sábado, 15 de setembro de 2012

ANTROFAGIA À MODA DA CASA



Na década dos 20, o Brasil e os brasileiros foram “descobertos”. É emblemática desta descoberta a proposta de Oswaldo de Andrade de converter a data em que os aimorés comeram o bispo Sardinha em primeira manifestação brasileira. Festejar o ato canibal – suprema barbárie para o olhar europeu – em afirmação de uma protonacionalidade confere transcendência no comer o importado e o resulta desta transformação torna-se algo virtuoso. O gênio de Oswald transformou o tabu em totem: sabia que o escandaloso é pedagógico.

No século XIX, houve o esforço de buscar no índio a origem da nacionalidade brasileira. Gonçalves Dias transformou o ato canibal em ritual de perpetuação do inimigo valente. Em I-Juca Pirama a comida luta como herói grego em busca do resgate de sua imagem ante o pai. As virtudes do índio são cotejadas em convívio com o colonizador em José de Alencar, que cunha Iracema como “a virgem dos lábios de mel”. O índio de Alencar é uma réplica européia.

“Comer” a cultura importada não é um retorno à natureza. No plano simbólico, foi o colonizador que importou o bispo “comido”. O aimoré não tecnizado lançou mão do que sabia para “experimentar" o colonizador. Ao longo de séculos a colônia – através de sua elite de poder, de ter e de saber – importou cultura, no amplo sentido antropológico, e despiu o nativo de seus saberes e haveres, inclusive dos ventres de suas mulheres para produzir os caboclos mestiços. A importação de africanos – objeto de canibalização cultural – foi uma tentativa radical de o colonizador desconhecer o nativo. No terreiro do candomblé, o africano agradeceu ao “caboclo” a cessão da terra. O ingênuo movimento indianista procuro no nativo o “doador” de um Paraíso Tropical e legitimizou a propriedade do território brasileiro. Pedro II se coroou utilizando um manto de papos de tucanos e folhas de bananeira, estilizados e bordados com fios de ouro. Valorizou, superficialmente, apenas bugigangas do Paraíso Tropical, indisponíveis na Europa. Afirmou: “são minhas!”. Ao combinar o tucano nativo com a musa paradisíaca africana, não canibalizou, apenas importou o formato europeu; quem “canibalizou” o imperador foi o povão que, no século XX, reprocessa a história do império como enredo de escola de samba e combina baianas, índios, condessas, colombinas e o que mais dispuser na mistura antropofágica do carnaval. O prestígio europeu foi visceralmente abalado pela I Guerra Mundial. A Belle Époque seria a preliminar de um processo contínuo de ascese em direção à civilização. A Europa te domesticado os cavalos do Apocalipse e seus cavaleiros nos salões da burguesia ascendente. Com a I Guerra Mundial, o banho de sangue da juventude européia e as matanças industriais de populações civis desmentiram a profecia positivista. A razão e a ciência não eram dominantes, mas sim dominadas pela evolução capitalista. As guerras coloniais haviam sido introjetadas pela “civilização” européia.

Jovens brasileiros perceberam o fracasso cultural do Velho Mundo. Não precisaram, como Picasso, procurar inspiração nas esculturas de Benin, como Brancusi, nos totens esquimós ou como Matisse, no cromatismo japonês e polinésio. Estes jovens perceberam que, olhando para o “povão” brasileiro, tinham formas e conteúdos a serem deglutidos. Tarsila do Amaral busca a plasticidade das lendas índias; Di Cavalcanti busca a sensualidade da mestiça brasileira; Menotti Del Picchia, o linguajar caipira; Portinari, os pés do trabalhador do café; Villas Lobos, todas as tonalidades musicais; Câmara Cascudo, todo e qualquer folclore. Uma plêiade de escritores se debruça sobre fatos, coisas e falares regionais: o gaúcho, o jangadeiro, o mascate, o engenho açucareiro, a fazenda de cacau, a mulher nordestina, o cangaceiro, o mineiro, o colhedor de erva-mate, de borracha, etc. A antropofagia tropical resgata a versão colonial digerida de Portugal: descobre Ouro Preto, Mariana e o Aleijadinho. A feijoada e a goiabada com queijo caminham do trivial para o banquete orgulhoso. O violão substitui o piano na sala de visitas. O gigante Gilberto Freire faz a prospecção dos desvãos da casa senhorial como lugar de simbioses, sincretismos e metamorfoses de protobrasilidade; vê no senhor de escravos um canibal dominante e faminto e explicita uma dialética casa grande-senzala.

O Rio de Janeiro serve como ilustração da redescoberta. O francófilo Pereira Passos, apoiado pelo paulista Rodrigues Alves, fez do Rio um porto moderno e um cartão de visitas dizendo ao mundo que “somos civilizados; construímos a Paris dos Trópicos; temos um Theatro Municipal que copia a Ópera de Paris; temos uma Avenida Central”, com edifícios de telhado próprio para a neve escorregar. Não permitimos nenhuma perturbação tropical nos jardins geométricos da Beira Mar. Aclimatamos os pardais – uma praga – para evocar os Jardins de Luxemburgo. Na década de 30, o desfile das escolas de samba passou a ser um evento da cidade. Nos anos 50, o Rio, o fraque e a estola de vison (mantida climatizada pela Casa Canadá) para a frequência ao Municipal foram substituídos pelo pré-biquini e calção de banho em Copacabana, Princesinha do Mar. O Copacabana Palace permitiu a construção de um colar art déco de edifícios para emoldurar as areias; os “fechos” do colar, os fortes militares, completavam a ilusão que fez do Rio objeto de desejo. A Cidade Maravilhosa apagou a Paris Tropical.

A elite do poder, do ter e do saber importa desde a fórmula federativa (no Novo Mundo, os Estados Unidos da América do Norte e os Estados Unidos do Brasil) até o neoliberalismo, o modelo de metas de inflação, a sugestão de autonomia para o Banco Central, o baile funk, o jazz, sabores, tonalidades e amenidades. Importa cultura e o povão canibaliza para subsistir. Ao canibalizar, o povo cria. A geriatria do objeto durável faz o veículo automotor sobreviver à segunda, terceira, enésima mão – existe o neoartesão mecânico, que reproduz a peça de reposição do modelo fora de uso no primeiro mundo; existe o lanterneiro genial que, como um PItangy do povão, preserva geladeiras, televisões e, mais recentemente, computadores. Com a geriatria, o povão cria empregos e renda, microempresas e viabiliza o acesso popular às mercadorias importadas; a geriatria permite à montadora de veículos um mercado ampliado de primeira mão e ao banco endividar a família que não presta atenção ao juro, calcula apenas o valor da prestação.

A criatividade popular transformou o football importado pelo inglês colonizador. A elite do ter, com a miragem do anglicismo, fundou clubes de football e regatas. A bola é redonda, barata e pode ser improvisada com meia velha; o campo pode ser qualquer terreiro – e o povão canibalizador inventou o futebol. O inglês chutava a Ball, mas o brasileiro quer dominar a bola. Futebol virou paixão. Qualquer lugar pode ter seu time de várzea e disputar com o time do lugar vizinho fazendo o ritual de construção de identidade, que Lévi-Strauss identificou pela oposição ao idêntico. Viramos, em 1958, campeões do mundo. Garrincha, torto, surgiu em Pau Grande (RJ), a partir do time de uma fábrica de tecidos de propriedade britânica. No final dos 50, completamos nosso desempenho construindo Brasília mais além do território real ocupado.

Em resumo, o povão cria e a elite come criação. O povão foi expulso das escolas de samba do grupo especial; não tem renda para comprar a fantasia, nem para um lugar na arquibancada. O Sambródomo é negócio e o espetáculo é para a elite. O criativo povão já fez renascer o bloco de rua.

A feijoada é guloseima em hotéis de luxo para atrair turista, mas em qualquer botequim tem uma boa feijoada. O povão já superou o faast-food com a comida a quilo, que permite ao brasileiro canibal misturar feijão com sashimi, salada verde com talharim e o que mais a imaginação e o apetite permitirem.

O povão, com pouco ter e poder, preserva o saber cultural brasileiro. Recicla tudo naturalmente, do auto à latinha de alumínio. Inventa a favela, a música popular, idealiza o malandro, tropicaliza o salpicão e faz com este prato uma multiplicidade do frango. Organiza festas e novas religiões (é capaz de praticar várias ao mesmo tempo). Preserva o idioma, pois o maneja dinamicamente. O léxico é campo de aclimatação dos pedaços que canibaliza. Enquanto a elite procura uma residência alternativa em Miami, seus epígonos procuram reproduzir o subúrbio norte-americano nas Alphavilles e socializar seus filhos no condomínio e no shopping, o povão canibaliza o baile funk. O estudante brasileiro despreza Camões e, em vez de imprimir e pagar, “printa” e “deleta”; o povão pega no funk uma música importada que se refere a tonight e a transforma em “Melô do Tomate”. Ligado nas sonoridades, este cultor de Camões transmuta o sítio do irlandês O’Higgins em Favela do Arrelia; o sítio do escocês Willian em um bairro, a Ilha. O Visconde de Asseca deu origem à Praça Seca.

Ao invés de constatar um Brasil com uma elite que importa e um povão que canibaliza, espero um projeto nacional para o Brasil de amanhã, onde estaremos abertos ao mundo e conscientes de nossa identidade e soberania. Parafraseando Martinho da Vila, iremos “devagar, devagarinho” em direção à premonição de Duque Estrada, que intuiu o “berço esplêndido” e atribuiu aos nossos bosques mais vida e à nossa vida mais amores. Neste Brasil de amanhã, Zeca Pagodinho não precisará se referir a caviar como “não sei, nunca vi, eu só ouço falar”. Zeca, estamos precisando de um samba que fale do futuro, que veja no baiano a vanguarda da civilização brasileira; que veja no mineiro, a sabedoria; no paulista, o maquinista da locomotiva; no forró do nordestino, a criatividade lúdica do povão; no carioca, o brasileiro que não tem medo de praça cheia e que faz a maior festa mundial de fim de ano (três milhões reunidos, sem polícia nem violência) para recuperar o sonho de um futuro sempre postergado.

A sugestão modernista da Semana de Arte Moderna de 1922 combinada à genialidade de Gilberto Freire lastreou a redescoberta pela qual a elite canibalizou o povo. Nos últimos 25 anos, a elite praticamente deixou de lado o Brasil e mergulhou gostosamente na “Globalização”. Abandonou a cultura popular, da qual o culto à boa cachaça é a nova deglutição da elite. Tenho a esperança que estejamos próximos a um tempo em que, dialeticamente, povão e elite, juntos, superem o ritual recorrente da canibalização e haja a afirmação da identidade brasileira explicitando nosso potencial civilizatório.

Texto de Carlos Lessa

Nenhum comentário:

Postar um comentário