O “HANAQ PACHAP KUSIKUYNIN” é um hino cristão. Embora seu texto seja originalmente em quéchua, estilisticamente é claramente calcado na tradição musical européia. Apareceu primeiro como apêndice ao manual de culto de um religioso, para ser cantado nos dias de festas litúrgicas que celebravam a Virgem Maria. Para os nativos, porém, passou a evocar também deidades andinas, o que pode ser chamado “ambigüidade estratégica”, fenômeno semelhante ao que se dá no “Llama Michiq”, só que deforma bem mais sofisticada.
O “Hanaq Pachap” está incluído no “Ritual, Formulario e Institución de Curas para Administrar a los Naturales com Advertenciasmuy Necesarias”, do sacerdote franciscano de Andahuaylillas, Juan Pérez Bocanegra, publicado por Geronymo de Contreras, no Convento de Santo Domingo, em 1631. Nessa edição, o hino traz a seguinte informação: “va compuesta en música a quatro vozes, para que la canten los cantores, al entrar a La Iglesia”. Como já se disse, estava escrito em quéchua. Não trazia qualquer tradução para o espanhol, vinha no final do Ritual Formulario, e foi definido por Pérez Bocanegra como para ser cantado durante a processional dos cantores. De acordo com Stevenson, essa é a mais antiga obra polifônica vocal publicada na América, composta num estilo que, excetuando-se a língua, não traz nenhum sinal de proveniência andina. Bocanegra, para alguns o provável autor do hino (embora haja grande controvérsia sobre esse fato), ensinava gramática latina na Universidade de San Marcos, em Lima, atuava como cantor na catedral de Cuzco, foi o revisor do livro do coro, e ainda era sacerdote numa das igrejas da cidade de Cuzco, antes de assumir a posição de consultor-geral de quéchua e aymara para a diocese de Cuzco, ou de pároco de Andahuaylillas (província de Quispicanchi), uma vila ao sul de Cuzco.
Pérez Bocanegra era um estudioso da cultura quéchua, e seu manual revela uma profunda familiaridade com a vida andina. Inclui informações sobre interpretação de sonhos e outras formas de adivinhação, de práticas de casamentos entre os nativos... Franciscano da Ordem Terceira, Bocanegra envolveu-se em longa disputa jurisdicional com os jesuítas que cobiçavam sua paróquia para torná-la centro de treinamento da língua quéchua para missionários, semelhante ao centro de treinamento da língua aymara que eles já haviam estabelecido em Juli. O Ritual Formulario foi publicado durante um período no qual os jesuítas tinham algum controle sobre sua paróquia, o que também se vê refletido em suas preocupações e recomendações práticas anotadas no Ritual.
Para compreendermos algo sobre a disputa entre Bocanegra e os jesuítas que dominaram o Concílio de Lima de 1583, basta observar que estes recomendavam que os sacerdotes ouvissem regularmente as confissões dos seus fiéis, e ordenavam veementemente que confessassem necessariamente toda a comunidade; Bocanegra explicitamente desencorajava tal prática. O III Concílio de Lima, embora recomendasse o uso do quéchua na prédica, temendo distorções do vocabulário religioso cristão em traduções para aquele idioma das partes fixas da liturgia, recomendou que o espanhol fosse utilizado durante a celebração litúrgica. Bocanegra, porém, queria adaptar os conceitos religiosos cristãos ao imaginário andino, aceitando até mesmo uma tradução do nome de Dios pelo nome da montanha Huanacauri.
Em seu Formulario não hesitou em usar texto sem espanhol e adaptações para o quéchua. No caso do “Hanaq Pachap Kusikuynin”, como se disse acima, Bocanegra não incluiu qualquer tradução para o espanhol. Se foi ele mesmo o autor do texto ou outro poeta qualquer, o fato de tê-lo publicado revela-nos sua preocupação em adaptar os conceitos cristãos à religião andina tradicional.
O hino tem vinte estrofes, a última delas é um “Gloria Patri”. Transcrevemos abaixo apenas as três primeiras, mais conhecida se mais comumente cantadas hoje:
“HANAQ PACHAP
1. Hanaq pachap kusikuynin
Waranqakta much’asqayki
Yupay ruru puquq mallki
Runakunap suyakuynin
Kallpannaqpa q’imikuynin
Waqyasqayta
2. Uyariway much’asqayta
Diospa rampan, Diospa maman
Yuraq tuqtu hamanq’ayman
Yupasqalla qullpasqayta
Wawaykiman suyusqayta
Rikuchillay
3. Chipchiykachaq qatachillay
P’unchaw pusaq qiyantupa
Qam waqyaqpaq, mana upa
Qizaykikta “hamuy” ñillay
Phiñasqayta qispichillay
Susurwana”
Uma possível tradução:
1. Alegria do céu
Mil vezes eu te adoro [eu te beijarei]
Árvore que amadurece fruto valioso
Da humanidade a esperança
Dá força e seu sustento
Ao meu chamado
2. Escuta minha adoração
Guia de Deus [pela mão], mãe de Deus
Branca pomba, alva flor de açucena
Considere meu pranto [valorize meu choro]
Ao teu filho, meu desejo [ânsia]
Faz saber
3. Que brilha, Plêiades
Guia da luz do dia e da aurora
O que a ti suplica sempre é ouvido
Ao desprezado dizes ‘vem’
Faze que Ele perdoe meu medo
Susurwana.
O hino tem óbvias ambigüidades, perceptíveis logo na primeira análise: a língua é inca, mas a música é absolutamente européia. A poesia é métrica, concebida em estrofes cujos versos rimam, recursos estilísticos desconhecidos dos quéchuas.
Mas há outras ambigüidades, mais sutis, não apenas no estilo poético: a essência do texto e as imagens criadas são passíveis de múltiplas leituras. À primeira vista, utiliza símbolos clássicos ou epítetos cristãos tradicionais da Virgem como “mãe de Deus”, “esperança da humanidade” ou “árvore que dá fruto”. Até mesmo a maior parte dos símbolos celestiais, dos quais o hino é repleto, está firmemente fundada em imagens poéticas e iconográficas bem conhecidas, como a associação de Maria com a Lua, presente em inúmeras pinturas medievais e figura próxima ao epíteto de Maria maris stella, “Maria estrela do mar”, freqüente na Idade Média.
Mas há passagens do hino obviamente estranhas à tradição cristã, como, por exemplo, a insistência na evocação da fertilidade da Virgem Maria, especialmente louvando-a como fonte de fecundidade agrícola. Logo na estrofe 1, a linha 3 traz “Yupay ruru puquqmallki”, que tanto pode ser traduzido por “árvore que amadurece fruto valioso” como também “árvore de incontáveis frutos”. Na estrofe 6, a linha 36 diz “Kawzaq pukyu”, algo como “primavera que faz germinar”. Na estrofe 7, linha 37, “miraq-suyu” quer dizer “domínio da fertilidade”; e a estrofe 13, linha 73 traz “Ñukñu ruruq chuntamallki”, “palmeira que dá frutos tenros”. Encontramos ainda, na estrofe 13, linha 74, “Runakunap munay kallcha”, algo como “bela colheita dos povos”; e na estrofe 19, linha 111, “Qhapaq mikuy aymuranqa”, “grande colheita de alimentos”. É verdade que podemos sempre encontrar uma explicação “cristã” para todos esses epítetos da Virgem. Mas também é verdade que não são tão comuns assim expressões como “primavera que faz germinar”, “domínio da fertilidade”, “bela colheita dos povos” e “grande colheita de alimentos”, que parecem muito mais atributos de Pachamama do que da Virgem Maria!
Da mesma forma, se, como dissemos acima, algumas analogias de Maria com corpos celestes presentes no hino são comuns na tradição cristã, outras são muito estranhas. Associar Maria à “bela lua”, como na estrofe 11, linha 61, “zuma killa”, ou como na estrofe 11, linha 65, “Mana yawyaq pampa killa”, “lua cheia que nunca diminui”, pode não surpreender ouvidos cristãos, como também não será estranho ouvirmos que a Virgem “transforma a noite em dia”, na estrofe 6, linha 32, “K’anchaq p’unchaw tutayachiq”.
Mas outros epítetos no hino identificam Maria sistematicamente com objetos celestes específicos da devoção feminina dos Andes pré-colombianos. A própria insistência em compará-la com a Lua pode parecer exagerada. Além disso, Maria é comparada à constelação das Plêiades e, na estrofe 7, linha 40, “aklla phuyu”, “nuvem seleta”, faz referência a outra constelação,objeto de adoração pré-colombiana. É surpreendente a insistência em comparar Maria às Plêiades. Logo na estrofe 3, a linha 13 traz “Chipchiykachaq qatachillay”, ou “que brilha, Plêiades”. A constelação das Plêiades era um dos principais ajuntamentos estelares para os incas, utilizada no seu calendário, assim como o Cruzeiro do Sul e as constelações de Alfa e Beta-Centauro. Os incas adoravam as Plêiades como deidade e sua ênfase no hino, associada à Maria, é surpreendente: ela ainda se repete na estrofe 10, linhas 59 e 60: “qam mamayta” (60) “Qatachilla[y]”, isto é, “a ti, mãe,“Qatachillay”.
Assim, a ambigüidade é constante no hino a ponto de nos permitir afirmar “Hanaq Pachap Kusikuynin” é, ao mesmo tempo, um hino a Maria e um hino às Plêiades, a outros corpos celestes, objetos da adoração dos nativos dos Andes e, aparentemente, às divindades femininas associadas à fecundidade da terra. Fica claro que uma interpretação unilateral do texto do hino não será correta ou suficiente. Enquanto os sacerdotes católicos colonizadores podem ter compreendido o hino como um veículo aceitável para a devoção a Maria, os nativos falantes da língua quéchua podem ter encontrado nele uma reconfortante continuação da velha prática religiosa, sem que uma interpretação dominasse a outra.
Texto de Parcival Módolo
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