mas tinha medo de fazer barulho farfalhando a palha.

Todas as noites, ela esperava ansiosa, e os braços vinham tocá-la. Já nem corria para o mato atrás do namorado, e ele, durante o dia, quase não lhe falava; era como se não tivessem nada a ver um com o outro. Mas, à noite, como sabia usar as mãos! Elas pareciam substituir com proveito os recursos do corpo de homem proibido de se aproximar, separado dela pela palha! As hábeis mãos pareciam ter gosto especial em encantar o clitóris, que puxavam e puxavam em carícias de fogo.

Dia a dia, a moça foi percebendo que seu clitóris vinha crescendo. Vivia repleta de satisfação erótica, mas aquele pedacinho tão pequeno, tão imperceptível aos outros mesmo na nudez da aldeia, começava a perturbá-la. Passada uma semana, já estava do tamanho do de um homem nos arroubos do amor. Morta de vergonha, ela se escondia de todos, não andava mais para canto nenhum.

– Por que você vive se escondendo, por que não vem conosco à roça, nem senta perto de nós e do seu marido? – estranhou a mãe.

Vendo que era impossível enganar quem quer que fosse, ela confessou a verdade à mãe. Revelou até mesmo a existência do namorado da floresta.

– Como você é ingênua, minha filhinha! Não é um homem, é um Txopokod, um espírito, um fantasma, que vem namorar você através da palha! E você pensando que é um dos nossos guerreiros! Se fosse gente, chamaria você para te enlaçar às escondidas perto do rio, longe da maloca.

– Ele vem toda a noite, mamãe, como gente, me ama com tanto jeito e carinho!

A moça corava, chorava, chorava, com o clitóris já arrastando pelo chão. Solidária, a mãe convocou os parentes para darem cabo do Txopokod. O marido traído era o que mais estimulava os outros à vingança:

– Hoje à noite saberemos arrancar os braços desse bicho imundo!

Os homens passaram o dia afiando as taquaras das flechas, suas lâminas de bambu. Esperaram a noite, silenciaram, espreitaram a moça encabulada, deitada na rede, com o clitóris pesado.

A noite ia alta quando o Txopokod a chamou cauteloso, assobiando. Meteu um braço pela palha, logo alcançou o lugar mais sensível, descomunal... e tchok! Ela agarrou o braço, gritou para os homens. Acenderam uma vela de resina de jatobá, correram para ela e zapt! Cortaram o braço.

Houve um estrondo, e o Txopokod fugiu para o mato. A maloca inteira cercava o braço esquisito, coberto de pulseiras de tucumã, de dentes, de plumas, enfeitado. Saciados de olhar, jogaram o braço-amante na panela de barro, para cozinhar.

No fogo alto, fervia o caldo de braço, mas nada de mudar o que quer que fosse naquela carne. Não amolecia! Parecia que o Txopokod não tinha ossos, a carne não se desprendia.

E, espanto maior: já era hora de amanhecer, mas a noite continuava escura. Nenhuma claridade. A manhã virara noite, a noite estava esticada como o clitóris da moça...

Não se podia deixar apagar o fogo. É no escuro, sem luz, que os Txopokods vêm para comer os homens, e havia muitos Txopokods, deviam estar com raiva, querendo se vingar. Foi a correria para buscar lenha. Todo mundo atrás de madeira para queimar.

A lenha se acabou toda, e a escuridão era a mesma. Nada de alvorada. Uma noite que já durava três dias...

Tiveram que entrar nos milhos e na mandioca, para usar como combustível. Tremiam de medo dos Txopokods, das sombras soturnas na noite. Mantinham o fogo cozinhando o braço, par ao Txopokod não poder vir comer a aldeia inteira...

– Joguem fora o braço desse fantasma! – ordenou o cacique. – Para que cozinhar esse bicho esquisito? Nosso milho está se acabando, já não temos mais nada para queimar!

Chegou o Coelho, Kupipurô. Cantava bonito, como cantamos há pouco. Todo mundo pediu para ele entrar na maloca, vir cantar com eles.

Percebiam movimentos no escuro, já eram muitos Txopokods no terreiro, rondando as pessoas para um banquete de extermínio.

Os coelhos Kupipurô resolveram ajudar os homens, levantaram-se e foram cantar, distraindo os Txopokods.

– Joguem fora o braço, para os Txopokods não nos comerem!

Juntaram-se para levantar a panela e pôr o conteúdo num pilão de pedra. Tentaram socar o braço com mão de pilão de pedra, mas era o mesmo que um sernambi – não se desfazia de forma alguma. Também as pulseiras do Txopokods não se quebraram.

Terminaram por desistir e jogar o braço no terreiro. O dono, o Tsopokod namorador, correu e grudou o braço outra vez no próprio corpo. Mais que depressa procurou um igarapé, porque seu braço estava queimando. Jogou-se na água. Dizem que por isso a água desse igarapé é quente, porque lá é que o braço fervente mergulhou...

O Txopokod ia nadando em todos os rios e igarapés que encontrava, para esfriar. Só no último, já perto da cachoeira do Paulo Saldanha, o fogo do braço apagou. Por isso esse igarapé tem água fria.

Quando o calor do braço acabou, a noite comprida se extinguiu, o dia foi amanhecendo outra vez e a paz voltou à aldeia. Muitos dias de luz perdida tinham se escoado, já era de tarde, próximo do escurecer.

Cortaram o clitóris da mulher e jogaram dentro d’água – virou poraquê, o peixe-elétrico. A cuia onde levaram o clitóris virou caranguejo. O marido traído não a quis mais, teve medo. Quanto ao namorado, não se sabe se ainda a quis, tudo é segredo... Mas o Txopodod nunca mais voltou.

Mitologia do Povo Macurap