Uma folha se desprende do galho de uma árvore e desce suavemente até o chão. O relógio da natureza continua girando. Os pássaros continuam cantando, os rios correndo – não há trégua – e os homens seguindo os passos de seus destinos. Enquanto isso, na seqüência natural – da vida – vem surgindo uma lembrança no meu pensamento, que vai tomando forma, até se tornar uma imagem clara, tão clara quando a árvore que deixa cair suas folhas à frente da minha janela. Era uma bela manhã de sol...
A civilização inca – aparentemente – é muito desconhecida, como se uma nuvem escura pairasse sobre aqueles céus, um povo sem memória, uma história sem fatos. E esse “silêncio” sempre me incomodou. Como era possível uma civilização daquele porte, raiz da cultura americana, até pouco tempo – 500 anos! – reinando absoluta em nossos territórios, com legados e construções tão impressionantes, Machu Pichu soberana no alto daquelas montanhas, e tanto silêncio em volta? Nas escolas, nos livros de história, na mídia, nos cinemas, na literatura, parece que aquele povo nunca existiu?!
É claro que no Peru existem muitos estudos, museus, as próprias ruínas e muitos especialistas no assunto. Mas entre os setores mais esclarecidos da sociedade americana em geral, nos meios intelectuais, gente que sabe de tudo sobre gregos, romanos, Idade Média, Renascimento, existe pouquíssima informação sobre os incas. O máximo que dão notícias é do imperador Atahualpa, que está à frente do império na chegada dos espanhóis, e assim mesmo sem maiores referências. Lembro bem o dia que ouvi – pela primeira vez – a frase célebre, dita em tom solene, à mesa de um elegante restaurante, entre brindes com um saboroso vinho tinto: “Meu amigo, isso é básico, todos sabem que a história é escrita pelos vencedores...”
Certo. Ingenuidade minha pensar diferente. Minha vontade naquele momento era resgatar o que considerava ser nossa memória, a memória americana...
Algo que impressiona muito é a descrição (do século XVI, feita por Garcilaso de la Veja, um mestiço, filho de mãe inca e pai espanhol) da cidade de “Cozco”, capital do império, por volta daquele ano de 1500. Uma verdadeira metrópole, com mais de 200 mil índios – alguns estudiosos estimam 300 mil, mas não existe um registro preciso – de diferentes nações, que mantinham vivas suas tradições, usavam seus ornamentos e vestes específicas, tinham seus dialetos, ao mesmo tempo que falavam todos uma língua comum – o quéchua – e era tudo organizado, cada região da cidade, as ruas, as praças, os templos, os mercados, as águas canalizadas, a impressionante “Fortaleza de Cozco”, os jardins, tudo enfim. Tanto é que muitos estudiosos se referem a ela como sendo a oitava maravilha do mundo e dizem que era “outra Roma em seus tempos”. E em volta da cidade tudo distribuído, as áreas de agricultura, a criação de animais, além das outras e grandes regiões do império, com cidades erguidas imitando a capital, e os impressionantes caminhos que as uniam. Faziam ainda grandes festas e cerimônias, em que exaltavam suas crenças e tradições, e acudiam as famílias de cada província, tudo administrado com grandes cuidados. A verdade é que é uma grande história, fundamental para entender o encontro das duas civilizações com as guerras e a matança que ali houve.
E o que aconteceu depois, o legado e as tradições daquele povo, suas escolas e conhecimentos. A história oficial – aquela contada pelos “vencedores” – diz que tudo se perdeu, foi soterrado pelo tempo. Mas existem muitos mistérios que os livros oficiais nunca explicaram. A cidade sagrada de Machu Pichu, por exemplo, da qual ninguém dava notícia na época da conquista – e de tudo sabiam aqueles índios, especialmente o que envolvia seus reis – e que só foi descoberta em 1911. O que aconteceu entre 1533, quando Pizarro tomou definitivamente a cidade de Cosco, e o começo do século XX? São quase 400 anos, será que não havia ninguém lá esse tempo todo? Será que os incas estavam todos ali, ao alcance dos espanhóis? Ou alguns se recolheram às montanhas com seus conhecimentos? Quem quer que tenha erguido – e administrado – aquela cidade no alto daqueles picos, com toda a sua engenharia, era dotado de finíssimos conhecimentos. E tem mais: quando descobriram Machu Pichu, a cidade estava vazia, deserta, e não havia sinal de alguma guerra ou de alguma peste que tivesse destruído aquele povo, mais bem parecia ter sido abandonada. E se foi assim, para onde foram? Será que sobreviveram ao holocausto da colonização e depois sumiram? Os incas mantinham vivas suas histórias e tradições – sua memória – oralmente, não possuía escrita. Então eram necessárias pessoas, não havia livros, talvez aqueles conhecimentos nem coubessem em letras, só seres humanos – iniciados – podiam ser portadores de seus conhecimentos. Os sacerdotes sabiam muito bem disso e certamente tiveram sempre a preocupação de preparar novos discípulos – como faziam com todas as honras no tempo do império – de geração em geração, pois assim, enquanto houvesse sacerdotes iniciados, sua tradição estaria viva. Então eu pergunto: será que conseguiram? Ou se perderam, como afirmam em silêncio os livros acadêmicos?
Este é o grande quebra-cabeça que pretendo montar. E a tese que defendo é de que as águas daquele rio – como de outras tradições nativas americanas – nunca secaram, nem se perderam, mas continuaram correndo por novos leitos, atravessando outras paisagens, se misturando com outras vertentes e ganhando novas formas e roupagens. As tradições incaicas se fundiram com outros povos e sobreviveram, continuaram pulsando em diversas nações indígenas, assim como entre curandeiros populares, xamãs, e muito especialmente entre os chamados “ayahuasqueiros”, pelo interior do Peru e da Bolívia, até que na segunda metade do século XX, com novas roupagens, ganharam o mundo moderno, penetrando agora por suas cidades e avenidas.
Esta é a tese que defendo e o estudo que pretendo desenvolver, buscando as raízes dessas tradições, e sua sobrevivência até os dias atuais.
A civilização inca – aparentemente – é muito desconhecida, como se uma nuvem escura pairasse sobre aqueles céus, um povo sem memória, uma história sem fatos. E esse “silêncio” sempre me incomodou. Como era possível uma civilização daquele porte, raiz da cultura americana, até pouco tempo – 500 anos! – reinando absoluta em nossos territórios, com legados e construções tão impressionantes, Machu Pichu soberana no alto daquelas montanhas, e tanto silêncio em volta? Nas escolas, nos livros de história, na mídia, nos cinemas, na literatura, parece que aquele povo nunca existiu?!
É claro que no Peru existem muitos estudos, museus, as próprias ruínas e muitos especialistas no assunto. Mas entre os setores mais esclarecidos da sociedade americana em geral, nos meios intelectuais, gente que sabe de tudo sobre gregos, romanos, Idade Média, Renascimento, existe pouquíssima informação sobre os incas. O máximo que dão notícias é do imperador Atahualpa, que está à frente do império na chegada dos espanhóis, e assim mesmo sem maiores referências. Lembro bem o dia que ouvi – pela primeira vez – a frase célebre, dita em tom solene, à mesa de um elegante restaurante, entre brindes com um saboroso vinho tinto: “Meu amigo, isso é básico, todos sabem que a história é escrita pelos vencedores...”
Certo. Ingenuidade minha pensar diferente. Minha vontade naquele momento era resgatar o que considerava ser nossa memória, a memória americana...
Algo que impressiona muito é a descrição (do século XVI, feita por Garcilaso de la Veja, um mestiço, filho de mãe inca e pai espanhol) da cidade de “Cozco”, capital do império, por volta daquele ano de 1500. Uma verdadeira metrópole, com mais de 200 mil índios – alguns estudiosos estimam 300 mil, mas não existe um registro preciso – de diferentes nações, que mantinham vivas suas tradições, usavam seus ornamentos e vestes específicas, tinham seus dialetos, ao mesmo tempo que falavam todos uma língua comum – o quéchua – e era tudo organizado, cada região da cidade, as ruas, as praças, os templos, os mercados, as águas canalizadas, a impressionante “Fortaleza de Cozco”, os jardins, tudo enfim. Tanto é que muitos estudiosos se referem a ela como sendo a oitava maravilha do mundo e dizem que era “outra Roma em seus tempos”. E em volta da cidade tudo distribuído, as áreas de agricultura, a criação de animais, além das outras e grandes regiões do império, com cidades erguidas imitando a capital, e os impressionantes caminhos que as uniam. Faziam ainda grandes festas e cerimônias, em que exaltavam suas crenças e tradições, e acudiam as famílias de cada província, tudo administrado com grandes cuidados. A verdade é que é uma grande história, fundamental para entender o encontro das duas civilizações com as guerras e a matança que ali houve.
E o que aconteceu depois, o legado e as tradições daquele povo, suas escolas e conhecimentos. A história oficial – aquela contada pelos “vencedores” – diz que tudo se perdeu, foi soterrado pelo tempo. Mas existem muitos mistérios que os livros oficiais nunca explicaram. A cidade sagrada de Machu Pichu, por exemplo, da qual ninguém dava notícia na época da conquista – e de tudo sabiam aqueles índios, especialmente o que envolvia seus reis – e que só foi descoberta em 1911. O que aconteceu entre 1533, quando Pizarro tomou definitivamente a cidade de Cosco, e o começo do século XX? São quase 400 anos, será que não havia ninguém lá esse tempo todo? Será que os incas estavam todos ali, ao alcance dos espanhóis? Ou alguns se recolheram às montanhas com seus conhecimentos? Quem quer que tenha erguido – e administrado – aquela cidade no alto daqueles picos, com toda a sua engenharia, era dotado de finíssimos conhecimentos. E tem mais: quando descobriram Machu Pichu, a cidade estava vazia, deserta, e não havia sinal de alguma guerra ou de alguma peste que tivesse destruído aquele povo, mais bem parecia ter sido abandonada. E se foi assim, para onde foram? Será que sobreviveram ao holocausto da colonização e depois sumiram? Os incas mantinham vivas suas histórias e tradições – sua memória – oralmente, não possuía escrita. Então eram necessárias pessoas, não havia livros, talvez aqueles conhecimentos nem coubessem em letras, só seres humanos – iniciados – podiam ser portadores de seus conhecimentos. Os sacerdotes sabiam muito bem disso e certamente tiveram sempre a preocupação de preparar novos discípulos – como faziam com todas as honras no tempo do império – de geração em geração, pois assim, enquanto houvesse sacerdotes iniciados, sua tradição estaria viva. Então eu pergunto: será que conseguiram? Ou se perderam, como afirmam em silêncio os livros acadêmicos?
Este é o grande quebra-cabeça que pretendo montar. E a tese que defendo é de que as águas daquele rio – como de outras tradições nativas americanas – nunca secaram, nem se perderam, mas continuaram correndo por novos leitos, atravessando outras paisagens, se misturando com outras vertentes e ganhando novas formas e roupagens. As tradições incaicas se fundiram com outros povos e sobreviveram, continuaram pulsando em diversas nações indígenas, assim como entre curandeiros populares, xamãs, e muito especialmente entre os chamados “ayahuasqueiros”, pelo interior do Peru e da Bolívia, até que na segunda metade do século XX, com novas roupagens, ganharam o mundo moderno, penetrando agora por suas cidades e avenidas.
Esta é a tese que defendo e o estudo que pretendo desenvolver, buscando as raízes dessas tradições, e sua sobrevivência até os dias atuais.
Texto de Fernando Ribeiro, no livro "Os Incas, as Plantas de Poder e um Tribunal Espanhol"
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