Uma
das questões mais discutidas na historiografia brasileira em relação aos índios
é a idéia da “oscilação” e “ambiguidade” da legislação indigenista colonial,
visto que ora ela pendia para os interesses dos colonos pela escravização, ora
para os interesses dos jesuítas pela catequização e manutenção da “liberdade”
dos nativos. Caio Prado Jr., por exemplo, considerou que o projeto fundamental
da Coroa Portuguesa de transformar os nativos em “colonizadores” – ou, nas
palavras do próprio autor, em “elemento participante da colonização” – não foi
alcançado em função de sua incapacidade de se posicionar e lidar com os
interesses divergentes dos padres e colonos.
Embasado
por uma percepção disjuntiva do universo indígena, o Império Português cunhou
uma política que procurava regulamentar e legitimar a escravidão. Enquanto a
atuação dos missionários era protegida, fomentava-se a conquista e extermínio
dos grupos autóctones considerados “bravos” e “irredutíveis”, formando-se assim
o todo de um projeto de colonização. Portanto, longe de basear-se em “uma luta
pela justiça”, a legislação indigenista colonial estava abalizada por uma busca
de legitimação dos procedimentos para o contato e utilização desses povos: “Apenas à primeira vista contraditória e
oscilante, a legislação indigenista portuguesa, que por vezes autorizava a
escravização dos povos indígenas (em caso de ‘guerra justa’ ou ‘resgate’) e por
vezes a coibia, era na verdade o resultado da percepção das possibilidades de
utilização da diversidade sociocultural dos povos autóctones e das
possibilidades históricas do contato para a consecução dos objetivos concretos
da empresa colonial (PUNTONI, 2002, p. 60)”.
A
legislação indigenista não deve ser tomada em conjunto e generalizada a todos
os índios do Brasil, sob o risco de simplificar os contornos desse quadro.
Legislação e política indigenistas apresentam um corte fundamental ao se
destinarem aos “índios amigos” ou ao “gentio bárbaro”. Perrone Moisés percebe,
assim, “[...] uma linha de política
indigenista que se aplica aos índios aldeados e aliados e uma outra, relativa
aos inimigos, cujos princípios se mantêm ao longo da colonização”. Aos
aliados e amigos, a liberdade foi garantida durante todo o processo; quanto aos
índios inimigos, foi sempre assegurado o direito de escravizá-los com base na
“guerra justa” e no “resgate”.
A
separação entre índios “aliados” e índios “inimigos” feita pelos portugueses é representada
pelas designações generalizantes tupi
e tapuia. Enquanto tupi era o termo
que identificava os grupos pacíficos, aldeados e aliados, a alcunha tapuia qualificava
todos os povos que se mostraram resistentes desde os primeiros contatos e
procuraram o afastamento das áreas colonizadas. Entre os inúmeros e diversificados
grupos identificados como tapuias estavam os AIMORÉ, primeira denominação específica dada aos povos que mais
tarde ficaram conhecidos como BOTOCUDOS.
Aimoré e tapuia são expressões provenientes da língua tupi, com a qual os
portugueses primeiro tiveram contato e incorporaram na comunicação pela colônia.
A denominação Botocudos é fruto da visão externa e preconceituosa dos portugueses,
que se tornou comum para se referir aos grupos tribais da região analisada, que
tinham a tradição de utilizar botoques labiais e auriculares feitos de madeira.
Seguindo
essa premissa, os viajantes e colonos que visitaram e exploraram o rio Doce
espírito-santense ao longo da colonização classificaram os chamados Aimoré,
Puri e Patachó como “tribos tapuias”, e a região, como “pátria dos antropófagos”.
Segundo Solthey, os Aimoré do rio Doce foram considerados pelos padres jesuítas
“os mais ferozes de todos os tapuias”.
Os
Botocudos foram identificados como “ferozes” e “antropófagos” por todos os que com
eles tiveram contato desde o século XVI, em função da forte resistência e belicosidade
demonstrada. Assim, construiu-se uma visão que sobreviveu firmemente ao longo
da colonização e acompanhou os homens que contra eles avançaram definitivamente
no século XIX. Ao considerarmos, por exemplo, os relatos dos viajantes que os
descreveram, percebemos que o interesse em vê-los pessoalmente era aguçado por
pré-concepções. Dessa forma, seguindo uma visão comumente estabelecida, na
primeira descrição dos Botocudos, o príncipe Maximiliano identificou-os como
“estranhos e feios”, aproximando sua aparência à de “monstros”. Num segundo
momento, porém, o mesmo viajante – que foi o que melhor observou e descreveu
esses povos – classificou os índios Botocudos como “[...] mais bem conformados e mais belos do que os das demais tribos.
[...] São fortes, em regra largos de peito e espadaúdos, mas sempre bem
proporcionados; mãos e pés delicados”, descrição que dá sentido às imagens
que ele produziu, aproximando-os de feições idealizadas de acordo com a concepção
de beleza européia.
Os
Botocudos compreendiam povos organizados em subgrupos extremamente divididos,
muitos deles rivais entre si. Cada grupo era comandado por um chefe, sem caráter
hereditário, com escolha norteada pela bravura demonstrada. Cabia-lhe orientações
e decisões quanto a disputas internas, migrações do grupo e momentos de guerra.
Eram grupos seminômades, mas que tinham seus espaços limitados nas florestas em
relação aos de outros subgrupos, principalmente no que dizia respeito às áreas
de caça. Ao procurarem respostas para o “fator incógnito” das sucessivas
divisões e multiplicidade de etnônimos dos grupos Botocudos, Emmerich e
Montserrat levantaram a hipótese de que a causa seria o faccionalismo
tradicional das sociedades Macro-Jê e a secular situação de afugentamento,
capaz de descaracterizar suas formas no espaço.
Apesar
das divisões e rivalidades grupais, caracterizavam-se pelo compartilhamento de
um mesmo sistema sociocosmológico e de linguagem, embora esta possuísse variações
dialetais, o que permitia sua identificação, expressão e comunicação no jogo de
alianças e rivalidades que se fez e refez ao longo do processo de contato e elaboração
de estratégias de resistência e sobrevivência nos intercursos da fronteira colonial.
Os grupos tinham uma rígida divisão social do trabalho, na qual cabia aos homens
as atividades de guerra e caça, e às mulheres, tudo o mais que não dizia respeito
a isso.
Conforme
Maximiliano de Wied-Neuwied, fabricavam diversos instrumentos e utensílios para
diferentes fins, como para a caça e a guerra, para a música e o adorno do
corpo, e, principalmente, para utilização doméstica. Adaptados às constantes
movimentações e viagens dos grupos, a simplicidade da confecção desses objetos
bem como das habitações e da vida cotidiana que levavam foi muitas vezes
descrita com a finalidade de demonstrar seu primitivo estado de civilização e desenvolvimento
material.
Assim,
o estágio de desenvolvimento dos Botocudos foi tomado como justificativa legitimadora
do processo de civilização que era preciso impor-lhes. Da mesma forma, as
adjetivações negativas e a classificação dos Botocudos como “inimigos da colonização”
serviram para justificar as investidas ofensivas e exterminadoras contra eles,
caso “teimassem” em continuar com seu modo de vida.
No
século XIX, os Botocudos estiveram definitivamente no centro das atenções, seja
como alvo da legislação indigenista, seja como “objetos” de interesse
científico. Mencionados como protótipo dos “índios bravos”, que precisavam ser
exterminados ou submetidos pelo trabalho e pelas leis, os Botocudos preocuparam
as autoridades coloniais do Império Luso-Brasileiro e, após a independência
(1822), do Império Brasileiro. Daí a nossa referência a eles como “índios imperiais”, em analogia às novas
visões produzidas sobre os “índios coloniais”.
O termo “índio colonial” foi introduzido na historiografia pela historiadora
norte-americana Karen Spalding, em um ensaio sobre o Peru Colonial, com o
objetivo de relevar a análise da experiência indígena na América espanhola.
Designa o elemento nativo em meio à colonização, mas com “[...] um papel ativo e criativo diante dos desafios postos pelo avanço
dos espanhóis”.
No
Império, os Botocudos foram, na maior parte das vezes, relegados à barbárie, num
momento em que, ultrapassadas as inquirições sobre a humanidade dos povos autóctones,
se discutia seu lugar na escala do desenvolvimento humano, sua capacidade de
viver em sociedade deixando de ser selvagens. No entanto, encontramo-los aqui
como coletividades atuantes e conscientes, em movimentação não só pelos
enclaves da fronteira do Doce, mas, de igual modo, pelas estruturas sociopolíticas
de toda a Província. A atuação da DRD marcou um estreitamento com as questões
indígenas e com o discurso pacificador inaugurado pelo Império. Nesse sentido,
os diferentes subgrupos Botocudos, alvos da política de aldeamento, colocaram-se
entre conflitos e negociações, entre apropriações e transmutações de elementos
provenientes da inevitável trama colonial.
Baseado
em texto de Francieli Aparecida Marinato
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