Na década dos 20, o Brasil e os
brasileiros foram “descobertos”. É emblemática desta descoberta a proposta de
Oswaldo de Andrade de converter a data em que os aimorés comeram o bispo
Sardinha em primeira manifestação brasileira. Festejar o ato canibal – suprema
barbárie para o olhar europeu – em afirmação de uma protonacionalidade confere
transcendência no comer o importado e o resulta desta transformação torna-se
algo virtuoso. O gênio de Oswald transformou o tabu em totem: sabia que o
escandaloso é pedagógico.
No século XIX, houve o esforço de buscar
no índio a origem da nacionalidade brasileira. Gonçalves Dias transformou o ato
canibal em ritual de perpetuação do inimigo valente. Em I-Juca Pirama a comida
luta como herói grego em busca do resgate de sua imagem ante o pai. As virtudes
do índio são cotejadas em convívio com o colonizador em José de Alencar, que
cunha Iracema como “a virgem dos lábios
de mel”. O índio de Alencar é uma réplica européia.
“Comer” a cultura importada não é um
retorno à natureza. No plano simbólico, foi o colonizador que importou o bispo
“comido”. O aimoré não tecnizado lançou mão do que sabia para
“experimentar" o colonizador. Ao longo de séculos a colônia – através de
sua elite de poder, de ter e de saber – importou cultura, no amplo sentido
antropológico, e despiu o nativo de seus saberes e haveres, inclusive dos
ventres de suas mulheres para produzir os caboclos mestiços. A importação de
africanos – objeto de canibalização cultural – foi uma tentativa radical de o
colonizador desconhecer o nativo. No terreiro do candomblé, o africano
agradeceu ao “caboclo” a cessão da terra. O ingênuo movimento indianista
procuro no nativo o “doador” de um Paraíso Tropical e legitimizou a propriedade
do território brasileiro. Pedro II se coroou utilizando um manto de papos de
tucanos e folhas de bananeira, estilizados e bordados com fios de ouro.
Valorizou, superficialmente, apenas bugigangas do Paraíso Tropical,
indisponíveis na Europa. Afirmou: “são
minhas!”. Ao combinar o tucano nativo com a musa paradisíaca africana, não
canibalizou, apenas importou o formato europeu; quem “canibalizou” o imperador
foi o povão que, no século XX, reprocessa a história do império como enredo de
escola de samba e combina baianas, índios, condessas, colombinas e o que mais
dispuser na mistura antropofágica do carnaval. O prestígio europeu foi
visceralmente abalado pela I Guerra Mundial. A Belle Époque seria a preliminar de um processo contínuo de ascese
em direção à civilização. A Europa te domesticado os cavalos do Apocalipse e
seus cavaleiros nos salões da burguesia ascendente. Com a I Guerra Mundial, o
banho de sangue da juventude européia e as matanças industriais de populações civis
desmentiram a profecia positivista. A razão e a ciência não eram dominantes,
mas sim dominadas pela evolução capitalista. As guerras coloniais haviam sido
introjetadas pela “civilização” européia.
Jovens brasileiros perceberam o fracasso
cultural do Velho Mundo. Não precisaram, como Picasso, procurar inspiração nas
esculturas de Benin, como Brancusi, nos totens esquimós ou como Matisse, no
cromatismo japonês e polinésio. Estes jovens perceberam que, olhando para o
“povão” brasileiro, tinham formas e conteúdos a serem deglutidos. Tarsila do
Amaral busca a plasticidade das lendas índias; Di Cavalcanti busca a
sensualidade da mestiça brasileira; Menotti Del Picchia, o linguajar caipira;
Portinari, os pés do trabalhador do café; Villas Lobos, todas as tonalidades
musicais; Câmara Cascudo, todo e qualquer folclore. Uma plêiade de escritores
se debruça sobre fatos, coisas e falares regionais: o gaúcho, o jangadeiro, o
mascate, o engenho açucareiro, a fazenda de cacau, a mulher nordestina, o
cangaceiro, o mineiro, o colhedor de erva-mate, de borracha, etc. A
antropofagia tropical resgata a versão colonial digerida de Portugal: descobre
Ouro Preto, Mariana e o Aleijadinho. A feijoada e a goiabada com queijo
caminham do trivial para o banquete orgulhoso. O violão substitui o piano na
sala de visitas. O gigante Gilberto Freire faz a prospecção dos desvãos da casa
senhorial como lugar de simbioses, sincretismos e metamorfoses de
protobrasilidade; vê no senhor de escravos um canibal dominante e faminto e
explicita uma dialética casa grande-senzala.
O Rio de Janeiro serve como ilustração
da redescoberta. O francófilo Pereira Passos, apoiado pelo paulista Rodrigues
Alves, fez do Rio um porto moderno e um cartão de visitas dizendo ao mundo que “somos civilizados; construímos a Paris dos
Trópicos; temos um Theatro Municipal que copia a Ópera de Paris; temos uma
Avenida Central”, com edifícios de telhado próprio para a neve escorregar. Não
permitimos nenhuma perturbação tropical nos jardins geométricos da Beira Mar. Aclimatamos
os pardais – uma praga – para evocar os Jardins de Luxemburgo. Na década de 30,
o desfile das escolas de samba passou a ser um evento da cidade. Nos anos 50, o
Rio, o fraque e a estola de vison (mantida climatizada pela Casa Canadá) para a
frequência ao Municipal foram substituídos pelo pré-biquini e calção de banho
em Copacabana, Princesinha do Mar. O Copacabana Palace permitiu a construção de
um colar art déco de edifícios para
emoldurar as areias; os “fechos” do colar, os fortes militares, completavam a
ilusão que fez do Rio objeto de desejo. A Cidade Maravilhosa apagou a Paris
Tropical.
A elite do poder, do ter e do saber
importa desde a fórmula federativa (no Novo Mundo, os Estados Unidos da América
do Norte e os Estados Unidos do Brasil) até o neoliberalismo, o modelo de metas
de inflação, a sugestão de autonomia para o Banco Central, o baile funk, o jazz, sabores, tonalidades e amenidades. Importa cultura e o povão
canibaliza para subsistir. Ao canibalizar, o povo cria. A geriatria do objeto
durável faz o veículo automotor sobreviver à segunda, terceira, enésima mão –
existe o neoartesão mecânico, que reproduz a peça de reposição do modelo fora
de uso no primeiro mundo; existe o lanterneiro genial que, como um PItangy do
povão, preserva geladeiras, televisões e, mais recentemente, computadores. Com a
geriatria, o povão cria empregos e renda, microempresas e viabiliza o acesso popular
às mercadorias importadas; a geriatria permite à montadora de veículos um
mercado ampliado de primeira mão e ao banco endividar a família que não presta
atenção ao juro, calcula apenas o valor da prestação.
A criatividade popular transformou o football importado pelo inglês
colonizador. A elite do ter, com a miragem do anglicismo, fundou clubes de football e regatas. A bola é redonda,
barata e pode ser improvisada com meia velha; o campo pode ser qualquer
terreiro – e o povão canibalizador inventou o futebol. O inglês chutava a Ball, mas o brasileiro quer dominar a
bola. Futebol virou paixão. Qualquer lugar pode ter seu time de várzea e
disputar com o time do lugar vizinho fazendo o ritual de construção de
identidade, que Lévi-Strauss identificou pela oposição ao idêntico. Viramos, em
1958, campeões do mundo. Garrincha, torto, surgiu em Pau Grande (RJ), a partir
do time de uma fábrica de tecidos de propriedade britânica. No final dos 50,
completamos nosso desempenho construindo Brasília mais além do território real
ocupado.
Em resumo, o povão cria e a elite come
criação. O povão foi expulso das escolas de samba do grupo especial; não tem
renda para comprar a fantasia, nem para um lugar na arquibancada. O Sambródomo
é negócio e o espetáculo é para a elite. O criativo povão já fez renascer o
bloco de rua.
A feijoada é guloseima em hotéis de luxo
para atrair turista, mas em qualquer botequim tem uma boa feijoada. O povão já
superou o faast-food com a comida a
quilo, que permite ao brasileiro canibal misturar feijão com sashimi, salada verde com talharim e o
que mais a imaginação e o apetite permitirem.
O povão, com pouco ter e poder, preserva
o saber cultural brasileiro. Recicla tudo naturalmente, do auto à latinha de
alumínio. Inventa a favela, a música popular, idealiza o malandro, tropicaliza
o salpicão e faz com este prato uma multiplicidade do frango. Organiza festas e
novas religiões (é capaz de praticar várias ao mesmo tempo). Preserva o idioma,
pois o maneja dinamicamente. O léxico é campo de aclimatação dos pedaços que
canibaliza. Enquanto a elite procura uma residência alternativa em Miami, seus
epígonos procuram reproduzir o subúrbio norte-americano nas Alphavilles e socializar seus filhos no
condomínio e no shopping, o povão
canibaliza o baile funk. O estudante
brasileiro despreza Camões e, em vez de imprimir e pagar, “printa” e “deleta”; o
povão pega no funk uma música
importada que se refere a tonight e a
transforma em “Melô do Tomate”. Ligado nas sonoridades, este cultor de Camões
transmuta o sítio do irlandês O’Higgins em Favela do Arrelia; o sítio do escocês
Willian em um bairro, a Ilha. O Visconde de Asseca deu origem à Praça Seca.
Ao invés de constatar um Brasil com uma
elite que importa e um povão que canibaliza, espero um projeto nacional para o
Brasil de amanhã, onde estaremos abertos ao mundo e conscientes de nossa
identidade e soberania. Parafraseando Martinho da Vila, iremos “devagar, devagarinho” em direção à
premonição de Duque Estrada, que intuiu o “berço
esplêndido” e atribuiu aos nossos bosques mais vida e à nossa vida mais
amores. Neste Brasil de amanhã, Zeca Pagodinho não precisará se referir a
caviar como “não sei, nunca vi, eu só
ouço falar”. Zeca, estamos precisando de um samba que fale do futuro, que
veja no baiano a vanguarda da civilização brasileira; que veja no mineiro, a
sabedoria; no paulista, o maquinista da locomotiva; no forró do nordestino, a
criatividade lúdica do povão; no carioca, o brasileiro que não tem medo de
praça cheia e que faz a maior festa mundial de fim de ano (três milhões
reunidos, sem polícia nem violência) para recuperar o sonho de um futuro sempre
postergado.
A sugestão modernista da Semana de Arte
Moderna de 1922 combinada à genialidade de Gilberto Freire lastreou a
redescoberta pela qual a elite canibalizou o povo. Nos últimos 25 anos, a elite
praticamente deixou de lado o Brasil e mergulhou gostosamente na “Globalização”.
Abandonou a cultura popular, da qual o culto à boa cachaça é a nova deglutição
da elite. Tenho a esperança que estejamos próximos a um tempo em que,
dialeticamente, povão e elite, juntos, superem o ritual recorrente da
canibalização e haja a afirmação da identidade brasileira explicitando nosso
potencial civilizatório.
Texto de Carlos Lessa
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