domingo, 29 de setembro de 2013

JAMINAWA DO CAETÉ - depoimento...


Sobre o nosso povo, posso afirmar que a gente não tinha esse nome JAMINAWA nem conhecia um povo que tinha esse nome. Com a chegada da Funai, em 1975, havia um desconhecimento da realidade dos índios que viviam aqui no estado. Como o órgão indigenista não sabia que povo nós pertencia, deu esse nome de Jaminawa. Antes chamavam a gente de Marinawa, Sharanawa e outros tipos de nomes. No tempo dos seringais, os “cariús”, os brancos, chamavam a gente de “caboclos”, como faziam com qualquer outro povo indígena no Acre.

Na realidade, existem quatro grupos originais, familhões, clãs, que na nossa língua chamamos de SHUKU ITSAWU: Não tinha um nome geral que reunia todos eles. Nossos shuku itsawu são originários de quatro troncos: Sapanawa (“gente da arara”), mais conhecido hoje como Xixinawa (“gente do quati”), Yawanawa (“gente da queixada”), que não tem nada a ver com o povo Yawanawá do rio Gregório, Shawãnawa (“gente da arara vermelha”), que também pegou o apelido de Mapudawa (“gente da cinza”), porque eles não gostavam de tomar banho, e Kaxinawa (“gente do mocego”), que também não tem nada a ver com o povo Kaxinawá, ou Huni Kuin, lá do Jordão. Esses Huni Kuin a gente chamava pelo apelido de Sainawa, porque é um povo da barriga cheia, que gosta de comer com muita fartura. Da mesma forma que pegou esse nome Jaminawa pros nossos parentes, pegou Kaxinawá pro povo Huni Kuin.

Até hoje o nosso povo tem essa tradição de viver em pequenos grupos, um bocado aqui e outro acolá. E ainda gostava de colocar apelido nos outros parentes e até entre nós mesmos. É a mesma coisa que a turma dali do Antonio Kuruma, na aldeia Extrema, se encontrasse com a turma da aldeia Buenos Aires comendo um bocado de manitê e, como brincadeira, dissesse: “Esse povo aí não é Sapanawa nada, é Neanawa, gente do jacamim, porque jacamim é que gosta de comer manitê”. E assim iam colocando apelido entre nossos próprios parentes e também nos outros povos indígenas.

Nosso shuku itsawu é transmitido por linha paterna, porque o filho é o herdeiro do pai. Se eu sou Xixinawa, casado com uma mulher Kaxinawa, meus filhos são Xixinawa também, porque eles são considerados do mesmo sangue meu. Do ponto de vista da nossa cultura, a mãe é uma pessoa importante, que a gente tem todo respeito com ela, mas quem colocou o filho lá dentro dela foi o homem.

Os Sapanawa sempre foram o grupo dominante. Por qual razão? Porque o clã Sapanawa, ou Sapadawa, tanto faz, sempre teve maior número de pessoas, de pajés, de guerreiros. Sempre dominou esses outros grupos, ou clãs, ou como eu poderia chamar isso? Nós chamamos de shuku itsawu.

Na nossa cultura, nossos nomes pessoais são dados pelo avô paterno, ou pelos irmãos ou primos-irmãos do nosso avô paterno. Por exemplo, o meu nome é Tunumã, que significa mandim grande. Eu não sou o primeiro, isso já vem de gerações. Quem me deu esse nome foi o irmão do meu avô paterno, que também era Tunumã. Então, o meu neto, filho do meu filho mais velho, é Tunumã também. E o primeiro neto do meu neto vai também pegar esse nome. E a primeira filha do meu filho, minha neta, portanto, recebe o nome da minha irmã. Se eu não tiver uma irmã, ela pode pegar o nome de uma minha prima, que também pertence a mesma turma da minha irmã. Nosso nome pessoal é uma coisa que nunca se acaba.

Dependendo do shuku itsawu, os parentes falam com um sotaque um pouquinho diferente. Muitas vezes até nome de peixe e de algum animal é diferente. Comparação, o piranambú, que é um peixe, a turma dos Sapadawa chama kabi, já a turma dos Shawãdawa fala kukati. Muitas vezes, os cariús (brancos) não percebem isso. Só conversando, a gente percebe. Quando chego numa aldeia, percebo logo se eles são do meu shuku itsawu só na forma deles se expressar, de falar o nome dos animais, na maneira como tratam suas noras e suas crianças. Ao chegar numa comunidade, sei se eles fazem parte da minha linha de sangue, ou não. Agora é complicado, porque algumas pessoas, muitas vezes, não conseguem falar a originalidade nossa, porque às vezes fazem parte de outro shuku itsawu, que é menor e ficam com vergonha, ou então, falam de uma maneira que acham que é da tradição deles. Isso atrapalha um pouco. Nós temos essa dificuldade até entre os professores bilíngües Jaminawa pra fazer um livro na nossa língua. Por isso que a nossa organização, que é a OCAEJ, tá trabalhando num dicionário da nossa língua. Cariú não percebe essas diferenças.

Olha, se um homem e uma mulher forem do mesmo sangue de pai e mãe, não podem se casar. Pode até haver um casamento entre um homem Sapanawa com uma mulher Sapanawa, mas às vezes a mãe ou o pai já é mesclado, o pai de um é Shawãnawa, ou a mãe já é Yawanawa. Então, existe muito isso, mas quando é uma coisa de puro para puro eles não podem casar. Isso leva a críticas, fofocas e comentários públicos. Também segundo a nossa tradição, se uma mulher tiver gestante e dez homens transarem com ela, todos eles são considerados pais dessa criança. Por isso que vira uma familiarização grande. Tem que saber qual é o original pra não casar os dois do mesmo original, porque isso leva a maior desmoralização da comunidade. E não é só isso, dá medo das crianças nascerem aleijadas, porque é parente muito próximo.

Com uma filha do irmão do meu pai eu não posso casar e se for uma filha da irmã do meu pai também não. Agora, se for uma filha da prima do meu pai, aí sim, porque já é prima de terceiro grau, aí posso me casar com ela. Ou por outra, com a filha do irmão da minha mãe também não posso. Só posso casar se ela for uma filha da prima da minha mãe. Os primos de primeiro grau, tanto do lado da mãe, como do lado do pai, são parentes muito próximos. Aí não tem como. Já no caso do povo Yawanawá do rio Gregório, eu vi que você pode se casar com a filha do irmão da sua mãe, ou com a filha da irmã do pai. Isso aí pra nós é chocante. Mas isso é a cultura deles e nós temos que respeitar. Sabemos que cada povo tem o seu jeito de ser e suas diferenças. Índio não é tudo igual, não!

Os Jaminawa foram pro Caeté depois de uma briga lá na aldeia São Lourenço, na Cabeceira do Acre. Na virada do ano de 1995 pra 96, um parente, o Adão, atirou em outro, o Zé Paulo. Então, o que aconteceu? Todo familhão do baleado se sentiu ofendido, em especial o Antonio Kuruma, que é uma liderança e cunhado do Zé Paulo. Já o tio do Zé Paulo, que é pajé no Caeté, também se sentiu ofendido, porque fizeram isso com um sobrinho dele. Mexeu com um, tá mexendo com muita gente.

Para evitar mais confusão, ou mortes, os parentes do baleado vieram tudo pra Rio Branco. Chegando por aqui, não tiveram mais condições de retornar, porque ficou um clima muito pesado. A outra parte, que baleou, que era parente do tuxaua de lá, o Zé Antonio, ficou escondida na mata, tudo armado. Assim é a tradição Jaminawa: não se briga de peito aberto, não. Faz uma coisa e se esconde todo mundo na mata, esperando se os parentes do ofendido vêm atrás de fazer vingança. Pra não ficar aquela cisma, todos os parentes do baleado se obrigaram a vir pra Rio Branco. Ficaram sem condições de voltar pro São Lourenço, mas também não podiam se mudar pra aldeia Betel, na TI Mamoadate, porque as pessoas de lá são parentes próximos daqueles que ficaram lá na Cabeceira do Acre, Eles ficaram sem saída. Que direção tomar? Mudar pro Guajará também não tinha boca, porque poderia aumentar esse conflito. Aí ficaram rolando pela cidade, mendigando, sem ter aonde ir. Ficaram uns tempos debaixo das pontes, perambulando pelas ruas e praças da capital. Quando as autoridades começaram a apertar os parentes, eles procuraram logo a Funai pra achar uma solução.

Aí a Funai, o governo do estado e a Procuradoria da República ficaram preocupados: “O que tá acontecendo com esse povo Jaminawa? Tantas terras indígenas no Acre e os índios pedindo esmolas nas ruas e praças da capital, assim não dá, é demais!”. Muitas vezes, as pessoas não entendem o que tá acontecendo com nosso povo e ficam falando mal dos índios em geral. Chegaram até a dizer que o Mamoadate é a maior terra indígena do estado e lá também é terra dos Jaminawa. “Por que, então, esses índios tão pedindo esmolas em Rio Branco?” Mas não sabiam que aquilo era decorrência de lutas internas entre os grupos Jaminawa.

Pressionada pelo Ministério Público Federal, a Funai começou a procurar outros locais pra colocar essa população. Naquela época, o administrador da Funai de Rio Branco era o Marcondes. Ele dizia assim: “Vocês querem passagem pra retornar pra Cabeceira do Acre?” E o pessoal dizia: “Não!” Uns porque tinham medo de morrer, outros de matar. O Antonio Kuruma dizia assim pra ele: “Marcondes, vê se a Funai arranja ao menos uma colônia pra nós saír das ruas”. Ele dizia que o Incra não tinha terra pra isso, pra índio já tinha terra demais, pra índio já tinha a Funai e “pra quê essa questão toda?”. Botava um monte de dificuldade.

Primeiro, o administrador da Funai disse: “Vamos ver se a gente coloca esses Jaminawa nos fundos da área dos Jamamadi do Capana”. Nós fomos na UNI, na época eu trabalhava lá, então decidimos levar as lideranças Jaminawa até o Capana pra ver se eles se agradavam. Quando chegaram lá, os líderes Jaminawa falaram: “Puxa vida, vamos ficar aqui nessa lonjura, de que jeito vamos viver aqui? Aqui é complicado”. Também as freiras de Boca do Acre, ligadas ao CIMI, eram contra os Jaminawa viverem na terra dos Jamamadi. Essas freiras começaram a dizer que isso ia gerar conflitos com os Jamamadi, botando mil e uma dificuldade. Aí os parentes disseram: “Puxa, a gente já saiu de um fuzueiro lá na Cabeceira do Acre e vir pra outro?” Elas diziam que os Jaminawa tavam invadindo a terra dos Jamamadi, chamando o pessoal de invasor e tudo o mais. Aí não teve boca, voltaram pra Rio Branco de novo e eu fui embora pra Tarauacá.

O administrador da Funai, então, pensou: “Se eles são Jaminawa, quem sabe eles vão dar certo com os Jaminawa lá do Igarapé Preto, afluente do Juruá? Até porque os troncos dos Jaminawa vieram daquela região”. Levaram as lideranças pra lá. O que aconteceu? Ao chegar lá, até acharam que dava pra eles viverem ali. Só que o Antônio Kuruma achou muito longe e disse: “Puxa, nós fomos exilados! Vai ser muito difícil aqui pra nós! Por mais que os parentes recebam a gente, não dá pra gente ficar aqui”. Pra branco é tudo pertinho, é bem ali e acolá, mas eles sentiram que de Rio Branco pra Cruzeiro era muito longe e que seria melhor voltar.

Por fim, a Funai botou o sertanista Antonio Macêdo na história. O Marcondes disse: “Macêdo, vai lá em Sena Madureira com essas lideranças Jaminawa pra ver se você consegue resolver esse problema. Vai procurar lá na Prefeitura e só volte aqui depois que encontrar uma solução.”. Aí o Macêdo disse: “Rapaz, é pra já!” Ele foi pra Sena Madureira, conversou e tal. Teve um cara do Ibama que disse assim: “Macêdo, a solução é o Caeté, porque lá tem muito seringal abandonado”. Macedo levou as lideranças pra averiguar o local. E acabou dando certo!

Quando o Macêdo chegou de volta a Sena Madureira, o Ciro Machado, proprietário do seringal Boa Vista no rio Caeté, soube e foi falar com ele: “Rapaz, assim a Funai tá invadindo meu seringal!”. O Macedo, então, prometeu que a Funai, ou o governo do estado, iria comprar o seringal Boa Vista dele. E pediu: “Ciro, faz uma proposta de venda por escrito, dando um prazo de 90 dias, que a Funai, ou o governo do estado, vai comprar teu seringal pra esses índios”. Antes desses 90 dias, mandaram me chamar de novo.

Essa foi a época que o Marcondes saiu da Funai e voltou o Toninho. Ele, então, ordenou: “Chama o Zé Correia, porque senão não vai adiantar nada. Esses índios sozinhos lá no rio Caeté, eles vão cair fora de novo. É preciso que ele ajude a articular isso”. Aí o finado Toninho me mandou uma carta dizendo assim: “Zé Correia, você tá intimado pra vir ajudar o seu povo, que o Macedo levou lá pro Caeté”. Eu disse: “Tudo bem, Toninho!”

O primeiro serviço que fiz, foi conseguir comida nas secretarias do estado pro pessoal se aguentar lá no Caeté, até terem seus roçados. Os primeiros a chegar foram o Antônio Kuruma, o Batista e o Manoel. O resto das famílias veio chegando aos poucos. O que aconteceu? A Funai e as secretarias estaduais deram um jeitinho brasileiro pra segurar esse pessoal lá no Caeté, até eles começarem a produzir macaxeira e outros legumes. Arranjaram até muita comida. Só que era verão, o Caeté tava muito seco e essa comida não tinha condições de chegar até lá. Mesmo assim, os parentes fizeram seus roçados, as casas de moradia, limparam os terreiros, fizeram os caminhos, os piques de caça, passando fome, comendo coco de aricuri, pedindo banana verde e um pé de roçado aos moradores. Comida tinha, mas não tinha condições de chegar lá, porque, no verão, o Caeté fica bem raso e seco. Por lá adoeceu a mulher do Batista de hemorragia, levaram na rede e aí foi um reboliço danado. Queriam voltar tudo de novo, procurar outro lugar. Foi quando eu entrei em ação e comecei a aconselhar o pessoal: “Olha, pessoal, vocês têm que entender a situação por causa disso e daquilo outro”. E o que resultou dessa história toda?
Em 1997, vieram 30 pessoas e agora, em 2006, já são 126 pessoas vivendo em três aldeias no rio Caeté: Canamari, Extrema e Buenos Aires. Tão ali há nove anos.

Desde o início de 2004, a Funai prometeu mandar um GT para fazer a identificação da terra, mas até agora, janeiro de 2006, nada aconteceu. Antes disso, em 2002, o Ibama criou a Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, sem combinar nada com a gente nem com a Funai. Resultado, deixaram apenas uma ilhazinha pra nós morar, que não dá nem pra caçar. E nós somos um povo caçador.

Sabemos também que o PPTAL, que tem dinheiro do governo da Alemanha pra identificar e demarcar terras indígenas na Amazônia, desde o início de 2004, portanto, há dois anos, também prometeu mandar um GT, mas até agora nada! Soubemos que tá tudo parado lá na Funai, porque os dirigentes tão dizendo pela imprensa que tem muita terra pra pouco índio no Brasil e que é preciso as autoridades maiores do país darem um basta nas reivindicações dos índios por mais terras. Depois que soubemos disso, mandamos um documento pro atual presidente da Funai, com cópia pro seu diretor fundiário, mas até agora nada!

Nosso povo vive lá no Caeté e no Guajará em precárias condições de saúde, abandonados, sem terras identificadas e a hepatite B matando um bocado de parente. E a Funai e o PPTAL não fazem nada!

Semana passada fui numa reunião na Secretaria Extrordinária dos Povos Indígenas do Acre e ouvi o secretário Francisco Ashaninka dizer que tem 37 Jaminawa contaminados com o virus da hepatite B e C. Ele reuniu muitas secretarias do estado pra tentar ajudar nossos parentes doentes, que trazem muita gente aqui pra Rio Branco com eles, atrás de tratamento, de interferon. Meu filho mais velho, o Arialdo, morreu contaminado de hepatite B logo depois. O que fazer agora? Estou sofrendo muito com a morte de meu filho. Tô quase chorando só em falar no nome dele. E ele morreu assim tão jovem! Vocês me desculpem, mas é melhor parar por aqui.

Texto de José Correia da Silva Tunumã

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